Maria Wick – Nexo Jornal
Os assassinatos da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes completam um ano nesta quinta-feira (14). E restam ainda muitas perguntas sem respostas sobre a motivação e os possíveis mandantes do crime. Eles foram mortos a tiros disparados de um automóvel que os seguia na noite de 14 de março de 2018, após a vereadora ter deixado um evento no centro do Rio de Janeiro sobre ativismo de mulheres negras. Ao lado de Marielle, estava uma de suas assessoras, que sobreviveu ao ataque.
A hipótese defendida pelo Ministério Público do Rio, que fez a primeira denúncia sobre o caso na terça-feira (12), aponta que ao menos dois homens participaram do crime — o sargento reformado da Polícia Militar Ronnie Lessa, que teria sido autor dos tiros, e o ex-PM Elcio Vieira de Queiroz, acusado de dirigir o carro em que Lessa estava. Ambos têm seus nomes associados a milícias, e foram presos preventivamente na madrugada de terça-feira (12), a dois dias de o crime completar um ano. Ainda não se sabe se há um mandante para os assassinatos e qual a razão do ataque, embora o Ministério Público do Rio fale em “motivação política”: os acusados de serem autores teriam ódio à atuação parlamentar de Marielle.
Marielle era negra, feminista e nascida na favela da Maré, uma das maiores comunidades do Rio. Identificava-se como bissexual e era associada também à identidade lésbica — era casada com Mônica Benício, com quem viveu por um ano e três meses antes de sua morte. Representava assim a ascensão de minorias sociais na política institucional, majoritariamente ocupada por homens brancos de alta renda. Representava também renovação no modo de fazer política, com propostas ligadas à sua comunidade e à defesa dos direitos humanos.
À sua origem, somava-se a experiência na administração pública. De 2006 a 2016, Marielle foi assessora parlamentar de Marcelo Freixo (PSOL) quando ele era deputado estadual — em 2018, ele foi eleito deputado federal. Nesse período, ajudou o deputado na coordenação da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia do Rio e no trabalho à frente da CPI das Milícias em 2008.
Além disso, Marielle tinha formação em ciências sociais e mestrado sobre segurança pública. Em 2016, concorreu pela primeira vez a um cargo legislativo. Foi eleita vereadora, a quinta mais votada no Rio, e estreou na Câmara carioca com projetos voltados à igualdade de gênero e às demandas das favelas. Era crítica a abusos de policiais e milicianos, sobretudo envolvendo mortes de jovens negros, e à intervenção federal na segurança pública do Rio decretada em 2018, pouco antes do seu assassinato. “Marielle era a representação de tudo o que sempre esteve ausente na política brasileira: a mulher, a mulher negra, a mulher negra favelada, a mulher negra favelada homossexual, a mulher negra favelada homossexual mãe na adolescência defensora de direitos humanos. E encarava a toxicidade da política do Rio sem jamais se esquecer do que era inegociável, sem parar de apontar os que sim o negociavam, sorrindo, sorrindo, sorrindo. E, principalmente, tomando aqueles corredores, aquelas salas e salões e os enchendo de mulheres como ela” Manoela Miklos ativista feminista, em ensaio publicado no Nexo de 17 de março de 2018.
O assassinato de Marielle levou milhares de pessoas às ruas desde o dia seguinte ao ataque, mobilizando não apenas grupos ligados à pauta dos direitos humanos, mas também pessoas críticas à violência no Brasil. Entre 2018 e 2019, Marielle foi lembrada em manifestações, discursos políticos, no carnaval carioca, na eleição que levaria parlamentares de perfil semelhante ao dela ao Congresso e às assembleias legislativas. Tornou-se referência entre defensores da democracia brasileira. A memória da carioca motivou a ascensão, nas eleições de 2018, das candidaturas de futuras deputadas conhecidas como as “sementes de Marielle” — mulheres negras que se lançaram à política (algumas, pela primeira vez) inspiradas na atuação da vereadora no combate ao racismo e à desigualdade de gênero, entre outras pautas.
O Nexo conversou com quatro novas deputadas, federais ou estaduais, sobre o legado de Marielle Franco para a política e os desafios para a conquista de espaços de poder entre mulheres negras. Elas estão no Congresso e nas assembleias, representando diferentes partidos.
Quem são as deputadas?
RENATA SOUZA É jornalista. Foi amiga e chefe de gabinete de Marielle Franco durante o mandato da vereadora na Câmara Municipal. Assumiu em 2019, pelo PSOL, o primeiro mandato como deputada estadual no Rio de Janeiro. Na assembleia legislativa, é a primeira mulher negra a presidir a Comissão de Direitos Humanos. Nascida na Maré, dedica-se às demandas das favelas, especialmente aquelas que se relacionam com segurança pública. Formou-se pela PUC-Rio.
OLÍVIA SANTANA É pedagoga. Assumiu em 2019, pelo PCdoB, o primeiro mandato como deputada estadual da Bahia. É a primeira mulher negra a chegar à Assembleia Legislativa do estado. Antes, foi vereadora por dez anos em Salvador, além de ter sido titular da Secretaria Municipal de Educação e Cultura (na capital) e da Secretaria Estadual de Políticas para Mulheres. Seu principal objetivo como deputada é promover ações em torno do empoderamento feminino e para reduzir a violência contra as mulheres, além de zelar pela juventude negra, disse ela ao site HuffPost Brasil. Formou-se pela UFBA (Universidade Federal da Bahia).
SILVIA CRISTINA É jornalista e pedagoga. Assumiu em 2019, pelo PDT, o primeiro mandato como deputada federal do estado de Rondônia. É a primeira mulher negra a ir à Câmara dos Deputados representando o estado. De 2013 a 2018, foi vereadora em Ji-Paraná (RO). Suas principais pautas são a assistência social e a saúde — a última, defendida com mais afinco após Cristina ter enfrentado um câncer. “Só ser mulher já é um grande desafio. Ser negra é um desafio ainda maior”, disse ela ao portal G1.
ANA PAULA SIQUEIRA É assistente social. Assumiu em 2019, pela Rede, o primeiro mandato na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Antes, foi assessora e chefe de gabinete do ex-deputado Paulo Lamac (Rede), atual vice-prefeito de Belo Horizonte. Em 2017, trabalhou na prefeitura da capital mineira, onde assumiu a Subsecretaria de Participação Popular. Implementou cursos comunitários de preparação para o vestibular em Belo Horizonte e no Vale do Jequitinhonha. Dedica-se a pautas como saúde das mulheres e combate à violência de gênero. Formou-se pela PUC-MG.
Para elas, ainda há desafios para a entrada de mulheres negras nas casas legislativas. Ao mesmo tempo, dizem inspirar-se no exemplo de Marielle, defendendo ser necessário fazer parte da política institucional a fim de tornar as ações de governo mais inclusivas para os seus. “Faz falta o afeto de Marielle”, disse Renata Souza, que conhecia a vereadora havia 18 anos, doze deles trabalhando com ela. “Marielle sempre foi uma pessoa muito carinhosa, ainda que a assertividade tenha sido sua principal característica na política.
Esses dois elementos de sua personalidade fazem muita falta no Rio de Janeiro hoje.” Há alguma especificidade associada à condição de mulher negra atuando na política?
RENATA SOUZA Existem muitas especificidades, principalmente para aquelas que se reconhecem como feministas. Estar em uma casa legislativa, pensando a política pública a partir das necessidades reais das mulheres, com um diagnóstico bem qualificado das políticas já implementadas, é fundamental para que a gente possa ter um avanço nas políticas públicas. Também é fundamental para evitar, por exemplo, absurdos como os de homens que querem legislar sobre os nossos corpos, sobre a nossa sexualidade ou vida reprodutiva. Esses absurdos são evitados quando mulheres ocupam esses espaço de poder. Até porque, principalmente, esse espaço foi historicamente negado para nós, mulheres — em específico mulheres negras, moradoras de periferia e favelas. Esse é um recorte muito central para que as políticas públicas possam ser feitas a partir das experiências — infelizmente, ruins — que nós, enquanto mulheres, temos em uma sociedade extremamente machista, racista e classista como a brasileira. Ao estarmos aqui [nas casas legislativas], a gente consegue construir um novo paradigma de política pública, a partir de nossas experiências e militância. Isso traz outro prisma do que pode ser a política institucional.
OLÍVIA SANTANA Sou a primeira mulher negra a ocupar uma cadeira na Assembleia Legislativa da Bahia. Sou filha de lavadeira, nasci na favela, fui servente e já lavei muito vaso sanitário. Sei o que o racismo faz e sei a luta que temos que travar para remover cada empecilho. Mas eu tenho inteligência, capacidade de também estar com a caneta na mão e a disposição por gritar por justiça e por políticas públicas que possam alterar a vida das pessoas — é isso o que estou fazendo por aqui. Acredito que para mudar esse cenário e ter mais negros e mulheres nas casas legislativas do país será necessário uma revisão no sistema eleitoral, democratizando a forma como ele se dá, de modo a aumentar os espaços de representatividade de mulheres e negros no Brasil.
SILVIA CRISTINA Sim — o preconceito racial. Falamos que, por sermos mulheres, é muito difícil nossa inserção na política. A condição de ser mulher negra é mais um fator. Por exemplo, o número de mulheres negras aqui no Congresso é minúsculo. Até que aumentou com minha eleição e de outras deputadas, mas o número não chega a pouco mais de dez [são 13 deputadas federais que se declaram pardas ou pretas e nenhuma senadora]. Que se autointitula, entende? Que diz que é negra. Eu sou negra, me intitulo assim. A gente sabe das nossas dificuldades, das nossas bandeiras, que muitas vezes são incompreendidas. É assim que digo. A condição para entrar nesta casa de leis é menor para nós. ‘Por sermos mulheres, é muito difícil nossa inserção na política. A condição de ser mulher negra é mais um fator’
ANA PAULA SIQUEIRA Acredito que sim. Infelizmente, é fato que o negro, quando ocupa qualquer cargo de liderança, seja no espaço público ou privado, ainda causa estranhamento em grande parte da população. Isso não é só uma sensação — está claro em todas as pesquisas que mostram a diferença em relação às oportunidades e aos salários entre um negro e um branco. Em se tratando de uma mulher, nem se fala. Para se ter uma ideia, esta legislatura na Assembleia Legislativa de Minas Gerais é a primeira a eleger mulheres negras no nosso estado. Entre os 77 deputados, somos dez mulheres, sendo três negras. O acesso à mulher na política já é dificultado de várias formas. Não é por acaso que precisamos criar uma cota — que, ainda assim, é burlada. O acesso de uma mulher negra é ainda mais sabotado. A mulher negra faz parte de uma população que, historicamente, está excluída das tomadas de decisões. A especificidade [mencionada na pergunta, sobre a atuação na política] já é o fato de ser negra por si só, além dos entraves que isso [ser negra] nos traz para ocupar um espaço de poder que, tradicionalmente, foi preparado para um homem branco e rico. É o contrário do que representa o nosso mandato e do que representava o da vereadora Marielle Franco e de tantas outras colegas parlamentares. A história política brasileira recente foi marcada por uma série de episódios que podem ser classificados como “violência política”.
O assassinato de Marielle Franco pode ser interpretado nesses mesmos termos ou carrega particularidades?
RENATA SOUZA Tenho dito que a morte de Marielle foi um feminicídio político. Ela foi assassinada por sua condição de mulher na política, a partir do momento em que seu trabalho incomodou o status quo e os podres poderes aqui no Rio de Janeiro. Essa sua condição fez com que esse feminicídio político fosse praticado sem que tivesse havido uma ameaça concreta contra a vida dela. Marielle não sofreu ameaça. É importante que a gente reflita sobre isso. Marielle foi negra, pobre, favelada, lésbica — essa é a população que mais morre no Brasil. Isso é muito simbólico. Marielle está no “rol dos matáveis”. ‘Ela foi assassinada por sua condição de mulher na política, a partir do momento em que seu trabalho incomodou o status quo e os podres poderes aqui no Rio’ Mas, ao mesmo tempo, a costura que ela fez na política incomodou poderosos. Isso fez com que ela fosse executada sumariamente. Por isso a gente precisa continuar insistindo para saber quem mandou matar Marielle e quais foram as motivações para que esse crime tão bárbaro acontecesse — inclusive com tamanho profissionalismo e planejamento. A gente não acredita na tese de um crime de ódio [defendida pelo MP]. A gente acredita que foi um feminicídio político.
OLÍVIA SANTANA Ainda não sabemos quem mandou matar Marielle nem o porquê desse assassinato, que no dia 14 de março completa um ano. Marielle era nossa baluarte dos direitos humanos.
SILVIA CRISTINA Sim, com certeza [se trata de violência política]. Acompanhei bem de perto [o caso Marielle] por meio dos meios de comunicação e vi que as bandeiras de Marielle preocupavam muitas pessoas. A partir do momento em que uma mulher como ela conseguiu ser ouvida, conseguiu entoar uma voz que está conseguindo chegar a mais pessoas, ela acabou despertando sentimentos contrários de pessoas que não gostariam que ela fosse uma militante tão atuante. É dessa maneira que eu vejo. Marielle, naquele momento, estava incomodando. Ela não tinha nenhuma passagem pela polícia, não tinha nada nesse sentido, nada que pudessem causar isso [o crime], a não ser as bandeiras que ela levantava. Ela levantava bandeiras e dava espaço a vozes de muitas pessoas [mulheres, negros, LGBTIs] que conseguia representar realmente de maneira legítima. Porque era negra, porque era mulher, porque defendia tantas pautas das minorias.
ANA PAULA SIQUEIRA Não tenho dúvida de que foi violência política. Mas, para além disso, foi uma violência contra toda a população que a Marielle representava, que é historicamente excluída. Marielle era mulher, negra, da periferia, lésbica, um perfil que comumente é esquecido nas políticas públicas. Foi um crime contra a democracia, uma tentativa de intimidação a todas as mulheres, a todos aqueles que quiserem colocar o dedo em feridas abertas, mas ainda mascaradas.
Qual a sua perspectiva de atuação como parlamentar e mulher negra um ano após o assassinato de Marielle Franco?
RENATA SOUZA A expectativa é atuar dentro desta casa legislativa para construir programas e políticas públicas que acabem com o feminicídio, que diminuam o homicídio da população negra… Isso é mais que urgente. A gente vê o Estado como o principal violador dos direitos humanos, portanto precisamos nos apropriar desse próprio Estado para que essas mortes não sejam naturalizadas. Estar neste espaço hoje, do parlamento, da construção de políticas públicas, é fazer com que nenhuma vida valha mais que a outra, ou que a dor seja hierarquizada. ‘Estar neste espaço hoje, do parlamento, da construção de políticas públicas, é fazer com que nenhuma vida valha mais que a outra, ou que a dor seja hierarquizada’ A gente precisa construir formas de ocupação na política, sobretudo dessas mulheres — as negras, as pobres, as que vêm de uma realidade muito dura —, que sabem, a partir da própria experiência, como políticas públicas feitas de cima para baixo podem ser muito mais danosas do que positivas. Hoje, sou presidenta da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio. Sou a primeira mulher negra neste cargo na comissão, que tem cerca de 20 anos aqui no Rio de Janeiro. Sem dúvida, uma responsabilidade enorme. Estou dando continuidade a um trabalho que foi desenvolvido pelo deputado Marcelo Freixo e coordenado pela Marielle… Dar continuidade e ampliar esse trabalho é honrar a vida de Marielle e todo o seu legado.
OLÍVIA SANTANA Me sinto no dever de não esmorecer, de não perder a força e a coragem de lutar. Porque Marielle morreu lutando. A imagem dela virou uma fonte de inspiração para a luta pelos direitos humanos.
SILVIA CRISTINA A expectativa é de a luta continuar ainda mais forte, porque cor não determina caráter nem competência. Somos todos iguais. Não aceitamos que mulheres sejam mortas só pelo fato de serem mulheres (em feminicídios) ou morrerem por estarem exercendo seu legítimo papel de representante do povo [como Marielle].
ANA PAULA SIQUEIRA Nossa perspectiva é de reforçar a representatividade das mulheres, das mulheres negras na política. Mais que isso: [reforçar a representatividade] dos interesses e das pautas das mulheres nos debates das políticas públicas. Esse olhar precisa estar em todas as pautas, desde os direitos específicos das mulheres, mas passando pelo porte de armas, pela educação e a Previdência. O atual contexto político do país mostra como precisamos aumentar a representatividade das mulheres e das negras nas casas legislativas e na política de todas as suas formas — desde a discussão nas bases comunitárias até as rodas de conversas dos amigos e colegas de trabalho. A política está em tudo, está no dia a dia. Acho que falta essa conscientização de como somos todos agentes políticos. E, em meio a tudo isso, a chegada da mulher negra [ao poder] é ainda mais difícil. Muitas vezes se fala de minorias, mas, na verdade, somos maioria. Não é [só] uma questão de percentual, mas de poder econômico e social. Afinal, as mulheres representam 52% do eleitorado. Os negros e pardos são maioria da população. Costumo lembrar que “o que os olhos não veem, o coração não sente” — e é por isso que temos que ocupar espaços e participar da discussão e fiscalização das políticas públicas. Temos que ser vistas, lembradas, valorizadas e ouvidas realmente.