Roberto Amaral: “Não é mais possível apostar na conciliação”

As organizações ditas de esquerda e o PT em particular não podem mais postergar: é hora de uma reflexão profunda sobre os erros recentes. Só assim, acredita o ex-ministro Roberto Amaral, será possível recuperar a credibilidade com a população, ensaiar uma volta ao poder e reunir forças para aplicar um programa de fato transformador. Falta uma verdadeira “Carta ao Povo Brasileiro”, defende na primeira parte da entrevista. A ideia de conciliação que molda o imaginário político nacional não é mais aplicável. O PT buscou um pacto com a elite e foi traído na primeira oportunidade, relembra.

 

Por que tem sido tão difícil mobilizar a população contra as reformas do governo Temer?

 

Roberto Amaral: Há uma certa depressão. Os brasileiros, à direita e à esquerda, não tem nada a comemorar. Suas teses, seus projetos, desmancharam-se no ar. Quem derrubou Dilma Rousseff está às voltas com o fracasso do governo Temer e com os escândalos de corrupção. O campo progressistas, por seu lado, não consegue mobilizar as massas. Eis o problema.

Por quê?

RA: Uma de duas. Ou as organizações progressistas não estão empenhadas em interagir com a maioria da população ou não têm mais lideranças. A violência cometida contra os trabalhadores neste momento não tem precedentes na história republicana. Qual a consequência? Quantas fábricas foram paralisadas? Quantas greves foram organizadas? São pontos intrigantes. A rejeição às reformas e a Temer beira a unanimidade, mas não se converte em reação. A reprovação de Temer chegou a 95%, segundo pesquisa do instituto Ipsos. Como se explica um presidente com esta taxa de desaprovação permanecer no poder?

Vivemos um momento de declínio da política. O Congresso foi capturado pelo poder econômico, não mais preocupado em se reeleger, mas em realizar seus lucros neste mandato. O Poder Judiciário não se tornou apenas politizado, está partidarizado. E o Executivo não tem moral. O Rio de Janeiro é o retrato esquizofrênico, exacerbado, da situação nacional. A política é feita de esperança e ela tem sido aniquilada. Onde estão aqueles que batiam panelas e vestiam a camiseta da Seleção em São Paulo e no Rio de Janeiro?

 

Qual a parcela de responsabilidade da chamada esquerda neste quadro?

 

RA: Muito grande. Há uma crise planetária da esquerda, ressalte-se. Talvez seja o momento de maior crise após a queda do Muro de Berlim. Ela começou na Europa, inicialmente com a autodissolução dos partidos comunistas, com as legendas socialistas se tornando sociais-democratas e estas indo para a direita e fracassando na administração. O exemplo paradigmático é o Partido Socialista francês. E, note, a França, ao contrário do Brasil, é um país industrializado, com um sindicalismo forte e uma população politizada. Depois da saga da eleição de Lula em 2002, não houve uma preocupação do campo progressista no Brasil em realizar as transformações, coisa que a direita faz neste momento. Ilude-se quem pensa que o impeachment da Dilma era um projeto isolado. Era uma necessidade tirá-la do poder. Temer é uma contingência, necessária para manter o formalismo constitucional. O projeto em curso é ideologicamente mais profundo do que aquele que levou ao golpe de 1964. Estão metodicamente a promover essas reformas, além traçar estratégias para impedir qualquer recuperação de um pensamento social no futuro. Os governos do PT não fizeram as reformas estruturais.

O oligopólio dos meios de comunicação não foi enfrentado. Não se fez uma reforma tributária, não se mexeu no Imposto de Renda… O sucesso popular do Lula e de seu governo não foi canalizado para promover mudanças mais permanentes. Neste momento, não tenho certeza se teremos eleições em 2018.

 

CC: As eleições de 2018 poderiam não acontecer…

 

RA: Há ao menos duas possibilidades: ela pode acontecer com uma legislação que exclua as forças populares ou o presidencialismo pode ser transformado em um parlamentarismo misto ou puro… O que vai ser determinante é o esforço para a continuidade desse projeto em curso. Barrar o Lula é fundamental para o sucesso dessa estratégia. Ou o retiram por meio de uma destruição moral ou por uma condenação que o torne inelegível.

 

CC: O PT e Lula parecem inclinados em repetir o discurso da conciliação. Faz sentido insistir nesta estratégia?

 

RA: Nenhum. As condições internacionais mudaram e a economia e a política internas igualmente se transformaram. Torço para que o PT, Lula e as esquerdas tenham refletido sobre os erros cometidos e abandonado a ilusão da composição de classes, de que poderiam fazer concessões. Os governos petistas confundiram a coalização necessária para governar com a conciliação de classes. As forças progressistas, na nossa história, sempre buscaram a composição com as elites e sempre foram traídas.

 

CC: Como o senhor explica a apatia do governo Dilma, do PT e do Lula durante a campanha que culminou no impeachment?

 

RA: Trabalho com suposições, não consegui até hoje compreender. A esquerda, de forma geral, e o PT em particular ficaram assustados com o início do governo Dilma. Em 2015, quem acompanhava a vida parlamentar percebia que a bancada petista se movimentava no Congresso como barata tonta: sem articulação. Houve um refluxo dos movimentos populares diante das opções da presidenta. Ela foi eleita com um projeto e, no governo, adotou o programa dos adversários.

O PT continua incapaz de se reinventar e de se aproximar da população que diz representar. Qual a dificuldade?

 

RA: Isso vale para o campo progressista de forma geral. Marx não explica. As estruturas, desde aquelas antigas dos partidos comunistas, sempre foram acometidas de rápida esclerose. São rígidas, resistentes ao novo. No caso do Brasil, esse fenômeno se une a uma tradição da subordinação das ideologias e doutrinas a lideranças carismáticas. Ocorre à direita e à esquerda. O trabalhismo confundia-se com o varguismo. A UDN era o brigadeirismo e depois o lacerdismo. O populismo, o adhemarismo e o janismo. O lulismo é muito maior que o petismo. O mais engraçado é que a revisão, a autocrítica, faz parte da metodologia marxista, raramente aplicada. Essa reflexão precisa, no entanto, ser profunda e não só nos partidos. Os sindicatos, os movimentos sociais, também necessitam buscar uma reflexão, discutir paradigmas, certezas. Muitas posições ideológicas tem sido contrariadas pela realidade.

 

CC: Quais as bases de um programa de governo progressista para 2018 em diante?

 

RA: Os governos Lula e a primeira administração da Dilma não eram de esquerda. O programa era, mas a execução foi de centro-esquerda. O presidente do Banco Central no governo Lula era o Henrique Meirelles. Entre Meirelles e Joaquim Levy, a única diferença está no nome e sobrenome. Um programa de esquerda tem de se basear em uma aliança com as forças populares. O programa do Lula, até certo ponto bem-sucedido, tinha como ponto de partida a “Carta ao Povo Brasileiro”, claramente um acordo com a classe dominante. Esse acordo hoje é difícil, pois foi rompido pela elite no impeachment da Dilma, em especial pelo sistema financeiro.

 

O senhor continua a acreditar na possibilidade de formação de uma frente de esquerda?

 

RA: Defendo e continuo a considera-la possível. Penso, porém, não ser mais suficiente. Precisamos de uma frente ampla. O campo progressista representa cerca de 30% do eleitorado. Com esse porcentual, produz-se uma bela resistência, mas não garante a volta ao governo e muito menos viabiliza um projeto de desenvolvimento. Uma das nossas tragédias, resultado do presidencialismo de coalização, é se eleger o presidente, dar-lhe maioria dos votos, mas só lhe garantir uma minoria no Parlamento. Elege-se um programa e ao mesmo tempo um Congresso que não permitirá a aplicação das promessas de campanha. Daí nascem os escândalos, como o chamado “mensalão” ou este investigado pela Lava Jato.

 

A Frente Ampla escaparia da velha conciliação que somente beneficia as elites?

 

RA: Só uma frente, com um dirigente que acredite no apelo à população, pode ter sucesso. O Lula teria de assumir o compromisso de unir à sua a campanha ao Parlamento. Dizer claramente que não adianta coloca-lo novamente na presidência da República se os eleitores não lhe derem uma maioria no Congresso. Se há maioria e apoio popular, brotam as condições para não se repetir os erros recentes. Há uma tendência trágica no Brasil de soluções por cima. Na nossa história, o povo é figurante. Você coloca a população na rua, enquanto negocia por cima. Escolho aqui o ano de 1961: o povo levantou-se contra a tentativa de impedimento da posse de João Goulart, Leonel Brizola articulou a Rede da Legalidade, derrotou-se o golpe, mas, na calada da noite, as elites implantaram o parlamentarismo. A primeira tentativa de derrubar o PT do governo foi em 2005 com o chamado mensalão. Os petistas se comportaram naquela altura da mesma forma do que em 2015, 2016. Recolheram-se assustado. O Lula mandou a estrutura partidária às favas, saiu às ruas e colheu apoio popular. Derrotou a conspiração e se reelegeu em 2006.

RA: Engenharia de obra pronta, ressalvo, é fácil. E é o que vamos fazer aqui, analisar fatos passados. Dito isso, a melhor solução em 2014 teria sido a candidatura do Lula. Ou, no mínimo, ele ter assumido um ministério logo início da administração da Dilma Rousseff. A história mostra agora que naquele momento era preciso um candidato e um presidente com a força popular e o prestígio internacional do Lula para enfrentar a situação. Todos estavam informados a respeito da piora da economia no Brasil. O desastre da articulação política no início do segundo mandato da Dilma revelava a falta de conhecimento do Congresso por parte dos assessores mais próximos da presidenta.

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