O ‘outro mundo’ da democracia brasileira

 

“É outro mundo”. Foi essa a definição que a ex-ministra da Justiça da Alemanha, Herta Däubler-Gmelin, deu para o Brasil em sua passagem pelo país esta semana. Ela estava espantada com o fato de o presidente brasileiro não ter renunciado logo após a denúncia da PGR. Pobre, Herta. Mal sabe que isso é quase irrelevante perto da pornochanchada que tomou conta das instituições brasileiras.

Mas há quem acredite que está tudo normal. Quando a Câmara livrou Temer da denúncia de Janot por corrupção passiva, Gilmar Mendes comemorou a estabilidade que o engavetamento do caso trouxe ao país e ressaltou a normalidade do funcionamento das instituições:  “Isso é uma questão da competência da Câmara. O sistema de ‘checks and balances’ (sistema de freios e contrapesos) está funcionando.”

Dependendo do ponto de vista, elas estão funcionando muito bem mesmo. Vejamos. No último domingo, Temer teve um encontro fora da agenda oficial com Gilmar Mendes no Palácio Jaburu. Na segunda (7), o ministro do STF chamou Janot de “procurador-geral mais desqualificado que já passou pela história da Procuradoria”. Na terça (8), Temer pediu ao STF de Gilmar Mendes a suspeição de Janot para que o procurador não atue mais em casos contra ele. Percebam como a agenda revela o entrosamento da rapaziada. Nem o time do Barcelona funciona tão bem.

As noites no Jaburu são sempre agitadas. No mesmo dia em que pediu a suspeição de Janot, Temer se reuniu depois das 22h com a procuradora que assumirá em setembro. Como já é tradição, o encontro não foi registrado na agenda oficial do presidente e só veio a público após ser flagrado por câmeras da Globo. Apesar de ser o segundo nome da lista tríplice apresentada pela procuradoria, Raquel Dodge foi escolhida por Temer e contou com o apoio de Gilmar Mendes e dos barões do PMDB.

A futura procuradora-geral da República considerou adequado visitar alguém que foi denunciado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro pelo atual procurador. À Folha, Dodge revelou que se encontrou com Temer apenas para acertar detalhes da sua cerimônia de posse. Não dá pra resolver essas coisas por e-mail ou whatsapp. Posso imaginar os dois noite adentro discutindo os detalhes do cerimonial: a prataria, os convidados, o cardápio, as toalhas, enfim, esses detalhes que só um presidente e uma procuradora geral da República podem dar conta.

Na quarta-feira, Dodge marcou novo encontro. Se você estiver prestando atenção na agenda, já deve ter adivinhado com quem. Gilmar Mendes é o nome da fera que se reuniria com Dodge para discutir – acreditem se quiser! –   o “crime organizado nas eleições”.   Homens de Temer como Raul Jungmann (Defesa) e Sérgio Etchegoyen (Gabinete de Segurança Institucional da Presidência) também participariam. Mas a subprocuradora se arrependeu depois da repercussão negativa da reunião com Temer e cancelou esse novo grande encontro entre as instituições. Seria um pouco demais se encontrar na calada da noite com um denunciado pela PGR e no dia seguinte com o juiz que salvou a candidatura do mesmo denunciado para tratar de crimes eleitorais. Temer decidiu que a cerimônia acontecerá no Planalto e Janot não estará lá para entregar o cargo. O ritual de passagem será feito por um “embaixador, ou alguma coisa assim,” indicado por Temer.

É nesse clima de promiscuidade institucional que o país caminha para aprovar profundas reformas que terão impacto decisivo em seu futuro. Temer está radiante com o bom funcionamento das instituições, homenageou o Congresso e disse estar com a “alma incendiada”:

“O diálogo com o Congresso permitiu que fizéssemos o que fizéssemos, na convicção que o Legislativo não é um apêndice do Executivo, mas que governa junto com ele. Quero fazer uma especialíssima homenagem ao Congresso brasileiro.”

Política fadada ao mais do mesmo
A reforma política agora está no centro da ribalta e será definida pelos mesmos que impediram a continuação da investigação de um presidente acusado de corrupção. Dificilmente alguma mudança irá prejudicar quem já está eleito e pretende se reeleger. O “distritão”, que havia sido proposto pelo então presidente da Câmara e hoje presidiário Eduardo Cunha, foi ressuscitado e aprovado pelos deputados da comissão que discute a reforma. Na prática, a proposta dificultará a eleição de nomes desconhecidos e favorecerá aqueles que já estão eleitos. A renovação de quadros políticos ficará comprometida.

Para compensar o fim do financiamento privado de campanha, um fundo bilionário será criado para cobrir as despesas. Não sou contra a criação do fundo, mas R$ 3,6 bilhões é um quantia vergonhosa num momento em que o governo passa a tesoura violentamente em despesas voltadas para os mais pobres. O programa Bolsa Família sofreu o maior corte da história na última sexta-feira, fazendo com que mais de meio milhão de famílias perdessem o benefício. Segundo levantamento de Ruben Berta do Intercept Brasil, com essa quantia seria possível pagar 1 mês e meio de Bolsa Família para as 13,2 milhões de famílias dependentes do programa.

Tanto o distritão quanto o fundo bilionário são aprovados publicamente por Temer e Gilmar Mendes.

Herta tem razão. A democracia brasileira realmente é mundo à parte. Aqui corrupto grita “pega ladrão”, torturador do regime militar é exaltado no parlamento, instituições se reúnem às escondidas e reformas são feitas para que tudo continue como está.

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