Durante a agenda, Bolsonaro cedeu entrevista à repórter-mirim Esther Castilho, que mantem o programa Esther e famosos no Youtube. Na conversa, precisamente no minuto 11’24, ele sugere a possibilidade da criança ser a patrona da educação e emenda: “Quem sabe nós temos uma patrona da educação e não mais um patrono, muito chato, não precisamos dizer quem é, mas vai ser mudado”.
O título foi concedido ao educador e filósofo pernambucano em 2012, pela Lei 12.6212, sancionada pela ex-presidenta Dilma Roussef. A homenagem foi proposta pela deputada federal Luiza Erundina que, quando prefeita de São Paulo (1989-1993), o nomeou secretário de Educação. “O título de Freire como patrono da educação é para nós, brasileiros, uma forma de homenagearmos o grande educador, mestre que foi. Ele não precisava de título para oferecer ao mundo o que fez”, diz Erundina, relembrando que o projeto de lei foi aprovado em unanimidade na época.
Em entrevista a CartaCapital, a parlamentar condena a conduta do presidente e reconhece que a intenção dos grupos contrários a Freire é condená-lo a um novo exílio, mesmo após quase 30 anos de sua morte. “Ele é sempre considerado aquele que torna as pessoas críticas, capazes e conscientes de se posicionar diante da realidade e isso realmente é algo não tolerado em uma sociedade autoritária e atrasada como a que vivenciamos no Brasil. O caráter político e revolucionário de sua proposta incomoda”, aponta. Confira a entrevista.
CartaCapital: A que você atribui os constantes rechaços à figura de Paulo Freire e sua obra?
Luiza Erundina: A teoria de educação de Paulo Freire, a sua filosofia e prática de educação, tem uma virtude de conscientizar as pessoas, de torná-las sujeitos da sua própria vida, da decisão sobre as coisas. E isso é perigoso. Sobretudo na época em que ele foi exilado [Freire foi preso e depois exilado no período da ditadura], era o auge da sua contribuição não só em relação ao método de alfabetização de jovens e adultos, mas da sua teoria de educação, da sua pedagogia, da sua visão da relação entre educador e educando.
Tudo isso faz com que a sua proposta, a sua metodologia de trabalho, tenha um forte poder transformador, transforme as pessoas e, a partir disso, a realidade, o que é ameaçador para sociedades autoritárias e conservadoras como esta que estamos vivendo hoje no Brasil. É o caráter político e revolucionário de sua proposta que incomoda e eles confundem o caráter político da sua proposta como se ele fosse comunista. O próprio Bolsonaro já alegou que não se pode depositar em alguém que seja comunista a orientação da educação. Daí se atribui todos os problemas da educação brasileira a Paulo Freire, o que é um absurdo, uma ignorância, uma falta total de compreensão daquilo que foi sua contribuição não só no Brasil, mas no mundo.
CC: Como avalia a recente declaração do presidente Bolsonaro de retirar de Paulo Freire o título de patrono da educação brasileira?
LE: Já houve um ataque antes nesse sentido. Em 2017, um grupo de bolsonaristas encaminhou uma sugestão legislativa ao Senado, através da Comissão de Legislação Participativa e Direitos Humanos, propondo a cassação do seu título de patrono. E nós, através de uma campanha forte em âmbito nacional, e com forte repercussão internacional, reunimos um coletivo de intelectuais, artistas, movimentos sociais e populares e encaminhamos uma campanha para pressionar o Senado Federal, a comissão onde a matéria estava sendo discutida, e conseguimos derrotar a proposta do grupo.
Agora, a ideia parte do próprio presidente, num ato público que não tinha nenhuma relação com o tema. Ele foi a uma feira do agronegócio. Ou seja, é uma sanha persecutória que eles fazem a posições mais avançadas, modernas, mais condizentes com o mundo do século XXI. Vamos reagir a mais essa ofensiva, já convoquei uma reunião do coletivo Paulo Freire para criarmos nova defesa contra esses maníacos ideológicos, que não têm racionalidade nenhuma. Há dois projetos de lei tramitando na Câmara, apresentados recentemente, e nós vamos travar uma luta novamente e garanto que vamos derrotá-los.
É inaceitável o que fazem, mais uma tentativa de ameaça a Paulo Freire, que é um símbolo, um orgulho para os brasileiros e brasileiras, renomado no mundo inteiro. Mais uma vez, passamos por esse vexame. É como se ele, mesmo depois de ter partido, fosse submetido a um novo exílio. É próprio de um governo obscurantista essa postura, porque ao invés de se ocupar de questões prementes como o problema do desemprego, o crescimento econômico zero, uma violência que assusta e tira a tranquilidade do povo, se ocupa simplesmente com questões morais e ideológicas. É vergonhoso.
CC: Por que parte da sociedade atrela os problemas educacionais, como os resultados dos indicadores de avaliação, a Paulo Freire? Como você vê essa narrativa?
LE: Paulo Freire foi secretário de Educação no nosso governo. E foi a fase que a política de educação na cidade de São Paulo mais avançou, nos índices de aprovação, na redução dos índices de desistência e de qualidade reconhecida não só internamente no País, mas fora. Há estudos e análises da experiência de educação de Paulo Freire em São Paulo em teses de doutorado, pós doutorado.
Mas ele não só escreveu ou elaborou ideias, construiu uma política de educação que foi um marco na cidade de São Paulo e, ainda hoje, os educadores da rede pública municipal testemunham o que representou aquela experiência para eles, para os educandos e para as comunidades, porque era uma educação integrada ao cotidiano, à vida das pessoas, com efetiva participação da comunidade escolar.
É um absurdo, má fé e ignorância que fazem com que essas pessoas atribuam os problemas educacionais a Paulo Freire, que já partiu há quase 30 anos. Ele só veio influenciar a educação brasileira como educador, como professor da Unicamp, da PUC de São Paulo e como secretário de Educação. Ele lançou o programa de alfabetização de jovens e adultos e foi convidado pelo então presidente João Goulart (1961-1964) para coordená-lo, mas, quando se deu o golpe, ele foi preso e depois de um tempo exilado. Não há fatos objetivos ou dados que possam sustentar essas afirmações absurdas, irracionais e ideológicas. É uma vontade de destruir um símbolo, uma ideia, uma concepção política de educação.
CC: Você fala sobre a educação libertária e emancipatória de Paulo Freire, capaz de transformar os indivíduos. Considerado isso, como tem visto a condução do atual governo com a educação, sobretudo com a crise em torno do MEC, o corte nas universidades e a ideia de que essas instituições, e também as escolas, atuam dentro de um contexto de aparelhamento da esquerda e doutrinação?
LE: Isso tudo mostra o demérito deste governo com a educação, que é entregue a pessoas que não têm experiência, compromisso e competência para conduzi-la. E nem estou falando de conduzi-la ao modo Paulo Freire, apenas de uma educação capaz de responder ao momento da sociedade, àquilo que ela coloca como impasses, desafios, necessidades para a construção da nação. Ao invés disso, temos pessoas com esse nível de desinformação, despreparo e de atraso, porque, sim, são pessoas atrasadas, que pensam o trabalho crítico, conscientizador, e politizador como proselitismo político. É um absurdo.
Não se pensa em políticas de educação, apenas em coibir certas práticas, comportamentos e posições e isso evidentemente não emancipa o ser humano, não o trata como sujeito. É o caso do Escola sem Partido e da falta de autonomia das universidades. A educação não é só para o indivíduo, ela é uma construção coletiva na perspectiva de construção da nação. É algo muito maior do que essa doutrinação que eles imaginam acontecer que, aliás, eles dizem que os outros a fazem, quando na verdade os autores da doutrinação são eles próprios quando atrelam à religiosidade, a comportamentos morais, ao controle, ao cerceamento da autonomia de quem ensina.
Isso só mostra o obscurantismo, o despreparo, a inconveniência que é esse governo hoje no País. Depois de termos conquistas fantásticas expressas na Constituição Federal, atualmente as vemos sendo retaliadas, desmontadas. É uma demolição de tudo o que se conquistou ao longo de décadas, séculos. A educação é o setor mais perseguido e controlado por governos autoritários, absolutistas e ditatoriais, o que nos enche de preocupação. Mas estamos resistindo, os setores progressistas e democráticos sabem o preço de tudo isso, o quanto custou essa liberdade, essa democracia ainda incipiente, porque não se exercita a democracia participativa ainda mais agora, em que se decretou o fim de mais de 50 conselhos de participação popular. Não há democracia consolidada e forte se ela não articula a democracia representativa, direta, participativa.
Se a gente soma todos esses absurdos, o horizonte que se apresenta, a curtíssimo prazo, é bastante triste, preocupante e ameaçador. Mas temos que levantar a cabeça, não aceitar as provocações, não ceder às tentativas de nos colocar em uma situação de desalento. Isso deve, inclusive, aumentar a nossa indignação, a vontade de reagir e defender tudo aquilo que o povo brasileiro conquistou com muito sacrifício, dor e sofrimento.