Decreto de Bolsonaro com mudanças na saúde indígena dispara alerta no movimento indigenista

Beatriz Juca – El País

Mudanças recentes no modelo de gestão de políticas para a saúde indígena feitas pelo presidente Jair Bolsonaro acionaram um alerta no movimento indigenista brasileiro. Embora o Governo tenha recuado da decisão de extinguir a Secretaria Nacional de Saúde Indígena (Sesai), como planejava inicialmente, e reacomodar suas funções na nova Secretaria de Atenção Básica, um decreto publicado na semana passada (e em vigor desde sexta-feira) indica o fechamento de cargos e a extinção ou alteração de alguns departamentos. Ainda não se sabe como essas alterações deverão repercutir na ponta, especialmente nos Distritos Sanitários Indígenas (DSEIs), que já vêm enfrentando dificuldades para fixar médicos desde que os cubanos deixaram o programa Mais Médicos. Em nota, o Ministério da Saúde diz que mudanças buscam dar mais eficiência às políticas públicas e que não haverá descontinuidade das ações.

O decreto 9.795 não trata exclusivamente da saúde indígena. Remaneja cargos e apresenta, de forma geral, uma nova composição do Ministério da Saúde. Também institui um prazo de 30 dias a partir da validade da nova legislação para que o ministro Luiz Henrique Mandetta apresente mais detalhes sobre as mudanças em distintas áreas. Os trechos que tratam sobre a saúde indígena citam repetidas vezes a “integração” do subsistema ao SUS. Isso preocupa as lideranças, que temem uma abertura para a municipalização gradual do setor, deixando-a mais vulnerável do que agora, que é gestionada pelo Governo federal. Além disso, o decreto extingue o Departamento de Gestão da Saúde Indígena, que até então tinha a responsabilidade de garantir as condições necessárias à gestão do subsistema, programando a aquisição de insumos e coordenando as unidades de atendimento.

“Esse decreto traz uma preocupação muito grande porque deixa a Sesai fragilizada. O departamento que foi extinto é um dos mais importantes, era onde estava a gestão e o controle social”, diz o líder indígena Paulo Tupiniquim, da aldeia Caieiras Velha, a cerca de 80 quilômetros da capital do Espírito Santo. Ele conta que os cerca de 4.000 indígenas Tupiniquim e Guarani que vivem na região são atendidos por cinco equipes de saúde fixas e mais uma volante, mas ainda enfrentam problemas como unidades de saúde sem a estrutura adequada e mesmo a falta de insumos. “Muitas vezes, os funcionários têm que fazer vaquinha para adquirir alguns materiais”, diz.

Paulo avalia que a qualidade do atendimento na ponta é satisfatória, mas há problemas de gestão que já eram um gargalo e que podem ser agravados caso o Governo não remaneje esta função para um departamento específico. “Por exemplo, os insumos são comprados por processos a cada cinco anos, então falta material pela demora”, afirma. Ele ainda reclama que as mudanças sinalizadas pelo Governo por decreto não foram discutidas com os indígenas e diz ter receio de que a participação deles na gestão seja reduzida ou eliminada. No último mês de abril, lideranças já se queixavam de que o presidente não estaria disposto a ouvi-las, quando o Governo extinguiu a Comissão Nacional de Política Indigenista, uma plataforma de interlocução entre as etnias e a gestão federal que teve uma atuação fundamental para a criação da Sesai. “Agora [com o novo decreto], o que a gente entende é que o controle social está fora da Sesai”, diz Paulo.

A conquista de um atendimento diferenciado

Há 20 anos, o movimento indígena conquistou um subsistema de saúde mantido pela União que levasse em conta as particularidades étnicas, culturais e epidemiológicas de cada um dos 305 povos indígenas que vivem no país. O respeito às tradições de cura de cada povo, por exemplo, deve ser incorporado ao atendimento público. Uma secretaria especial coordena ações para os atendimentos que são realizados nos 34 distritos sanitários que funcionam nas comunidades. Essa estrutura —que já integra o SUS, mas tem especificidades próprias— trouxe avanços no acesso aos serviços de saúde, embora ainda tenha o desafio de conseguir fixar profissionais e integrá-los aos conhecimentos e crenças das etnias. No início do ano, o ministro Mandetta chegou a criticar esse subsistema ao considerá-lo “paralelo” ao SUS e disse avaliar o repasse de parte dos serviços de saúde indígena a estados e municípios.

As declarações provocaram reação de lideranças, que fizeram manifestações em diferentes Estados. Mandetta acabou voltando atrás e decidiu manter a Sesai. Com o decreto, porém, as lideranças indígenas voltam a temer retrocessos na promoção de políticas específicas para essa população com uma possível municipalização do sistema a longo prazo. “Essas mudanças comprometem o funcionamento da Sesai. O ministro Mandetta critica uma realidade que a Sesai alcançou ao longo de anos em que os serviços chegaram onde nunca havia chegado uma equipe médica”, afirma o líder indígena Sandro Ticuna. O programa Mais Médicos foi importante para a chegada desses profissionais nas aldeias. Atualmente, há 368 profissionais atuando nos DSEIs. Outras 18 vagas foram abertas no último edital do programa lançado pelo Ministério da Saúde.

A pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), Ana Lúcia Pontes, diz que ainda há poucos elementos para analisar os impactos reais das mudanças promovidas pelo Governo Federal na saúde indígena, mas que as alterações sinalizadas no decreto já são preocupantes, especialmente no contexto político atual, em que o presidente Bolsonaro vem defendendo políticas integracionistas para esses povos. Ela lembra que o subsistema foi criado para responder à especificidade da saúde indígena, que envolveria estratégias diferentes para planejar desde o orçamento até os vínculos dos profissionais e a atribuição da equipe de atendimento. “Esse é o grande nó do subsistema. Não sabemos o que eles estão entendendo por essa integração. Qual é o lugar das especificidades?”, questiona. Em nota, o Ministério da Saúde diz que “tem se pautado para aprimorar o atendimento diferenciado à população indígena, sempre considerando as complexidades culturais e epidemiológicas, a organização territorial e social, bem como as práticas tradicionais e medicinais alternativas à medicina ocidental”.

Preocupação com as mudanças

Ana Lúcia explica que a Sesai é a única secretaria do Ministério da Saúde com atribuição de execução orçamentária. O orçamento previsto para este ano é de 1,4 bilhão de reais , segundo o Ministério da Saúde. Com a extinção do Departamento de Gestão de Saúde indígena do órgão, aponta a pesquisadora, se perde a estrutura que garante maior independência política e financeira para a assistência aos povos indígenas. “A gente sabe que em questão de responsabilidade administrativa isso tem consequências. A dúvida é sobre quem assume essa função [que era do departamento]”, afirma. Nos últimos meses, o atendimento aos povos indígenas já vinha passando por problemas. O Ministério da Saúde chegou a suspender contratos com instituições conveniadas, responsáveis pela contratação e pagamento dos profissionais que atuam no subsistema, por supostas irregularidades. Isso provocou problemas tanto nos DSEIs quanto nas Casas de Assistência à Saúde Indígena (Casai), que chegaram a interromper alguns serviços. O Ministério da Saúde diz que já normalizou a situação. “Nos preocupa a garantia da assistência de saúde”, ressalta Ana Lúcia.

O coordenador regional do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Roberto Liebgott, afirma que o subsistema sempre foi tratado “como uma espécie de enrosco” pelos presidentes e que a responsabilidade por ele nunca foi efetivamente assumida pela União. “O Governo terceirizou uma obrigação que era sua. O que ele faz é o gerenciamento dos recursos, o repasse para as terceirizadas”, critica. Para ele, o Governo Bolsonaro sinaliza mudanças que vão de encontro à luta dos povos indígenas de garantir um sistema de saúde autônomo e participativo, levando em consideração a ampla diversidade cultural, territorial e linguística das etnias. Em vez de assumir a responsabilidade, diz Roberto, o Governo abre espaço para uma visão integracionista e para a incorporação do subsistema pelos municípios. “Os profissionais precisam se qualificar não só no que se refere à medicina, mas às particularidades dos povos, à lógica de saúde e doença que perpassa eles. Os municípios não têm essa capacidade”, argumenta.

A pesquisadora Ana Lúcia defende que um sistema autônomo para a saúde indígena é importante também para o planejamento de políticas públicas para o setor. “O sistema de informação não funciona plenamente ainda, e ter dados específicos sobre os problemas enfrentados pelos povos indígenas são importantes para o planejamento de políticas. Este ainda é um nó critico do subsistema”, afirma.

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