” A luta pelo poder popular é uma luta anticapitalista”, Felipe Addor,

No final do mês de novembro ocorreu no Rio de Janeiro o Seminário Internacional Poder Popular na America Latina. O espaço promoveu intercâmbios de reflexões e de experiências sobre os caminhos para o fortalecimento e consolidação do poder popular, tomando por base as constantes experiências de democratização do Estado e da tomada de poder pelo povo, seja a partir de movimentos sociais, de organizações dos trabalhadores, de povos indígenas, seja por iniciativas de governos locais ou até nacionais como uma busca de repensar o sistema democrático representativo liberal.

O site da Plataforma organizou uma entrevista com um dos coordenadores do evento,  Felipe Addor, Professor do Núcleo Interdisciplinar para o Desenvolvimento Social – NIDES/UFRJ. Vamos conferir:

Felipe, nos conte como foi pensar no Seminário Internacional ” Poder Popular na América Latina” em um contexto político onde a participação social é o grande eixo nas principais reformas propostas nos países latinos, ao mesmo tempo em que as forças conservadoras atacam, de forma sistemática, os princípios da democracia direta e participativa?
A proposta do Seminário (SIPPAL) nasceu após identificarmos a importância de haver um troca de experiências sobre práticas de poder popular que são desenvolvidas em diversos países da América Latina. Embora a participação social tenha entrado como uma pauta importante em muitos países, principalmente pautada onde venceram governantes ligados aos movimentos sociais, percebe-se que, na maioria dos casos, ainda temos muitas dificuldades de promover uma cultura ampla de participação popular. Seja porque os espaços de participação são criados, mas a população não os toma para si. Seja porque, os governantes têm dificuldades de abrir mão do seu poder em prol da população. Além disso, a reflexão sobre o tema ainda estrutura-se muito com base nos teóricos europeus. Ainda é incipiente a construção de uma teoria democrática com base na experiência latino-americana. Assim, acreditamos que aprendendo com as várias experiências de poder popular, que envolvam ou não o Estado, realizadas pelos povos da América Latina, podemos conceber melhoras estratégias de popularização da tomada de decisão, além de nos permitir debater a questão democrática a partir do concreto, do real que vem sendo desenvolvido em nossos países, por nossos povos. O SIPPAL pretende fortalecer as lutas nos diversos territórios por uma integração pelos povos. São inúmeras as experiências de poder popular construídas pela população, na maioria das vezes inspiradas nas práticas comunitárias e coletivas dos povos tradicionais, e que enfrentam resistência, boicote, repressão das forças do Estado. Esperamos que o Seminário, e a articuação construído em seu entorno, possa fortalecer essas práticas através do intercâmbio e da socialização de experiências.

Felipe, como balanço, nos conte alguma das experiências que foram discutidas no Seminário e que se aproximam do exercício do poder popular.
O Seminário não buscou exaltar experiências, mas trazer reflexões e aprendizados do que vem sendo experimentado para que isso oriente estratégias de transformação, no âmbito local, nacional ou continental. Entre muitas, posso citar as: práticas democráticas inovadoras realizados pelo povo de El Alto, na Bolívia, apresentadas por Pablo Mamani; o Proceso de las Comunidades Negras, de Abencio Caicedo, que luta contra o estado mexicano e os paramilitares pelo seu reconhecimento étnico e cultural; o movimento quilombola brasileiro, de Ronaldo dos Santos, que ainda enfrenta enorme resistência quanto ao seu reconhecimento como comunidade tradicional e sofre para garantir suas terras contra a ambição dos latifundiários; além dos fortes movimentos dos trabalhadores rurais no Brasil, Movimento dos Pequenos Agricultores e Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, que mostraram desafios e conquistas. Na mesa-redonda que buscou articular o tema da democracia política com a demcoracia econômica, também foram discutidos, de forma mais ampla, os avanços de poder popular em âmbitos mais amplos, tanto historicamente, com a apresentação dos “cordões industriais” da época de Allende no Chile, quanto nos tempos atuais nos diversos contextos políticos de Cuba, Venezuela e Brasil

Como pautas como economia, judiciário, comunicação, integração nos países latinos se inseriram nas reflexões sobre a temática da democratização do poder?
Certamente, cada um desses tópicos demandaria um seminário a parte. Como falei anteriormente, demos destaque, em uma mesa-redonda, à necessidade de transformação da economia. Uma luta pela democratização política necessariamente passará, mais cedo ou mais tarde, pela democratização da economia. A luta pelo poder popular é uma luta anticapitalista; ou pelo menos uma luta contra esse capitalismo monopolista, neoliberal, rentista, concentrador que vigora em nossos países. A incompatibilidade entre o capitalismo atual e uma sociedade democrática já foi comprovada reiteradamente nos últimos anos ao redor do mundo. O similar acontece com a comunicação. Enquanto não avançamos na consolidação de meios de comunicação mais diversos, menos monopolizados, e que valorizem as diferentes culturas e lógicas de compreensão do mundo, seremos sempre vítima da manipulação de informações por algumas famílias. É preciso fortalecer e ampliar os meios de comunicação alternativos e comunitários, o que é, particularmente, uma agenda extremamente atrasada no Brasil. Enfim, são inúmeros os temas que perpassam essa luta e que precisam ser transformados, ter paradigmas quebrados para que possamos avançar. Atualmente, qualquer proposta que ameace diminuir os poder dos poderosos resulta em um enorme reação das elites, da mídia. Podemos exemplificar com a resposta da mídia à eleição direta para o judiciário realizada por Morales na Bolívia, em 2011, ou com o desespero dos parlamentares brasileiros à proposta de constituinte ou de um simples sistema de participação social proposta pelo governo brasileiro. O medo da participação popular, “demofobia”, impera em nossos países.

Por fim, quais são as especificidades, no decorrer da história, para analisarmos o poder popular na America Latina?
Do pouco que pude aprender das pesquisas para meu doutorado e outras reflexões mais recentes, cada vez mais vejo a importância de compreender as práticas políticas dos povos tradicionais. O povo latino-americano conformou-se a partir de uma grande mistura de raças, cada uma delas contribuindo com sua forma de convivência. Assim, quando você busca compreender as origens de várias experiências de poder popular na região, há fortes influências das práticas comunitárias dos indígenas ou dos negros. Entretanto, nosso sistema político formal é completamente estruturado a partir da cultura política europeia. Assim, ele já nasceu excludente, porque ignora a forma de tomada de decisão, de definição de lideranças, de participação, que está presente em grande parte da população latino-americana. A teoria democrática tradicional exalta o cidadão, a participação política individualizada, a relação individual entre representante e representado. A questão do poder popular na América Latina deve ser um catalisador para uma revisão profunda dessa teoria; ou da construção de uma nova teoria democrática latino-americana, voltada para nossa realidade, que beba das experiências democráticas das nossas regiões, das práticas comunitárias dos indígenas, dos afrodescendentes. O que nos coloca em uma nova encruzilhada. O avanço do poder popular, do poder comunitário em nossos países levará, necessariamente, a uma diminuição do poder dos nossos “representantes” na estrutura democrática tradicional. É o conflito que já se percebe na incipiente construção de um Estado Comunal na Venezuela. Ainda são enormes os desafios, mas acreditamos que uma integração da América Latina feita a partir dos povos (não dos governos ou das economias) nos permitirá avançar para construir uma democracia mais popular e efetivamente democrática.

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