O Brasil vai viver uma nova realidade no próximo processo eleitoral. É que nas eleições municipais marcadas para outubro já estarão válidas novas regras – entre elas, a que elimina a possibilidade do financiamento empresarial. Os candidatos poderão recorrer apenas a recursos do Fundo Partidário ou doações de pessoas físicas. Além disso, há outras mudanças, como a redução de 90 para 45 dias de campanha oficial e a exibição de propaganda eleitoral no rádio e na televisão por 35 dias. Tudo isso vai alterar bastante a configuração das historicamente milionárias campanhas políticas brasileiras. Os candidatos terão de disputar um lugar na administração pública com acesso a menos dinheiro e tempo.
De olho nesse cenário e diante de dúvidas que não existem apenas no Brasil – a doação empresarial às campanhas políticas são motivo de muita discussão mundo afora -, seis comissões da OAB SP promoveram um debate na noite desta quinta-feira (09/06), na sede da Secional da Ordem. A conversa abordou principalmente financiamento: origem do dinheiro, doação corporativa e a contribuição por parte dos cidadãos. “Quem paga o preço da democracia? É uma pergunta que se faz no Brasil, nos Estados Unidos, na Espanha, na Alemanha e em muitos outros lugares”, disse Márlon Reis, cofundador e membro do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) e um dos redatores do texto da Lei da Ficha Limpa. Reis, que é doutor em sociologia jurídica e instituições políticas pela Universidade espanhola de Zaragoza, foi um dos convidados trazidos pelas Comissões de: Controle Social dos Gastos Públicos, Contra Caixa Dois nas Campanhas Eleitorais, Combate à Corrupção e Improbidade Administrativa, Ética Pública e Direito Administrativo. Juntas formaram uma força-tarefa que visa estudar propostas anticorrupção em diversas frentes.
Na ocasião, Reis disse que vê um avanço social no fato de os brasileiros, finalmente, começarem a olhar com atenção para o tema. “Nunca fizemos discurso contra a participação política de empresas e empresários”, resume. Ele corrobora o que defende com dados. Em 2002, uma determinada companhia fez doação da ordem de R$ 200 mil. Mas em 2014 essa cifra, proveniente da mesma empresa, chegou ao patamar dos R$ 135 milhões em doações. Para ele, a companhia decidiu, em algum momento de sua trajetória, que seria importante eleger pessoas e, então, optou pela prática de tal maneira que, dos 513 deputados federais, 106 foram financiados por ela. Reis disse, ainda, que 354 deputados federais tiveram suas candidaturas financiadas por apenas dez empresas. “Isso não é financiamento à democracia feito pelo empresariado brasileiro. Mas um movimento de um pequenino número de empresas que decidiu entrar para a política como empresa para defender seus interesses. Há, então, representantes de empresas e não da sociedade”.
Ao criticar duramente o modelo, Reis diz que o sistema inclusive prejudica outros representantes da iniciativa privada, já que o contato direto entre financiador-financiado afeta a disputa por contratos governamentais em condição de igualdade. “Isso não é capitalismo. Isso rompe com as bases do mercado liberal, à medida que afeta a competitividade de empresas que têm condições técnicas para concorrer a um determinado contrato.
Experiência norte-americana: momento sombrio
Participou do encontro o especialista em Reforma do Financiamento de Campanha Eleitoral, Ética nos Governos, Prática de Lobby e Impacto do Dinheiro na Política da ONG dos EUA Public Citizen, Craig Holman. O americano contou a experiência dos Estados Unidos que, após décadas de avanços para formatar um sistema de eleições transparentes, regrediu a ponto de viver hoje o pior cenário já visto em sua história. Na linha do tempo, o país editou leis que proibiram doações corporativas, puseram limite a valores doados por pessoas – havia teto de mil dólares após legislação de 1976 – e, entre outras regras posteriores, conseguiu estruturar um processo que permitia também saber a origem de todo o dinheiro doado. “Estávamos chegando perto do sistema perfeito, mas em 2010 tudo isso desmoronou”, contou Holman.
De acordo com o especialista, houve mudança na Suprema Corte e o tribunal passou a intervir e reverter leis de financiamento de campanha. O pontapé foi um caso que ficou conhecido como Citizens United. Segundo Holman, a decisão permitiu que as corporações voltassem a fazer gastos ou doações ilimitadas em eleições. “Essa decisão varreu o sistema. Ignoraram todos os precedentes nos tribunais. E, aí, vimos o desmoronamento de um sistema de financiamento de campanha que era bastante sólido”, avaliou. O primeiro impacto foi o aumento de volume de dinheiro nas eleições federais a ponto de, em 2012, o país alcançar um recorde de gastos da ordem de US$ 7 bilhões. Ele diz que as eleições de 2016 alcançarão US$ 10 bilhões. Holman chama atenção para a existência de grupos de origem obscura que ajudam a financiar as eleições. “Não são formados nem por candidatos, nem por partidos e não se sabe quem são. Podem ser até sindicatos criminosos, não sabemos, é um dinheiro sombrio”, acrescenta.
Para ele, a eleição deste ano está fora de controle e vai ser a mais cara já vista, “sem nenhum controle para tentar fazer cumprir a lei”. Mas Craig Holman tem esperança: as pesquisas de opinião pública apontam que 84% dos norte-americanos, eleitores de todos os partidos políticos, cansaram do cenário. “Estão fartos de ver essa quantia de dinheiro entrar nas eleições e querem transparência”, diz, e acrescenta que talvez esse sentimento se reflita nas urnas, levando a mudanças.
No que diz respeito à realidade brasileira, Craig Holman fez um paralelo com os Estados Unidos na década de 1970 quando, após o escândalo que envolveu Richard Nixon, foi editada uma lei para financiamento de campanha bastante severa. “Pode ser um bom momento para uma reforma no Brasil”, concluiu. (Mais detalhes sobre o que pensa o especialista norte-americano sobre eleições estará disponível na entrevista que concedeu na edição de julho do Jornal do Advogado).
Pressão futura e transparência
O encontro desta quinta contribuiu com os estudos em andamento pelas Comissões da OAB SP. “Esse intercâmbio de informações nos ajuda a saber como o mundo caminha na questão do financiamento de campanhas políticas, o que é fundamental para subsidiar o debate aqui”, comentou Luciano dos Santos, presidente da Comissão Contra Caixa Dois nas Campanhas Eleitorais da Secional. “Apesar das mudanças estabelecidas para essa eleição, a questão do financiamento empresarial, por exemplo, ainda não está definida”. Santos lembra que há no Senado uma proposta de Emenda Constitucional que ainda considera possibilidade da volta da prática.
Para Márlon Reis será difícil manter a proibição. “Após essas eleições deverá vir um tsunami, em busca do retorno da situação anterior por conta do tamanho dos interesses envolvidos”. Independentemente do desfecho no futuro, no entanto, toda a discussão trará avanços para o país, acreditam participantes do encontro. Já neste ano, ao menos uma iniciativa visa incentivar a doação por parte dos cidadãos. Batizada como ‘Voto Legal’, do MCCE e parceiros, a plataforma reúne um site e um aplicativo que permitirão isso. “Doar é um ato político”, disse Reis. “Queremos que as pessoas participem, é uma mudança de cultura nesse processo todo”. Como outra exigência válida a partir das eleições de outubro será declarar os valores arrecadados em prazo de até 72 horas, o projeto também quer ajudar a fiscalizar os portes de campanha e os valores declarados. Na avaliação de Reis, transparência e controle são os passos fundamentais para o controle do caixa dois.
Também participaram do encontro os presidentes de Comissões Márcio Cammarosano (Combate à Corrupção e Improbidade Administrativa), Oscar Azevedo (Ética Pública), Jorge Eluf (Controle Social dos Gastos Públicos), e Adib Sad (Direito Administrativo).