Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
O ilegítimo governo provisório, apesar de formalmente legal, está indo fundo numa agenda nada provisória. Ele quer, em pouco tempo, deixar um país restaurado como “terra de negócio”, com reformas estruturais de monta, na surdina. Está promovendo rapidamente reformas constitucionais e políticas que descaracterizam o sentido mesmo da Constituição de 1988 e, pior, que buscam uma volta à bases estruturais da Primeira República, senão antes. Como toda restauração política conservadora, é um desmanche de conquistas de direitos, por mínimas que tenham sido, e uma volta ao que era no passado. Não ao projeto nacionalista e autoritário industrializante, ao seu modo um projeto de construção de uma nação desenvolvida e soberana – primeiro na versão getulista e depois na versão da ditadura militar. No caso brasileiro, trata-se de uma restauração, em contexto de absoluto domínio da globalização neoliberal capitalista, que defende o restabelecimento da total subordinação à lógica global, que está no nosso DNA desde a conquista e colonização. Trata-se de um projeto de Brasil commodity, de negócio voltado para fora. Afinal, como lembra o historiador Luiz Felipe Alencastro, o Brasil é um dos poucos países que carrega o nome da commodity – o pau-brasil -, do “negócio” que foi seu ingresso na globalização, lá nas gêneses do capitalismo (Ver entrevista na Revista SESC, 22(9), de marco 2016). Somos “brasileiros”, nome de profissão, de comerciantes de uma mercadoria.
Afinal, nome a gente recebe, não escolhe. Hoje até nos orgulhamos de sermos brasileiras e brasileiros. Mas por que lembro aqui a restauração de um projeto de país, cujo nome de “negócio” está no DNA? Primeiro, porque somos ainda muito dependentes de commodities – agronegócio (soja, açúcar, café, pasta de celulose, carnes), minerais (ferro, alumínio, ouro) e agora as enganosas possibilidades do extrativismo do petróleo do pré-sal. Segundo, porque toda agenda que está sendo posta na mesa pelo governo provisório tem priorizado pôr no centro os tais fundamentos dos negócios e do livre mercado, como expressões de única possibilidade para o país. Tudo que sai da Fazenda e Banco Central – representantes dos “donos” do país – só visa a saúde de uma economia voltada à acumulação, a mais livre e selvagem possível, sem veleidades de pagar por direitos de cidadania. Em terceiro lugar, porque na semana que passou, em reunião com representantes da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), mais conhecida como “bancada ruralista”, com 243 dos 594 congressistas, o presidente Temer prometeu dar prioridade a uma assombrosa agenda restauradora, de verdadeira volta ao passado: rever a demarcação de terras indígenas e o licenciamento ambiental, além de permitir a compra de terras por estrangeiros, hoje muito restrita. Se associarmos isto ao que já tramita no Congresso – o novo Código da Mineração e a proposta de revisão do sistema de partilha na exploração das reservas do pré-sal – temos o quadro completo de uma restauração, só faltando voltar ao regime imperial ou, pior, ao estado colonial. Que tudo isto é um projeto de associação sem pejo aos interesses das grandes corporações que controlam a globalização hoje no mundo é só observar o que o ministro Serra, de relações exteriores, vem propondo e começando a fazer.
Que sina! Até ontem pensávamos que retrocessos assim não seriam mais possíveis. É normal que democracias, por definição façam pactos de incertezas permanentes, tenham vais e vens próprios da disputa embutida nos seus princípios e valores éticos. Mas que em sua vigência legal seja possível um golpe restaurador de tamanha monta, que nega a democracia em sua essência, é algo assustador. Fico inteiramente apavorado e perplexo que ainda haja setores de nossa classe dominante tão retrógrados e com poder de desenhar o futuro – aliás, a volta atrás – do país. Onde erramos ao ponto que tal agenda, sem ter ganho nenhuma eleição, mesmo com o financiamento empresarial que até aqui contaminou toda a expressão cidadã pelo voto, possa ser pregada e, pior, possa se viabilizar politicamente?
O único e trágico consolo é que não somos um caso isolado. O mundo inteiro caminha, por diferentes processos e formas, para o mesmo. Estamos diante de uma grande restauração sob o comando dos donos de fato, do 1% da humanidade. Democracia para eles não é um “bom negócio”. Não é bom negócio a demarcação de terras indígenas, de limitar a acaparação de terras e de se submeter a licenciamentos ambientais condicionantes – formas de promover bens comuns que limitam a privatização total e a acaparação e busca da exploração sem freios dos recursos naturais – pois vão contra um desenvolvimento do… bem-estar dos detentores do capital. Não é “bom negócio” pôr os direitos acima e com prioridade sobre acumulação privada de lucros e rendas. Onde isto vai dar? No caso do Brasil é possível dizer que se quer reconciliar o país com o nome, Brasil, de um negócio, de commodity. Será possível? Talvez, mas depende de nós impedir isto, contra quem quer e contra a acachapante globalização. Outro Brasil e outro mundo sempre serão possíveis.
Temos o Brasil como nome que, mesmo com tal história no passado, nos dá identidade e orgulho. Não somos um “negócio”, um país à venda. Isto precisamos bradar em alto e bom som, sempre! Isto pode constranger os “restauradores” do velho, mais do que imaginamos. Precisamos voltar a valorizar a diversidade étnica e racial que por história contraditória carregamos, que dá energia de povo e força diante de adversidades como agora. Temos muita coisa que não nasceu como negócio e é um bem comum essencial para o que somos: a música, o samba, o jeito de ser alegre apesar de tudo, o território com suas maravilhas, apesar explorado e agredido como tem sido. As frações hoje majoritárias de nossa classe dominante, com mentalidade colonizada e colonizadora, não tem como vencer um povo determinado. O desafio é não esmorecer na construção de nossos imaginários soberanos de felicidade, com democracia e com sustentabilidade. O “negócio” também pode acabar! No momento histórico, a serpente do “negócio” Brasil está alojada em Brasília, no Jaburu, no Congresso e no subserviente Judiciário. A hora e a vez de agir para reverter isto cabe a nós, cidadania, mesmo começando apenas construindo nossas trincheiras de resistência, onde poderemos praticar a liberdade de pensar e ousar.