Por Frei Sérgio Antônio Görgen
1. Introdução
O objetivo deste texto é analisar os sinais da crise do sistema de representação política no Brasil. Crise num sistema de representação é quando os representados não mais se sentem representados por seus representantes formais e deixam de acreditar no próprio sistema de representação, isto é, que através daquele sistema de escolha de representantes, sabem antecipadamente que seus anseios e necessidades não estarão sendo minimamente atendidos.
Os dois principais instrumentos de acesso ao sistema de representação hoje no Brasil são os partidos políticos – e por consequência, o voto – e os grandes meios de comunicação de massa, estes, através da projeção de nomes, ideias, pessoas e instituições e da manipulação constante das informações.
Os partidos são o meio legal e organizativo. Os Meios de Comunicação Social (MCS) são o meio de acesso à consciência coletiva dos eleitores, garantindo que um personagem torne-se conhecido, tenha boa reputação pública e seja projetado publicamente como representante legítimo da massa popular. Isto pode se dar a nível local (vereador, prefeito), regional (deputado), estadual (governador/senador) ou nacional (presidência da república).
Para que um sistema político entre em crise no Brasil é necessário um abalo de confiança simultâneo nos dois meios de acesso ao sistema. A descrença nos partidos é cada vez maior. A influência dos MCS ainda é grande, porém, à medida do enfraquecimento dos partidos, especialmente os de direita, obrigam-se a se expor cada vez mais a cada eleição, aparecendo como verdadeiros partidos políticos, entrando também em processo rápido de desgaste.
2. Malhas Complexas
As malhas de uma estrutura de poder são grandes, complexas, emaranhadas e interativas. Podem atravessar grandes tempos históricos, mudando sem mudar, modernizando-se sem alterar os donos do poder.
Mas não são eternas e, como toda obra humana, pela ação humana podem ser alteradas. E com uma dialética implacável: quanto mais fortes e complexas as malhas de uma estrutura de poder, mais forte e complexo deve ser o movimento revolucionário que se disponha a substituí-las.
Uma das malhas de uma estrutura de poder nas sociedades modernas é o sistema de representação política. Ele é fundamental para manter em pé a estrutura de classes, a exploração econômica, a exclusão social, os privilégios da elite, a concentração do capital, o controle do poder econômico com a adesão, sem revoltas, ou, pelo menos, com a apatia dos pobres e explorados. Da mesma forma o sistema de produção de bens culturais é uma das malhas que produz incessantemente ideias e interpretações que justificam, alimentam, protegem e sustentam a estrutura socioeconômica.
No Brasil, o sistema de representação política – estrutura do Estado Brasileiro com três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e suas três instâncias (União, Estados e Municípios) – começa a emitir sinais externos de um processo lento de deterioração.
3. A Erupção das Crises
Qualquer sistema de representação, para se manter em pé, precisa de um grau mínimo de identificação entre representantes e representados. Precisa de apoio popular e sustentação na sociedade. Isto é relativamente fácil quando o grau de exigência cidadã e o nível de informações básicas da população são, ambos, relativamente baixos. No Brasil dos últimos anos, os índices de participação e exigência cidadã, bem como o nível de informações, apesar dos pesares e a passos lentos, tem crescido significativamente.
Isto pode levar, num primeiro momento, a um nível maior de tentativas de manipulações massivas, através da mídia e graus elevados de desilusões quanto a efetividade dos instrumentos de representação à disposição e aos agentes que se apresentam. Num segundo momento, passará a ser mais e mais exigente em relação tanto à qualidade das informações disponíveis, à efetividade dos instrumentos e à qualidade dos agentes políticos. Quando os níveis de exigência popular colocarem em risco os pilares do sistema e ameaçarem os privilégios dos que dele se beneficiam, poderão se desenrolar tentativas de retrocesso e repressão, de um lado e pressões por avanços democráticos e sociais por outro. São os momentos em que os conflitos se agudizam e as crises se instalam.
4. Condições de Sustentação de um Sistema de Representação
Para que um sistema de representação e seus agentes políticos, econômicos e institucionais se mantenham e não se deteriorem, no conjunto de suas complexas malhas, são necessárias algumas condições básicas:
a. Credibilidade
As pessoas e o conjunto da sociedade precisam acreditar no sistema, ter confiança nele, acreditar que ele oferece condições reais de as representar e atender a seus anseios, acreditar em sua capacidade de coibir desvios e desonestidades, ou, ao menos, que as pessoas que compõe as funções de mando em um determinado sistema estão fazendo o melhor que podem em benefício da maioria. E que os erros e desvios serão controlados e punidos.
Sem esta confiança, um dos pilares do sistema começa a trincar.
b. Capacidade de resposta a problemas concretos e práticos
Para grande parte da população, o que esperam de um sistema de representação política é que seja capaz de responder e resolver seus problemas quotidianos. Isto pode significar uma consulta médica, um tratamento de doença, uma rua pavimentada, uma renda garantida, um emprego, abastecimento de água, filho na universidade, etc. Pode ser respeito e dignidade, garantia de direitos. Os níveis de exigência podem ser variados e aumentarem à medida em que os níveis de exigência cidadã se modificam e se ampliam.
Quando um sistema de representação, ou seus agentes, não conseguem responder a estas exigências, outro pilar do sistema começa a trincar.
c. Senso Comum Tolerante
Quando o senso comum é conformista, tudo fica mais fácil para quem governa, pois tenderão a uma tolerância complacente com as práticas políticas e as ineficácias do sistema. “É assim e sempre será. Não adianta, não muda”.
Um grau baixo de exigências ou um grau elevado de tolerância, garantem longa vida a sistemas de representação e a reprodução de práticas políticas manipuladoras e mantenedoras de privilégios.
Uma população mais consciente, informada, exigente e organizada significa maiores dificuldades para a perpetuação de formas e sistemas engessados de representação política.
Quando a consciência crítica da sociedade evolui, um sistema de representação que não atenda aos anseios populares começa a ter outro de seus pilares trincando.
d. Força Simbólica e Moral
Quando figuras públicas emergem de um sistema político com grande patrimônio simbólico e moral, criando grau elevado de identificação com os anseios das maiorias, grau elevado de identidade cultural e de respostas aos problemas concretos do povo, aura de seriedade e honestidade – verdadeira ou acreditada – confere alta credibilidade a um sistema de representação. Pode ser pessoas, entidades, movimentos sociais ou políticos, grupos, igrejas, poderes constituídos, etc. O patrimônio simbólico das principais figuras ou entidades públicas de um determinado sistema de representação tem grande significado na manutenção e no vigor deste sistema.
O inverso também é verdadeiro. A corrosão do patrimônio simbólico é uma das fissuras mais comprometedoras de um sistema, ou de pessoas, grupos, entidades ou poderes que o compõe.
Por isto que, corroer o patrimônio simbólico dos adversários é sempre um dos principais objetivos nos embates políticos.
Porém, esta corrosão pode atingir o sistema inteiro ou parte significativa dele. É neste momento que cirurgias se fazem necessárias em alguns órgãos, ou tratamentos radicais em todo o corpo social.
e. Possibilidade de alternância
A grande força de um sistema de representação é quando ele tem, dentro de seu próprio arsenal de instrumentos, possibilidades reais de mudança mantendo as regras do próprio sistema. É a possibilidade e a esperança de mudanças reais com a troca de agentes mantendo-se o sistema. Isto confere alta credibilidade a um sistema. Quando as possibilidades de mudanças com as regras estabelecidas se tornam impraticáveis e os anseios de mudança se avolumam, o sistema todo tende a entrar em crise. É quando se impõe as rupturas, as revoluções, a necessidade de constituintes, a necessidade de refazer as regras.
O sistema de representação política no Brasil parece estar dando sinais deste esgotamento profundo, uma vez que, as exigências e a pressão social por maior justiça social esbarram em barreiras quase intransponíveis nos mecanismos de concentração de poder econômico, renda e posses, protegidos pelos poderes Legislativo, Judiciário e grande parte do Executivo, bloqueando possibilidades transformadoras e mais, forçando retrocesso no pouco que se avançou.
A “Possibilidade de Alternância” é a grande reserva moral de um sistema político. Quando há na população uma ideia difusa de que “ é possível mudar” e existem sujeitos históricos propondo mudanças com condições reais de exercerem o poder dentro de um determinado sistema político, o sistema enquanto tal dificilmente entra em crise. O PT foi, no contexto histórico brasileiro, por muito tempo, esta “reserva moral” do sistema de representação política estabelecido com a Constituição de 1988. Ainda o é? Que outro se apresenta?
f. Capacidade de Aglutinação Social
Quando nenhuma força estabelecida dentro de um determinado sistema de representação consegue reunir capacidade aglutinativa capaz de constituir maiorias estáveis, é outro sinal de crise no sistema, outro abalo no conjunto de suas malhas de poder, outro de seus pilares que emite sinais de incapacidade de suporte do conjunto da organização política. Em linguagem gramsciana, nenhum grupo político, dentro de um determinado sistema, consegue uma maioria estável que lhe dê condições de governabilidade.
Quando isto acontece com um grupo, pode ser substituído por outro. O pilar da “possibilidade de alternância” protege o sistema. Quando nenhum agrupamento político consegue, ou novos agrupamentos estão se formando, sem questionamento do sistema, ou pode ser sinal de que todo o sistema esteja desabando.
5. Caminhos Abertos
Quando um sistema político não consegue mais responder ao conjunto destes pré-requisitos, quando estes pilares de sustentação começam a trincar de cima abaixo, todo o sistema entra em crise.
Nestes casos temos crises institucionais profundas e, por vezes, demoradas e as forças sociais e políticas se organizam para propor transformações estruturais, umas à direita, outras à esquerda e um profundo embate se trava. As classes se reposicionam e propõe seus projetos estratégicos.
Quando uma crise de um sistema representativo acontece concomitante – e quase sempre assim o é – com uma profunda crise econômica, social e ética, mais duros serão os embates e mais duras as batalhas simbólicas, políticas, sociais e econômicas entre as classes em disputa.
É quando se faz necessária a repactuação das bases da convivência social, da gestão do Estado e da distribuição dos bens, patrimônios e riquezas de uma determinada sociedade.
Diante desta situação de crise, tende a surgir uma bifurcação de caminhos:
As elites são tentadas a experimentar alguma das formas clássicas de repressão social e de formas ditatoriais de exercício do poder. As ideias fascistas e moralistas ganham grande destaque.
As forças políticas populares e socialistas tenderão a encontrar formas criativas e operativas de despertar as lutas de massas criando condições de superação da crise deflagrando processos de alterações profundas na estrutura da sociedade e na reconstituição de novas bases e malhas para exercício do poder, com mais democracia, participação, direitos preservados e distribuição equitativa dos bens.
6. Assembleia Nacional Constituinte Exclusiva e Soberana
Estaria chegando no Brasil, com base nestas reflexões, a hora de organizar o povo para um novo modelo de representação política e de distribuir os frutos do trabalho e da riqueza no país através de uma Assembleia Nacional Constituinte Exclusiva e Soberana para refundar a Nação Brasileira pensada para seus próprios cidadãos, com justiça, dignidade e respeito e solidária com todos os trabalhadores do mundo todo?
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Frei Sérgio Antônio Görgen é missionário Franciscano no Assentamento Conquista da Fronteira. Onde junto à Fraternidade Padre Josimo atuam em favor dos pequenos agricultores e dos movimentos sociais.