Lei Maria da Penha completa dez anos entre comemorações e preocupações

A delegada Camila Delcaro Fernandes conversava com a reportagem quando foi interrompida por uma funcionária da delegacia, localizada na zona leste de São Paulo. Ela informava que, na sala ao lado, havia uma mulher aos prantos. Maria Lúcia, uma dona de casa de 50 anos, estava desesperada porque, um dia antes, tinha ido ao Fórum e, sem entender direito, assinara um documento em que se comprometia a retirar a medida protetiva que mantém seu ex-companheiro violento longe dela. Em troca, segundo o acordo, ele voltaria a incluir o filho do casal no convênio médico que recebe da empresa, do qual o menino, com problemas de saúde, havia sido excluído. Só entendeu direito o documento quando já estava no ônibus a caminho de casa e o lia com calma.

– Se isso acontecer, ele vai me matar dentro da minha própria casa!, soluçava ela.

A reportagem é de Talita Bedinelli, publicada por El País, 07-08-2016.

Pouco mais de 16 quilômetros dali, no centro de São Paulo, sua xará Maria Márcia, uma técnica de enfermagem de 46 anos, deixava horas antes a 1ª Delegacia de Defesa da Mulher, após registrar mais uma queixa contra o companheiro. Acompanhada da filha adolescente, ela explicava que, dessa vez, o marido levou os habituais xingamentos de “puta” e “vadia” para um outro nível: agarrou seu pescoço e tentou sufocá-la. Dali, ela seguiria ao Instituto Médico Legal para atestar as marcas da agressão em seu corpo. Esperava assim que, desta vez, o juiz considerasse a violência física algo grave o suficiente para determinar a medida protetiva e manter o homem longe de sua casa.

– Da última vez que prestei queixa, por causa dos xingamentos, o juiz achou que não era o caso. Falei: o que precisa? Que ele me quebre toda para que se tome alguma providência?

Há dez anos, o 7 de agosto de 2006, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionava uma lei, inspirada em outra Maria, a da Penha, para proteger mulheres como as Marias com as quais a reportagem conversou na última sexta-feira em delegacias especializadas de São Paulo. No Brasil, o quinto país onde mais se matam mulheres no mundo -mais do que na Síria, que está em guerra e onde atua o Estado Islâmico -ainda morrem mais de 4.000 mulheres ao ano, um número que só aumenta, apesar da lei.

A primeira década da Lei Maria da Penha é de comemoração, avaliam as feministas. Mas, em um país machista que tem ganhado contornos mais conservadores a cada ano, também é preciso se preocupar, apontam elas. Dentre os aspectos positivos, destaca-se o fato de que foram criados novos atributos para a polícia e para a Justiça, como juizados especiais, e também a definição de que órgãos de diversas esferas tenham que se articular para criar ações e dar assistência às mulheres em situação de violência doméstica. A mudança na forma como as medidas protetivas passaram a ser dadas às mulheres é uma das vitórias, afirm a a delegada Fernandes. Antes, era necessário que um advogado as pedisse. Agora, tudo é feito diretamente pela mulher, na delegacia, e dada pelo juiz em um prazo de até 96 horas.

Esse aspecto, entretanto, está, no momento, no centro de uma polêmica. Um Projeto de Lei que tramita no Congresso quer que as medidas protetivas sejam dadas pelo próprio delegado de polícia, sem que ela seja autorizada antes pelo juiz, que deve confirmá-la em até 24 horas. Para os defensores da mudança, isso vai acelerar o processo para menos das 96 horas previstas. Para os críticos, é um risco alterar a lei para dar mais atribuições às delegacias, que atualmente já são sobrecarregadas e, muitas vezes, não prestam o serviço de acolhimento adequado. “Muitas delegacias fazem um bom trabalho, mas a maioria delas acaba mandando a pessoa para casa, coloca panos quentes na situação, pois acha que há crimes mais importantes para cuidar”, afirma Leila Linhares, advogada e coordenadora da Cepia, uma organização que participou da elaboração da lei, há dez anos. “Um dos avanços da lei foi, justamente, fazer com que a mulher tivesse um melhor acesso ao judiciário”, ressalta ela.

A falta de delegacias especializadas em número suficiente também é apontada por organizações feministas como uma falha na aplicação da lei. Em um país com 5.570 municípios, existem 502 delegacias de atendimento à mulher, a maioria concentrada nos grandes centros urbanos e com um horário de funcionamento pouco acessível -até as 18h e apenas nos dias de semana. São Paulo, por exemplo, apenas neste mês terá uma delegacia do tipo 24 horas e que abrirá aos finais de semana. Em tese, o Boletim de Ocorrência pode ser feito em qualquer delegacia, mas, na prática, isso nem sempre é possível. Maria Lúcia, que chorava na delegacia, foi ameaçada com um pedaço de pau pelo ex-marido na noite de um sábado. No domingo, foi ao distrito policial do bairro prestar queixa e acabou sendo orientada pelo delegado a procurar, no dia seguinte, uma delegacia especializada, pois seria “mais bem atendida”, conta ela.

Melhorar a articulação entre os diversos setores que atendem a mulher vítima de violência também é uma necessidade, na opinião de organizações que trabalham com o assunto. Além disso, se espera que, nos próximos anos, o país invista mais em uma parte da legislação que foi mais esquecida: a prevenção à violência. “A lei tem sido aplicada mais na ótica do depois da violência, com ênfase na delegacia e no Judiciário”, aponta Linhares. A delegada Fernades concorda. “Há um círculo da violência que a gente não consegue romper. A vítima, por dó companheiro ou por necessidade, acaba voltando. É preciso investir mais nessa parte psicológica, de empoderar a mulher e fortalecer a autoestima dela, desde a escola. É preciso ensinar desde cedo que ela precisa ser independente e não tem que aguentar um bêbado que bate nela dentro de casa.”

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