Por Bia Barbosa e Helena Martins*
Nem mesmo quem trabalha com comunicação e monitora a mídia de massa há muitos anos deixa de se surpreender com a atuação programada, articulada e intencional dos principais canais de TV sobre a crise política que tomou conta do Brasil.
Na sexta-feira 18, quando milhares de brasileiros saíram às ruas contra o impeachment, a mídia buscou, uma vez mais, desconstruir um dos lados desta disputa e fortalecer o outro. Os exemplos começam a ficar gritantes – e revelam a clara decisão dos grandes grupos de comunicação de atuar como protagonistas neste processo.
O foco das manifestações
Apesar de todos os atos pelo Brasil terem sido convocados com o mote da defesa da democracia e contra o golpe, eles foram retratados exclusivamente como manifestações em defesa do governo Dilma e do ex-presidente Lula, uma posição que existia nas ruas, mas que não era hegemônica.
A incapacidade – ou má-fé – da grande mídia em entender a pluralidade de fatores que levou as centenas de milhares de pessoas às ruas do País resultou em comentários “surpresos” de jornalistas como Eliane Cantanhêde, da GloboNews. “É surpreendente que essas pessoas de vermelho, que sempre foram às ruas pra defender o combate à corrupção e um país melhor, hoje estejam nas ruas condenando o Sergio Mouro, que é quem encampa essa bandeira, que sempre foi dessas pessoas”, afirmou a comentarista.
Se Cantanhêde e a cobertura da GloboNews entendessem – e informassem seus telespectadores – que os protestos foram em favor da democracia, que a imensa maioria dos que saíram às ruas de vermelho o fizeram por entender que há um golpe ao regime democrático em curso e que os questionamentos ao juiz Sergio Moro não foram exclusivos das ruas, mas de inúmeros juristas, advogados e promotores que apontam abusos em sua conduta, o tom não poderia ser de surpresa.
O perfil dos manifestantes
Uma vez mais, num comparativo entre os atos do dia 13 e do dia 18, a opção dos meios em retratar o perfil dos manifestantes de maneira bem diversa contribuiu para deslegitimar um dos lados que foi às ruas.
A capa do jornal O Globo de sábado 19 é flagrante. Sobre os protestos do dia 13: “Brasil vai às ruas contra Lula e Dilma e a favor de Moro”. Sobre o dia 18: “Aliados de Lula e Dilma fazem manifestações em todos os estados”.
Ou seja, no domingo 13 foi “o Brasil” que foi às ruas. Na sexta, “os amigos de Lula e Dilma”. Na página seguinte, o editorial do veículo defende o golpe abertamente: “O impeachment é uma saída institucional da crise”, afirma O Globo.
“A manifestação de hoje mostra que quem está indo pra rua é a militância. Não é o conjunto do povo brasileiro”, disse Cantanhêde – ignorando que o conjunto do povo brasileiro também esteve muito longe das ruas no domingo passado, e que aqueles que escolhem exercer sua cidadania de forma organizada são, também, brasileiros.
“Só 10% defendem o governo, mas são esses que têm experiência de fazer manifestação. Hoje foi uma convocação de militância – são movimentos muito organizados, com muita experiência. No domingo foram cidadãos (…) Domingo não foi o PSDB ou DEM que convocaram as pessoas para as ruas. Foi um movimento espontâneo. Verde e amarelo não é cor de partido (…) Quem foi pra rua no domingo foi gente bem informada, que acompanhou tudo o que aconteceu com a Petrobras, que apoia o que vem sendo feito pelo Sergio Moro, que apoia este momento, em que se se constrói uma nova vida para o Brasil e uma nova cidadania. Isso é muio diferente do que aconteceu hoje”, criticou.
Ou seja, não apenas o principal canal de notícias do País desinforma seus assinantes sobre os grupos e partidos que financiaram as manifestações do domingo como insinua que os cidadãos que ocuparam as ruas pró-democracia são ignorantes e mal informados simplesmente porque não apoiam a queda do governo.
Vale lembrar que, em termos de diversidade, a constatada, em pesquisa, entre os que usam o verde e amarelo é infinitamente mais restrita do que a que foi às ruas na última sexta.
A abordagem, proposital, contribui também para reforçar o discurso, nas redes sociais, de que os contrários ao impeachment são militantes pagos, beneficiários do Bolsa Família (como se isso os fizesse cidadãos de segunda categoria) e gente incapaz de tomar uma decisão refletida sobre por que defender o Estado Democrático de Direito no País.
Como a mídia também invisibiliza as inúmeras declarações de juristas, pesquisadores, professores universitários, artistas, profissionais liberais, advogados e jornalistas que são contra o golpe, o caminho fica aberto para este discurso, que beira o fascismo.
Os números dos protestos
A comparação entre o tamanho das manifestações foi uma das tônicas do noticiário. Repetidos à exaustão, os números inferiores dos protestos de sexta em relação aos de domingo passado também foram um elemento central para deslegitimá-los.
O Jornal Nacional, que já tinha abordado a questão na sexta, voltou a falar dela no sábado 19, numa reportagem somente sobre o comparativo das presenças. No Jornal das Dez, da GloboNews, a apresentadora Renata Lo Prete avaliou: “Domingo foi muito maior. Mas, num momento como este, as manifestações desta sexta foram expressivas não para conter a grande rejeição ao governo, mas para mostrar que os aliados de Lula e quem está disposto a defender Dilma vão fazer barulho e ajudar o governo a atrasar os processos”.
Cristiana Lobo completou: “Conseguem fazer um barulho, mas sem comparação”.
Os números, sabemos, são fundamentais na narrativa midiática, pois ajudam a atribuir veracidade aos discursos e avaliações. Neste sentido, a cobertura de domingo preocupou-se em mostrar, repetidas vezes, que o número de participantes dos protestos contra o governo cresceu em relação ao maior ato realizado com este propósito, no ano passado.
A cobertura de cada grande cidade contou com esse elemento, criando a ideia de que todo o país, cada vez mais, está se engajando nessa reivindicação. O mesmo não se viu na última sexta-feira. Comparações com atos anteriores poderiam mostrar que a preocupação com os rumos da crise política do país também aumentou. A opção, contudo, foi de categorizar e estigmatizar os que foram para as ruas no 18, distanciando os leitores e telespectadores de uma possível associação com eles.
A intensidade da cobertura
Já falamos neste blog como uma cobertura sem intervalos, ao longo de 12 horas, com a entrada de correspondentes em todo o país e a imagem das pessoas chegando nas manifestações de domingo foi fator decisivo para que muitas pessoas se somassem aos protestos contra Lula e Dilma.
Na sexta, foi tudo diferente. A atriz Leandra Leal chegou a questionar o silêncio da imprensa na cobertura dos atos: “@GloboNews estou trabalhando e assim como domingo e ontem, queria acompanhar as manifestações, cadê a cobertura ao vivo?”, questionou em seu perfil no Twitter.
Durante a tarde, quando já havia atos sendo realizados, o jornalismo do Grupo Globo não deu o destaque merecido à situação. Na TV fechada, notícias sobre temas diversos – que tinham sumido do noticiário nos dias anteriores – foram exibidas.
Reportagem com o resgate dos fatos da última semana – por demais conhecidos – dividiu espaço com as que versavam sobre os atos, que aconteciam naquele momento. O reconhecimento da importância e dos impactos políticos da tomada das ruas, tida como decisiva no domingo, também não veio desta vez. Foram raras as informações sobre a dimensão dos atos para além dos que ocorriam no Rio, em São Paulo e em Brasília.
Mais uma vez, segundo a Globo, não era o país que estava nas ruas. A abordagem só foi alterada quando a dimensão do ato na Paulista já não podia ser negada.
O já citado Jornal das Dez destinou um minuto para mostrar os atos em algumas capitais, e depois mais um minuto para os atos contrários e um minuto para as manifestações de delegados da PF e procuradores em apoio à operação Lava Jato.
No Jornal Nacional, o desequilíbrio numérico também foi gritante. Depois de um rápido flash da Avenida Paulista no início do telejornal, a matéria sobre os atos em todo o país foi ao ar somente no minuto 25 do programa.
Todo o tempo anterior foi destinado a apresentar críticas e “denúncias” contra o ex-presidente Lula –como o conteúdo dos grampos, que não demonstram ilegalidades e cuja legalidade sequer foi questionada pelos jornalistas. A matéria dos atos recebeu 7 minutos do tempo do JN, quanto outros 17 foram destinados a acusações.
Da Bahia, recebemos a observação do jornalista Alex Pegna Hercog: “No dia em que milhares foram às ruas contra o golpe, essas são as manchetes de alguns dos mais acessados portais da internet da Bahia.
Ibahia (Correio, grupo Globo, de propriedade do prefeito ACM Neto): “Troféu Dodô e Osmar acontece 28 de março; veja lista de indicados”; “Aulão com FitDance e Papazoni agita academia em Patamares”; “Vai sair final de semana? Veja a programação cultural da capital”
A Tarde (de propriedade dos herdeiros do fundador Simões Filho): “Anitta manda indiretas para suposto affair”; “Líder do Maroon 5 quase mostra demais em show”; “Titto nega traição com mulher de diretor da Globo”.
No Fantástico deste domingo (20), nada sobre os protestos que mobilizaram todos os estados na última sexta. Muito diferente do que aconteceu no domingo 13.
Os enquadramentos
A sutileza da cobertura chegou ao enquadramento das imagens. O estudioso das comunicações e também deputado federal Jean Wyllys, do PSOL, que está na oposição ao governo (vale lembrar), destacou a clara confusão da imprensa entre jornalismo e propaganda num post em seu perfil no Facebook:
“O enquadramento das imagens, no domingo, era o mais favorável e permitia ver que tinha muita gente, enquanto na sexta-feira, a câmera estava sempre muito perto ou muito longe, produzindo o efeito oposto. Em algumas cidades, inclusive, as imagens mostraram o momento em que as pessoas ‘estão começando a chegar’ e, tempo depois, o momento em que ‘a manifestação já acabou’, omitindo o momento mais importante: quando a manifestação estava acontecendo. No domingo, esse foi o momento privilegiado”.
Afinal, omitir o crescimento dos atos não favorece seu crescimento, algo importante na estratégia dos veículos de mostrar que “o país está todo contra a Dilma”.
O contraditório
Também diferentemente do domingo, a cobertura dos atos desta sexta foi recheada de informações e comentários sobre o outro lado da disputa. Enquanto no dia 13 as emissoras transmitiram e valorizaram os atos, acrescentando à sua cobertura somente informações e análises que reforçavam a visão daqueles que estavam nas ruas, sem qualquer espaço para visões antagônicas, os atos do dia 18 foram cobertos tendo como pano de fundo exatamente o oposto, ou seja, relatos que contribuíam para abafar a importância dos milhares que estavam nas ruas.
“Temos duas informações legais e quentinhas para os telespectadores: o PRB deixou o governo e a OAB, reunida ao longo do dia todo, decidiu apoiar o processo de impeachment da Dilma Rousseff. É uma informação importante pela conexão com a queda do Collor. José Eduardo Cardozo foi pessoalmente à OAB, fez um discurso defendendo o governo, mas não deu certo (…) É uma derrota expressiva, que tem simbologia para a Dilma Rousseff, no dia em que começa a contar o prazo para a comissão que vai analisar o processo na Câmara”, celebrou a mesma Eliane Cantanhêde, na GloboNews.
Ou seja, no domingo 13, a imprensa não se deteve apenas ao papel de fazer a cobertura jornalística dos atos – algo mais do que justificável, pois eram acontecimentos expressivos que merecem divulgação –, mas atuou como um dos agentes do processo, ao convocar a ida de cidadãos às ruas.
Assumindo para si o discurso simbolizado nas roupas verde-amarelas, a narrativa predominante na grande mídia foi a de que o País estava unido com a justa bandeira do fim da corrupção.
Por outro lado, o que se viu sobre os atos de sexta-feira 18 foi o silenciamento sobre as diversas pautas que levaram as pessoas às ruas e o reforço de uma associação de manifestantes a partidos políticos – estigmatizando todos que exercem o direito constitucional de se organizar desta forma –, para a defesa de um governo envolvido em casos de corrupção.
Mais uma vez, a imprensa extrapola suas funções de informar e coloca a democracia em risco, num jogo às vezes sutil, outras nem tanto, de construção de sentidos e de silenciamentos, que em nada colaboram para a manutenção do Estado Democrático de Direito.
A atuação, sobretudo do Grupo Globo, está clara. A crítica às posturas que suas emissoras e veículos tem adotado, também. Não deixa de ser curioso que a Globo ajudou a levar pessoas para as ruas também na última sexta, nos protestos pela democracia. Mas não por uma postura aberta pró-atos, mas justamente pela prática de manipulação dos fatos, incrivelmente menos disfarçada do que em outros momentos da nossa história – o já citado editorial de O Globo comprova.
Assim, além de defender a democracia, é hora de dar um passo a mais no questionamento sobre o sistema midiático do país. Mais do que nunca, é necessário democratizar os meios de comunicação e transformar as propostas já elaboradas por aqueles que atuam neste campo em bandeiras de quem está indo às ruas contra o golpe.
Afinal, está claro: o poder concentrado da mídia e sua capacidade de construir representações e ideologias pode ser definidor na manutenção ou ruptura da nossa democracia.
* Bia Barbosa e Helena Martins são jornalistas e integrantes do Conselho Diretor do Intervozes.