‘É essencial rompermos com a lógica da financeirização da nossa economia’

 

O difícil ano de 2015 chega ao fim e com ele temos o Brasil convivendo com perspectivas negativas na economia, pelo menos enquanto o imbróglio do impeachment não tiver seu desfecho. Marcado pela virada no discurso do governo e a aplicação de um ajuste fiscal altamente ortodoxo, aliado a uma base parlamentar de extrema fragilidade e viés conservador, vimos 2015 se arrastar numa crise política e econômica, estando o Planalto quase sempre contra as cordas.

 

A novidade dos últimos dias foi a saída de Joaquim Levy do Ministério da Fazenda, juntamente com a decisão do STF [Supremo Tribunal Federal], que anula a comissão do impeachment eleita com as manobras do moribundo presidente da Câmara, Eduardo Cunha [Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB – Rio de Janeiro]. Estes fatos dão uma chance de correção da rota e o retorno da estabilidade, perdida desde as eleições do ano passado.

 

Para analisar esse complexo cenário, fazendo um balanço e apontando possíveis caminhos, o Blog dos Desenvolvimentistas entrevistou o doutor em Economia e especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, Paulo Kliass.

 

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Paulo Kilass, economista.

Ele avalia que o ajuste se sobrepôs pela indisposição do governo em confrontar os privilégios do mercado financeiro; que as propostas de [Michel] Temer [vice-presidente], contidas no documento “Uma ponte para o futuro”, aprofundam o modelo aplicado por Levy. Kliass ainda considera que a tragédia da [mineradora] Samarco – em Mariana [Estado de Minas Gerais] se deu por conta do “modelo de prioridade absoluta concedida aos setores exportadores de produtos primários”, e que a “lógica que orienta as empresas privadas no setor é a maximização dos lucros no curto prazo e nenhuma preocupação com a sustentabilidade social, econômica ou ambiental”.

 

Confira a entrevista.

 

Em sua opinião, que razões levaram o governo a implementar o “ajuste fiscal” que tanto denunciava nas campanhas eleitorais?

 

Paulo Kliass: Imagino que a mudança de discurso e de orientação de Dilma [Rousseff, presidenta], logo após o resultado das eleições, deveu-se a uma grande pressão exercida pelo “establishment”, que se articula em torno do sistema financeiro.

 

Acuado pelo grande capital e com receio de não contar com o apoio do empresariado para exercer seu segundo mandato, o governo terminou por convocar a fina flor do pensamento liberal e conservador para comandar o Ministério da Fazenda. Lembremos que o candidato de Lula era Henrique Meirelles e Dilma chegou a convidar o Trabuco, presidente do Bradesco. No final, acabou ficando com o diretor do banco, Joaquim Levy.

 

Que fatores levaram os cortes a não serem efetivos na consolidação do superávit?

 

Kliass: A busca pelo cumprimento do superávit primário repete um pouco o enredo do que eu costumo chamar de “bom mocismo”, frente aos interesses do sistema financeiro. Em vez de questionar o tratamento privilegiado das despesas com pagamento de juros e serviços da dívida (esses nunca são objeto de cortes, na lógica do superávit primário), a equipe econômica optou por fazer as contas para chegar a tal resultado com as despesas de natureza social.

 

No entanto, como todos os economistas preocupados com a questão do desenvolvimento já alertávamos, o orçamento da União tem percentual expressivo de despesas que não podem ser comprimidas de forma indolor. São determinações constitucionais, gastos com servidores, pagamentos de pensões e aposentadorias, entre outras.

 

Por outro lado, o governo viu as receitas também serem reduzidas. Ele manteve as desonerações e a sinalização para um ajuste recessivo, terminou por comprometer também as receitas com impostos, em função da elevada concentração da nossa estrutura tributária sobre produção e consumo.

 

Este ajuste influenciou a coesão da base aliada no Congresso? Como?

 

Kliass: Minha avaliação é que a natureza ortodoxa do ajuste contribuiu para dificultar ainda mais a coesão da chamada base aliada no Congresso. Por mais que os partidos de sustentação sejam também influenciados pelo que propagam os analistas dos grandes meios de comunicação, o fato é que ninguém gosta de ser conivente com um quadro de menos recursos no orçamento.

 

E assim houve uma completa inversão de sinais políticos, partidários e ideológicos durante as votações do Congresso. Os partidos de oposição de direita votavam contra a pauta de um governo liderado pelo Partido dos Trabalhadores. Temas como superávit primário, desoneração tributária, fator previdenciário e outros eram sujeitos a voto, com histórico completamente invertido sobre o que seria, teoricamente, a verdadeira posição de cada um a respeito do assunto.

 

Considerando que existe uma considerável fatia do mundo político que endossa a tese da austeridade, por que, então, o governo teve e tem enorme dificuldade em aprovar os projetos relacionados?

 

Kliass: Nesse caso, vale a lógica do jogo parlamentar em sentido estrito e o oportunismo dos atores políticos. A oposição de direita faz oposição a qualquer preço e vota sempre contra o governo, ainda que a essência das propostas apresentadas por Levy para o ajuste sejam as mesmas do então candidato Aécio Neves [Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB], derrotado no pleito de outubro de 2014.

 

Com o agravamento da crise política e as dificuldades de compor a maioria no jogo parlamentar, as medidas enfrentam dificuldades para serem aprovadas. A oposição de direita optou por apostar na estratégia do quanto pior melhor, mas acabará percebendo que está prejudicando o próprio país com tal atitude irresponsável.

 

Agora que está claro que o documento “Uma ponte para o futuro” é o programa de governo do “aspirante” ao Planalto, Michel Temer, faz-se necessário analisá-lo. Qual a sua avaliação das propostas de limitação da dívida pública e instituição de uma autoridade fiscal independente? Que efeitos e quem são os beneficiários destas iniciativas?

 

Kliass: A situação fiscal de grande parte dos países do chamado mundo desenvolvido revela que não cabem propostas de limitação de dívida pública para resolver os problemas de natureza macroeconômica. Inclusive, pelo fato de que esse debate geralmente retorna à cena nos momentos de crise e de redução do nível de atividade econômica. E justamente nesses momentos é que o Estado precisa oferecer uma política anticíclica, que envolve também antecipação de gastos, desoneração e outras medidas similares. A limitação do endividamento, por si só, sem entrarmos no detalhe da medida, pode operar com uma trava a esse tipo de ação e dificultar a saída para a crise.

 

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Joaquim Levy, economista ortodoxo, acaba de ser retirado do Ministério da Fazenda pela presidenta Dilma.

A instituição de uma autoridade fiscal independente é a contraparte da proposta de uma autoridade monetária independente. Esta proposta de colocar a independência para o Banco Central no texto da lei já foi muito debatida e criticada. Ficou evidente que se trata de uma jogada para torná-lo completamente dependente do financismo e, aí sim, independente do Estado e da sociedade civil. O controle social e político dos gastos públicos é necessário. Mas isto deve ser realizado com base nas instituições democráticas e republicanas e não com base em inovações de instituições que não asseguram independência alguma.

 

O retorno ao modelo de concessões do petróleo pode ajudar a Petrobras em suas dificuldades financeiras? As dificuldades pelas quais passa a estatal são provenientes da Lava Jato, ou há outros fatores?

 

Kliass: As dificuldades atuais por que passa a Petrobras não podem ser explicadas apenas pela Operação Lava Jato. A queda brutal nos preços do petróleo afeta, de forma significativa, as expectativas de investimento em toda a cadeia petrolífera e em todos os continentes.

 

O modelo de partilha continua sendo a melhor forma de promover a exploração dessa riqueza. As grandes empresas multinacionais têm interesse em virem para cá, mas a atual conjuntura de preços reduzidos não é o melhor momento. Cabe aguardar a oportunidade para esse tipo de oferta e não reduzir as exigências a qualquer preço, para viabilizar os investimentos.

 

Além disso, vale observar que, apesar de todos os problemas financeiros que enfrenta, a Petrobras continua batendo todos os recordes físicos, nos números relativos à quantidade de exploração de óleo e gás. No entanto, é inequívoca a importância do complexo do petróleo para a atividade econômica do Brasil e, em especial, a contribuição dos investimentos nesse setor para a formação bruta de capital fixo, no país

 

Quais seriam as consequências da eventual liberação da terceirização das atividades-fim? A dinâmica do mercado interno seria afetada?

 

Kliass: A eventual liberação generalizada da terceirização, inclusive, para as atividades-fim, é um sério risco para a desconstrução de uma rede de apoio político-institucional às relações trabalhistas, em nosso país.

 

As tentativas do empresariado e do grande capital são antigas. Eles atuam em várias áreas, como a privatização da Previdência Social, a eliminação dos direitos previstos na CLT [Consolidação das Leis do Trabalho], mudança na legislação do salário mínimo, etc.

 

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Vice-presidente Michel Temer rompe com o governo e lança documento com propostas para o que seria um governo seu, em caso de impeachment da presidenta Dilma.

A generalização dos mecanismos de terceirização seria a precarização absoluta das relações de trabalho e um sério retrocesso na garantia dos direitos dos trabalhadores.

 

Outro ponto relevante também do ponto de vista econômico é o desastre das barragens da Samarco, em Mariana. O modelo e estrutura econômica nacional têm alguma ligação com esta tragédia? Que lições se pode tirar deste episódio?

 

Kliass: O modelo de prioridade absoluta concedida aos setores exportadores de produtos primários está na base da tragédia criminosa da Samarco, em Mariana. A privatização da Vale e a falta de controle do poder público sobre as atividades da mineradora contribuíram para aumentar os riscos da operação. A lógica que orienta as empresas privadas no setor é a maximização dos lucros no curto prazo e nenhuma preocupação com a sustentabilidade social, econômica ou ambiental da região e do país. A solução passa por uma retomada do controle público sobre esse tipo de atividade e a exigência de pagamento de multas, além do ressarcimento dos prejuízos causados.

 

O cenário latino-americano se caracteriza por um retorno aos ditames ortodoxos, seja na eleição de [Mauricio] Macri [atual presidente da Argentina], na maioria oposicionista venezuelana ou no ministro da Fazenda, Joaquim Levy. Como isto influi na economia nacional, regional e global?

 

Kliass: Assistimos a uma inflexão conservadora em alguns países do nosso entorno, como a Venezuela e Argentina. No caso brasileiro, houve pouca mudança substantiva na essência da política econômica conservadora, mesmo desde 2003. O que ocorreu foi uma possibilidade de realizar importantes processos de redistribuição de renda e de conquistas sociais, com base na janela de oportunidades oferecida pelo período de “boom” das “commodities”. No entanto, como o processo de inclusão social e econômico deu-se mais pela via do consumo do que pela institucionalização de reformas duradouras, agora, corremos o risco de atravessarmos um período de retrocesso.

 

O caminho deveria passar por uma retomada do projeto de desenvolvimento nacional, com maior grau de autonomia do Brasil face a essa atração para uma inclusão enfraquecida na dinâmica globalizadora. Felizmente, o Brasil tem um mercado interno que assegura atravessar períodos de maior turbulência, mas, para tanto, precisa retomar o processo de industrialização e fomentar os processos internos de agregação de valor à nossa atividade produtiva.

 

Além disso, é essencial rompermos com a lógica da financeirização da nossa economia e recuperarmos o protagonismo da geração de valor nas atividades do mundo real.

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