Nas conduções coercitivas e delações premiadas, o punitivismo ocupa o lugar da Justiça, cada vez mais seletiva e distante dos crimes das empresas financeiras e daqueles cometidos contra os pobres. Há uma tendência mundial ao punitivismo, sinal de uma regressão civilizatória generalizada, mas no Brasil, ele é mais perverso que no mundo desenvolvido. A denúncia é do jurista Pedro Estevam Serrano, professor da PUC-SP e colunista de CartaCapital.
CartaCapital: Há uma generalização da prática utilizada pelo juiz Sergio Moro, de determinar a condução coercitiva de uma testemunha como primeira alternativa para obter um depoimento, em vez da intimação? Essa hipótese surgiu entre juristas após a condução coercitiva do ex-ministro Guido Mantega, na segunda-feira 9, sem intimação prévia. O método foi empregado também para obter o depoimento do ex-presidente Lula.
Pedro Serrano: Há uma tendência mundial a utilizar uma lógica punitivista no sistema de justiça. É um momento em que o mundo está andando para trás em termos civilizatórios. Avançou muito no pós-guerra, com a criação e o reconhecimento dos direitos do ser humano e do cidadão, mas agora as liberdades públicas estão sob evidente ameaça. É um período de retrocesso.
CC: Como funciona essa lógica punitivista?
PS: Prioriza o Direito Penal em relação a políticas públicas, amesquinha os direitos e garantias individuais e, no Brasil, atua flagrantemente contra a Constituição e as leis em favor de uma ideia de combate ao crime a qualquer custo.
A condução coercitiva é uma pequena manifestação desse tipo de lógica perversa no sistema jurídico-penal. É uma condução ilegal e inconstitucional, porque realizada fora dos critérios legais. Só deve ser feita após a negativa de cumprimento de uma intimação realizada com prazo razoável. No mínimo, tem de haver isso.
CC: Há no meio jurídico quem a defenda.
PS: Vez ou outra um delegado ou promotor alega que o juiz poderia prender temporariamente, portanto ao optar pela condução coercitiva ele está usando uma medida mais branda. Esse argumento não procede, só seria válido se houvesse os requisitos para a prisão temporária e nesses casos, nunca estão presentes. A prisão temporária não pode servir para prestar depoimento.
CC: Há um abuso?
PS: Creio que há, nitidamente, um abuso dos poderes do Estado, evidenciado também em outra questão. No Brasil, especificamente, avançou-se muito nessa lógica punitivista, na punição dos crimes contra o Estado, a exemplo da corrupção, entre outros, cometendo-se abuso de poder a título de combatê-los. Entretanto, não se avançou nada em relação a punição de crimes contra o cidadão, a pessoa. Punição de abuso de poder de autoridade no Brasil é letra morta.
CC: Por que os abusos de poder não são punidos?
PS: O instituto deveria punir agentes do Estado que atuam de forma ilegal, infringindo direitos da cidadania. Toda vez que a autoridade determina ilegalmente a condução coercitiva de alguém, por exemplo, é preciso apurar disciplinarmente se ela está cometendo crime de abuso de autoridade. Eu nunca ouvi falar de um juiz, promotor ou delegado punido por esse tipo de abuso de poder. Ouve-se, às vezes, que um policial foi punido por abusar violentamente do poder, por ter torturado.
Há tortura nas delegacias, abusos cometidos dentro das prisões, morrem muitos na periferia. Mas nesses tipos de constrição à liberdade, que também são ilícitos administrativos e também são crimes, não se ouve falar em punição de ninguém. A verdade é que não se avançou nada no Brasil na punição dos crimes contra o cidadão. As pessoas falam tanto de impunidade, mas onde há impunidade é nos crimes contra o cidadão.
CC: Isso desde a ditadura, no mínimo.
PS: Desde a República nunca houve uma tradição brasileira de punir os crimes contra o cidadão. Isso é muito grave.
CC: Há uma crítica à impunidade.
PS: A crítica contra a impunidade é seletiva. Critica-se a impunidade dos crimes contra o Estado, de certos crimes contra a riqueza, o patrimônio, mas não se critica a impunidade de crimes contra a cidadania, que talvez sejam os mais relevantes do Estado de Direito.
E não vejo por parte das instituições incumbidas de realizar a persecução desses crimes, nenhuma preocupação em fazê-lo. Até porque isso as atingiria. Há uma quietude dessas instituições em relação aos crimes cometidos contra o cidadão.
CC: Além da condução coercitiva, há outros abusos de autoridade na Lava Jato?
PS: A meu ver, prender para efeito de obter delação premiada. É um método muito usado ultimamente e é absolutamente nefasto e ilegal, inconstitucional e abusivo em relação aos direitos do cidadão. Não é, na verdade, nem um ato de direito, uma decisão jurídica de direito. É uma decisão de exceção, que tem sido confirmada pelos tribunais, pelo menos no primeiro momento. Isso é muito grave, porque o Judiciário tem se transformado em fonte de exceção. É claramente um ato de tortura psicológica e física também, porque submete o indivíduo a um aprisionamento físico num ambiente considerado pela ONU como medieval.
CC: Como avalia a aplicação da lei penal?
PS: Não pode haver uma aplicação seletiva da lei penal e essa é uma característica do punitivismo brasileiro, ele é mais perverso que o do primeiro mundo. Acontece lá, mas não é seletivo. Há uma tendência nos Estados Unidos, por exemplo, de considerar legítima a utilização de provas ilícitas, mas o agente estatal, policial ou promotor, que produziu essa prova ilícita é punido, muitas vezes com perda do cargo e prisão. Ele pensa dez vezes antes de produzir uma prova ilícita.
É a mesma coisa na Europa. Não há uma seletividade. Aqui, além de ser contra as garantias individuais, o punitivismo é também seletivo, funciona apenas nos crimes que interessam às elites, para punir a pobreza e os crimes contra o Estado cometidos por agentes de esquerda ou ligados a esse tipo de visão social.
CC: Qual é abrangência dessa seletividade?
PS: Ocorre em tudo. Procura-se punir, por exemplo, os crimes cometidos contra o Estado por empresas ligadas ao desenvolvimento econômico, com atividades no setor de infraestrutura, entre outras. Não se pune, porém, crimes cometidos por empresas ligadas ao capital financeiro. As quais, na realidade, tomam uma parcela muito mais significativa do orçamento público que qualquer empreiteira, qualquer empresa ligada à infraestrutura e ao desenvolvimento. É uma seletividade perversa em relação aos interesses da nação.
CC: Outro exemplo de seletividade talvez seja a pequena importância dada ao combate à sonegação em comparação à luta anti-corrupção, conforme o senhor destacou em um artigo.
PS: Claro. A legislação já é mais seletiva no sentido de possibilitar a não punição ou a impunidade de crimes cometidos pelo mercado financeiro. E tem uma lógica fechada, intangível.
CC: Como vê o futuro?
OS: O que pode nos libertar é aplicar a Constituição e as leis integralmente. Não podemos ter um sistema punitivo do Estado seletivo na aplicação da lei penal. O País precisa de um sistema legalista, portanto não seletivo, que aplique toda a legislação penal e puna todos os crimes em todos os setores onde eles ocorram.