Felipe Betim- El País
No ano passado, a filósofa e matemática Tatiana Roque, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), decidiu se filiar ao Partido Socialismo Liberdade (PSOL) e se candidatar a deputada federal pelo Rio, conseguindo 15.789 votos. Não foi o suficiente para entrar na Câmara dos Deputados. De volta a vida acadêmica, Roque agora ajuda a articular um movimento transversal de pessoas independentes que não se encaixam ou não identificam com as correntes de partidos como o PT e o próprio PSOL, mas que querem fazer política e ter propostas progressistas concretas. “Muitos expressam vontade de fazer trabalho de base. A experiência do ‘vira voto’ [às vésperas da eleição de Jair Bolsonaro] foi muito marcante para todo mundo. Eram pessoas que estavam afastadas da política. E elas vão fazer política onde agora? Como?”, explica Roque em entrevista ao EL PAÍS. O principal foco, acredita, é reconstruir a esquerda, derrotada nas últimas eleições pelo ultraconservador Bolsonaro, a partir das eleições municipais de 2020.
Pergunta. O que você destacaria de positivo e negativo na reforma da Previdência?
Resposta. Antes de fazer uma discussão técnica, há uma discussão política. Ela precisa ser pensada num contexto político muito especifico. Existe um campo liberal que realmente não está interessado em combater os privilégios, mas em diminuir os direitos. Fez uma aliança com o Governo Bolsonaro, o que há de mais retrógrado e antidemocrático, para empurrar essa reforma. Independentemente de pontos que sejam pertinentes, como a idade mínima, que diz respeito a uma mudança demográfica e que é consenso, tem esse problema político. A reforma é fruto de uma aliança entre uma força ultraliberal representada por Paulo Guedes, que quer fazer não só essa como várias reformas que vão no sentido de diminuir o estado de bem-estar social, e uma força ultraconservadora antidemocrática.
P. Em outra entrevista, no auge do Governo Temer, você afirmou que a esquerda deveria ter um projeto de reforma da Previdência, mas que aquele Governo era ilegítimo. Bolsonaro chegou pelas urnas. A esquerda deve se opor a uma reforma mais uma vez, ou negociar no Congresso?
R. Uma coisa não anula a outra. A esquerda deve ser uma oposição radical a um Governo radical. O que eu dizia e continuo dizendo é que a esquerda tem que fazer oposição a essas reformas ultraliberais tendo um outro projeto de reforma da Previdência. Isso foi inclusive apontado pelo Nelson Barbosa [ex-ministro da Fazenda do Governo Dilma Rousseff]. Agora, é claro que, na ação parlamentar, você deve tentar diminuir aqueles pontos mais prejudiciais para os mais pobres, como as mudanças no Benefício da Prestação Continuada (BPC), na aposentadoria rural… Existem mudanças claramente prejudiciais aos mais pobres e acho que existe uma aliança mais ampla contra esses pontos. E é claro que a esquerda deve se unir a esse bloco parlamentar e negociar junto. Mas, de um modo geral, como força de oposição, deve ser contra. Mas deve ter um projeto próprio.
P. Isso parece estar longe de acontecer…
R. Vai ter que caminhar junto com uma renovação da esquerda. Ela está numa fase de mutação, passando de uma fase de hegemonia do PT para uma fase em que varias forças estão disputando essa hegemonia. O PSOL está em boas condições de disputar essa hegemonia, mas esse projeto só vai ser possível assim que essa esquerda conseguir se renovar e renovar seu quadro institucional. É natural que, nesse processo, a ação seja mais de resistência. Precisamos passar urgentemente dessa fase, com projetos mais afirmativos. E não acho que serão, em um primeiro momento, projetos nacionais. A tendência, e foi assim na história do Brasil, é que a esquerda comece a firmar seus projetos mais positivos no âmbito local.
P. Isso tem a ver com o conceito de municipalismo que você vem trabalhando? O que significa?
R. Existe uma tendência internacional, em países como Espanha e Bolívia, em dar maior poder aos municípios, tanto do ponto de vista da gestão como da arrecadação e do desenvolvimento econômico. Mas, sobretudo, do ponto de vista do aprofundamento da democracia, no sentido de torná-la mais participativa e menos representativa. Trata-se de buscar os mecanismos que podem nos fazer sair dessa crise da democracia representativa. E podemos tanto utilizar experiências do passado como propor experiências novas. A instância que permite fazer isso é o município. É uma instância que favorece a participação, o controle social, a transparência e as políticas participativas. Focar nos municípios é o caminho mais efetivo para renovar a esquerda.
P. No Brasil isso passa por rever o pacto federativo?
R. Exatamente. O Brasil tem um problema: a Constituição de 88 teve um grande avanço ao dar mais autonomia aos Estados e municípios, mas isso não se traduziu em uma descentralização orçamentária que acompanhasse a execução das políticas. Muitas responsabilidades foram transferidas sem uma contrapartida orçamentaria, sendo que a capacidade de arrecadação própria é pequena. Isso gera aquelas missas de prefeitos e governadores indo pedir mais e mais para a União. Também acho que existe uma cultura em não se investir em desenvolvimento econômico local, a partir de suas vocações territoriais.
P. As eleições de 2020 são um ponto de partida?
R. Totalmente, acho que precisamos investir muito nisso, não só no PSOL. Esse tipo de construção na esquerda tem uma longa tradição na história do PT, que começou a ocupar governos locais e a se distinguir por um modo singular de governar, o modo petista de governar. A experiência do Orçamento participativo é tida como referência de aprofundamento da democracia e de experimentação de mecanismos participativo no mundo inteiro. Mas essas experiências tão inovadoras implementadas pelo PT foram deixadas de lado pelo próprio PT. Isso faz parte dessa mudança que o PT teve quando foi para o Governo Federal, em que as políticas locais se tornaram secundárias, fazendo com que o partido aderisse a práticas de governo viciadas e clientelistas que interromperam esse caminho de renovação. O grande dilema que temos é como renovar a esquerda a partir dessas práticas renovadoras sem cair nos vícios dos governos petistas.
P. O PT demorou 20 anos para chegar ao poder federal. A esquerda pode demorar tudo isso para voltar?
R. A reconstrução não vai ser rápida. Se nesse meio tempo vamos a um Governo Federal não dá para saber. A situação está muito aberta, muitos não esperavam a eleição de Bolsonaro. Seria bom que a esquerda estivesse preparada para voltar, mas isso depende de uma reorganização dessas forças muito mais difícil e imprevisível de se fazer. Devemos investir agora, principalmente no caso do PSOL, que está mais bem posicionado para isso, nessas experiências de governo locais. No Rio, talvez com Marcelo Freixo candidato, vamos fazer esse debate.
P. As chamadas questões identitárias parecem não ter apelo junto a setores populares. Como acha que a esquerda deve abordar essas pautas?
R. Não é que as ditas questões identitárias não tenham apelo popular. Acho que o modo como muitas vezes a luta é travada chega a população de um jeito distorcido. É menos a pauta dita identitária que o modo lacrativo de se fazer política. Essa cultura da lacração está atrapalhando não só as pautas identitárias, está atrapalhando geral. Se a gente tiver propostas concretas de políticas públicas voltadas para as mulheres, por exemplo, acho que teria receptividade na população mais pobre e na despolitizada. O problema é como abordar isso. Elas precisam ser abordadas dentro de um trabalho político mais amplo, que não seja só essa disputa de marcação de posição.
P. A esquerda perdeu conexão com a classe trabalhadora?
R. A esquerda tem a concepção de que o agente da transformação é baseado nessa ideia de trabalhador, que é uma ideia muito homogeneizante. Isso continua existindo, apesar de o trabalho ter mudado. Só que os grupos que se organizam para melhorar suas condições de vida não se organizam mais em função de categorias tão homogeneizantes. Os modos de vida, as experiências, as sensibilidades se tornaram muito mais importantes ao se inserir num coletivo. Não à toa vemos tantos coletivos feministas, negros, LGBTs, de legalização das drogas, de ambientalistas… Os coletivos se organizam mais em função daquilo que os afeta de modo singular. Muito mais do que uma categoria de trabalho. As pessoas são trabalhadoras de jeitos tão diferentes que não necessariamente vão se identificar pelo fato de serem trabalhadoras. O movimento dos Coletes Amarelos, na França, é um ótimo exemplo. Trouxe uma série de atores invisíveis. A esquerda tem que estar muito atenta porque esses atores estão demandando atenção. E a esquerda tem que se abrir para isso. A greve dos caminhoneiros foi isso. No Brasil temos uma enorme categoria de jovens nem nem, que nem estudam nem trabalham. Se a esquerda não fala com elas, algo está errado. Um projeto de Previdência tem que dar proteção para essas pessoas que têm trabalho informal, situação de vida instável, intermitente… E a proposta não pode ser pleno emprego, porque isso não é muito realista.
P. O que aprender com a nova esquerda norte-americana?
R. Precisamos de uma mudança econômica de fundo, e essa nova esquerda americana vem falando muito no Green New Deal. É algo fundamental, porque por trás de Trump está o negacionismo climático. Então a oposição a ele também deve focar nisso, tem que levar a sério o aquecimento global e as limitações ecológicas. As mudanças econômicas têm que ser pensadas a partir disso.
P. Como isso poderia ser aplicado no Brasil?
R. Existe uma esquerda brasileira com uma visão muito industrializante, que acha que a solução para o desenvolvimento econômico é industrializar, e a partir disso criar emprego e resolver as questões sociais a partir do emprego. Tudo bem, acho que um país como o Brasil, que tem pouca indústria, precisa fazer isso. Mas principalmente fazer isso com um modelo produtivo mais tecnológico, não uma industrialização atrasada —e não vai criar emprego suficiente pra resolver o problema social. Acredito cada vez mais que esse outro modelo tem que partir da limitação ecológica, encarando com seriedade o problema das mudanças climáticas. Não adianta um projeto econômico baseado em commodities e mineração que afete o meio ambiente e leve a um desastre como o de Brumadinho. Não dá mais. E isso tem a ver com o municipalismo, porque a partir das iniciativas de desenvolvimento econômico local, de economias territoriais, é mais possível desenvolver alternativas que em escala nacional. E aí tem duas vias fundamentais: uma é a questão dos cuidados, uma proposta de trabalho e proteção social baseado numa economia dos cuidados, que cuide desse problema e crie postos de trabalho voltados para isso, já que é uma tendência mundial; outra coisa é a questão dos bens comuns, como a água, a energia…. Essa gestão dos bens comuns com uma preocupação ecológica é uma outra tendência que a gente tem que incorporar nesse modelo municipalista. Tem a ver também com saneamento básico, que é um ponto terrível e que o Brasil não consegue fazer.
P. Vê riscos para a democracia?
R. Estamos vivendo uma fragilização em várias camadas. Do ponto de vista econômico, é um ataque ao estado de bem-estar social, que é o que temos de democracia mais efetiva no mundo. Acho que isso é o mais grave para a democracia. É uma tentativa de fazer com que áreas do bem-estar social passem a fazer parte de um campo de acumulação de capital. A questão da capitalização da Previdência é isso, a privatização da saúde e educação é isso. O SUS é referência mundial, a educação universal pública precisa melhorar qualidade e a gestão, mas o modelo a gente conseguiu implementar. Não é andando pra trás que vamos resolver.
Também temos que estar atentos porque a democracia não se fragiliza com práticas ditatoriais, mas com mecanismos antidemocráticos sendo inseridos dentro das instituições democráticas e dentro das leis. Por isso, muitas vezes não reparamos como sendo antidemocráticos. É o que Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, chama de “democracia iliberal”. Trata-se de minar as instituições da democracia liberal por dentro.
P. Como responder a essas ameaças?
R. Existe uma demanda por mais participação, por um aprofundamento da democracia que foi deixada nas mãos das elites e econômicas, e as pessoas não se sentem participando após o momento do voto. Muitas decisões que afetam a população são tomadas por uma tecnocracia, uma elite de experts que não é eleita. Isso é algo aprofundado pelo neoliberalismo. Dá a sensação de que não importa em quem você vote, vão ser sempre essas pessoas que tomam decisões. O maior exemplo é a União Europeia. O ápice foi quando os gregos votaram ‘não’ no plebiscito sobre o ajuste, mas o Governo fez o contrário porque era uma determinação da troika [Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional]. No Brasil, muitos votaram em Bolsonaro por protesto, de saco cheio de tudo. Temos que ter uma resposta para isso.
P. Que tipo de resposta?
R. Não temos instituições de controle, de acompanhamento, de accountability, de transparência entre as ações de quem elegemos e a população. Votamos e depois acabou. A solução para isso não é um incentivo ao nacionalismo. Precisamos inventar novas instituições democráticas. Quando os livros que estão aí falam em “fim da democracia”, acho que isso significa um esgotamento de uma forma de democracia que vivemos desde o fim de Segunda Guerra. Não é o fim, é a necessidade de pensar em inovações democráticas, mecanismos democráticos que respondam a esse anseio da população e que faça que tenha um engajamento com as decisões e políticas.
P. Durante a campanha o PSOL falou muito em realizar referendos. Acredita que a democracia direta é o caminho?
R. Existe uma idealização do uso do referendo como forma de aprofundamento da democracia. Não sei se é via referendo que vamos deixar mais direta a democracia. Acho que podemos pensar em novas instituições que vão além da temporalidade do voto, instituições que mantenham uma participação contínua. Por isso gosto das experiências participativas que se dão nas esferas locais, como foi o caso dos Orçamentos participativos no Brasil.