Por Marina Pita*
Há cerca de dois anos, eu e minha família recebemos a notícia de que minha mãe teria de enfrentar um tratamento para câncer. Dias depois de ter recebido a notícia, resolvi compartilhar pelo WhatsApp, com uma amiga querida que estava longe, o estado de ansiedade e apreensão pelo qual passava.
No dia seguinte, um e-mail na minha caixa de entrada informava sobre um remédio milagroso para a doença. Respirei fundo e apaguei. Coincidência ou não, o fato que é que a informação de que o assunto “câncer” estava no meu espectro de interesse poderia, sim, ser usada para fins de publicidade. A fragilidade, a vulnerabilidade, a insegurança, já descobriram os publicitários há alguns anos, são importantes impulsionadores de vendas.
Agora, se o caso ocorreu já há dois anos, por que compartilhá-lo agora?
Porque um documento interno do Facebook, que acaba de ser vazado pelo jornal Australian, revelou a capacidade da companhia de identificar quando um adolescente ou um jovem trabalhador se sente “inseguro”, “inútil” e precisa de um “impulso de autoestima” – tudo baseado num banco de dados de 1,9 milhão de estudantes de Ensino Fundamental, 1,5 milhão do Ensino Médio e 3 milhões de jovens trabalhadores.
Quem acompanhou, no Dia Mundial da Saúde, os diversos alertas sobre depressão e como a doença é hoje a principal causa de problemas de saúde e invalidez no mundo, pode pensar: que ótimo! Esta informação pode ser usada para gerar algum tipo de acompanhamento, indicação de profissional, sugerir que o adolescente busque ajuda.
Não. Veja bem.
O documento em que a maior rede social do mundo se gabava de poder monitorar posts e fotos em tempo real para determinar quando um jovem se sente “estressado”, “derrotado”, “ansioso”, “nervoso”, “estúpido”, “fracassado”, “idiota” ou “um fracasso” era, na realidade, uma apresentação feita para um dos maiores bancos da Austrália.
Isso mesmo, um banco.
Ou seja, a informação sobre a situação emocional de adolescentes e jovens está sendo usada para fins econômicos, para o lucro de corporações.
Neste sentido, o vazamento do documento do Facebook e a exposição dos dados nele contidos não é apenas mais um alerta sobre a capacidade de coleta e processamento de dados na era moderna. É um importante indicador de que todo mundo precisa de privacidade se não quiser que suas maiores vulnerabilidades sejam exploradas para o único fim de vender.
Em um momento em que muitos alardeiam a era do fim da privacidade, como se fosse algo trivial, em que se ouve a cada roda de conversa que alguém não teme a coleta massiva de dados e a vigilância “porque não tem nada a esconder”, talvez esta notícia faça com que todos passem a entender que a privacidade não é importante apenas para os corruptos, bandidos ou ditos subversivos, mas para que qualquer cidadão esteja protegido do modelo de consumo atual: a qualquer custo, sem limites e sem ética, ao qual todos estamos sujeitos.
É hora de pararmos para questionar as maravilhas que os sistemas de “Big Data” farão pela humanidade, usando os nossos dados para nos entregar o que há de mais perfeito para nossa personalidade ou para encontrar a origem de nossas doenças, e começarmos a entender que uma sociedade orientada para o lucro obviamente usará os recursos tecnológicos em vasta medida para este único e exclusivo fim.
E isso é verdade, apesar do que dizem os “evangelistas” de tecnologia, profissionais altamente qualificados, pagos por grande empresas do setor de “coleta de dados e softwares de inteligência” para apregoar, com apoio de potente máquina de influência de mídia, as benesses que serão um dia obtidas com o modelo em que nós entregamos nossas informações mais pessoais sem nem sequer entrar na lógica do lucro e cobrar por isso.
Exploração comercial de crianças e adolescentes
O mais incrível é que a exploração de dados para fins de lucro não encontra limites nem para com crianças e adolescentes, que devem ser tratados como prioridade absoluta – como estabelece a Constituição brasileira.
Pouco importa se pelo menos eles deveriam ser poupados de determinadas práticas mercadológicas até que tenham maturidade para compreender as implicações de terem seus dados disponíveis para as áreas de publicidade e marketing (no mínimo) das companhias.
Além da sanha do mercado, essa falta de limites está relacionada também com a fragilidade regulatória sobre a coleta, processamento, uso e, claro, proteção de dados pessoais. No Brasil, por exemplo, e apesar dos esforços de diversas entidades, especialistas, acadêmicos e juristas (muitos deles reunidos na Coalizão Direitos na Rede) de ver aprovada uma Lei de Proteção de Dados Pessoais, a agenda política do país e alguns interesses escusos têm impedido que o tema se torne prioridade no Congresso Nacional.
Pelo contrário, o que mais se vê são projetos de lei baseados na violação da nossa privacidade para, supostamente, nos proteger dos males contemporâneos.
Uma legislação adequada à proteção de dados dos cidadãos e cidadãs – em especial, dos mais vulneráveis – é necessária e mais do que bem-vinda. Mas o debate ainda encontra os limites na cultura, nas tecnologias disponíveis e no conhecimento dos brasileiros sobre o assunto.
Para tentar sustentar este outro pilar para a tão necessária garantia do direito à privacidade e à autodeterminação em dados pessoais, organizações como o Intervozes, Saravá, Actantes, Encripta Tudo e Escola de Ativismo organizam anualmente um evento aberto para discutir, neste contexto de coleta massiva de dados e vigilância constante por Estados e empresas, temas como segurança, privacidade, criptografia, técnicas e soluções tecnológicas para a proteção de cidadãos e organizações. Trata-se da CryptoRave.
A edição deste ano começa nesta sexta-feira, 5 de maio, e segue até o sábado 6, às 19hs, na Casa do Povo, em São Paulo. Serão 24 horas diretas de palestras, debates, oficinas, jogos e apresentações artísticas para todos os perfis de pessoas – desde os mais geeks até o cidadão comum, que acaba de descobrir que tem muito a perder se não começar a se atentar para o tema.
Nosso lema deste ano é: “Dance como se ninguém estivesse olhando, porque ninguém precisa de mais depressão no mundo. Mas criptografe, porque todos estão”.
* Marina Pita é jornalista, membro do Intervozes e uma das organizadoras da CryptoRave.