E depois de Bolsonaro?

Roberto Amaral

Há apenas uma certeza (e isto não é consolo): por piores que tenham sido os erros, nosso povo não merece o país que agora temos

 

O óbvio está escancarado.

O capitão não tem condições de presidir o país: carece de atributos éticos, intelectuais e cognitivos. Pensa com dificuldade, incapaz de uma abstração; cinge-se ao bê-á-bá do fascismo primário, já de si de poucas palavras, claudica na leitura dos discursos. Seus assessores parecem orientados a utilizar, nos textos que lhe preparam, um repertório de aluno do ensino médio.

De tudo isso já se sabia desde que o capitão-paraquedista foi intimado a abandonar a carreira no Exército que não honrou, pois sempre foi um mau oficial, na sentença do insuspeito general Ernesto Geisel.

E ninguém se diga enganado com o que estamos padecendo. É, portanto, pelo menos especiosa, a adesão de nossas elites militares e econômicas, de liberais e de social-democratas, a um político que se notabilizou com declarações racistas e homofóbicas, elogios à ditadura, à violação de direitos humanos, à tortura e ao assassinato. Um político, pois, cuja carreira deveria ter sido abreviada, ainda no nascedouro, por uma sociedade mais ciosa de seus avanços civilizatórios, tímidos embora.

A passagem do capitão pela Câmara dos Deputados, onde permaneceu por quase três décadas, foi pontuada pelo grotesco e pela histeria reacionária. Incapacitado para o diálogo e a negociação, desprezado pelos colegas, jamais ultrapassou os limites do baixo, baixíssimo ‘clero’.

Para tudo isso fez tábula rasa, ou ouvidos de mercador, o estado-maior de generais que avalizou sua candidatura, organizou a campanha eleitoral, deu-lhe condições de disputa e vitória, e ainda o sustenta (ocupando o governo) inclusive em seu desvario, no desvario de sua família que, dentre outras acusações, carrega as de ligação com o crime organizado no Rio de Janeiro e a apropriação de salários de funcionários públicos.

O capitão, mesmo com a  Esplanada dos Ministérios e o Planalto ocupados pelos generais, perdeu, dificilmente recuperará, condições de liderança do governo, que, aliás não é mais seu. Para salvá-lo, ou simplesmente, prorrogá-lo, o Exército, fundamentalmente ele, mobiliza-se para antecipar a consolidação do novo regime, que tem sua cara, sua cor, seus valores e sua doutrina jamais apartada da Guerra Fria que importou para nossa infelicidade, justificativa para sua  constante interferência na vida republicana.

Os escândalos, que dominam o noticiário e  assustam tanta gente de boa-fé, não constituem, porém, a parte mais nociva do bolsonarismo.

Ainda mais grave é o neoliberalismo radical e anacrônico que submete os interesses da economia nacional aos ditames da banca internacional e do comércio das grandes potências. Importando, por estúpida vira-latice ideológica, a guerra particular de Donald Trump, que só aos EUA pode interessar, ameaça, de uma só vez, a China e o mundo árabe, nosso principal parceiro comercial e o principal destino de nossas exportações de alimentos. Essa  mesma política antinacional sabota o Mercosul, o maior importador de produtos manufaturados brasileiros.

Gravíssima é a renúncia à nossa liderança na América do Sul, substituída pela aliança política e militar ao intervencionismo norte-americano, ao risco da balcanização do Continente.

Nada obstante o controle da corporação militar sobre as estratégias do regime, nos deparamos com a grave dependência de nossas Forças ao fornecimento de armas, equipamentos e munições à indústria estrangeira. Consabidamente, quem importa seu armamento delega ao fornecedor o poder de decisão sobre seu emprego, como dramaticamente aprenderam os argentinos na guerra das Malvinas. O comprometimento de nossa autonomia se acentua com o desmantelamento da indústria aeronáutica levado a cabo com a venda da Embraer à Boeing. Neste quadro, o anúncio da entrega da Base de Alcântara aos EUA, mediante negociações desconhecidas, é, apenas, mais um passo dado no sentido de remover todas as nossas expectativas de soberania.

Gravíssimo é o desprezo pela cultura e pelo pensamento, o desapreço à Universidade Pública, já atingida com o corte de recursos, determinante da crise das áreas de ciência e tecnologia, sem as quais não teremos futuro.

Gravíssimo é o descaso com o meio ambiente, cuja proteção foi entregue à voracidade do pior do agronegócio; gravíssima é a insensibilidade diante da crise social: sua política se encerra num anti-trabalhismo predador, quando já deveria estar promovendo ações de proteção e ampliação do emprego, pois a necessidade de crescimento da economia, aqui e em toda parte do mundo capitalista, demanda a intensificação de tecnologias que ensejam a redução da mão de obra no processo produtivo.

Os analistas se debruçam sobre os quase dois meses do governo, e muitos ousam mesmo cogitar de seu breve colapso com o defenestramento do capitão-presidente. Daí a pergunta que todos se fazem: o que virá depois? Ouso responder: uma troca de seis por meia dúzia. Ao invés de mudanças essenciais, o mais provável é a consolidação do mando pela corporação militar que certamente emprestará mais organicidade e mesmo comando único ao governo mambembe. Esta operação, aliás, poderá efetivar-se mesmo com o capitão morando no Palácio da Alvorada.

Há um elemento objetivo na regência dos fatos: o capitão é uma contingência. Instrumento decisivo na conquista do poder, será sumariamente posto de lado a partir do momento em que for visto como um transtorno, ou, quando se rebelar ao controle que deve aos seus superiores de farda.

A arte e a ciência estiveram no fato de, mais cedo que todos, haverem os militares identificado na força popular – eleitoral no bolsonarismo (seja lá o que isso signifique) o instrumento substitutivo  do hoje arcaico desfile dos virgens tanques da Vila Militar. A seiva popular legitimadora, que as movimentações de tropas não ensejam, veio com o capitão e por muito tempo será sua tábua de salvação; o poder real, aquele que conta, emana de um estado-maior militar concebido à margem dos regimentos das três forças.

Mas os militares – leia-se o Exército – não estavam sós na montagem e execução da ‘operação Bolsonaro’, nem estão sós no seu desfrute.

O pacto que ensejou a emergência do capitão – como sabem as paredes do Forte Apache – contou com setores majoritários do Exército, principalmente sua inteligência, apoiou-se no aparato militar-policial-repressivo do país (que inclui o ministério público e o poder judiciário), cujo representante no governo é o ex-juiz Sérgio Moro; contou e conta ainda como o apoio do dito ‘mercado’, do capital financeiro, nacional e internacional, cujo procurador no governo é Paulo Guedes; teve o apoio do agronegócio, do pentecostalismo e de setores majoritários do sionismo (daí a promessa de transferir a embaixada brasileira para Jerusalém) e contou sempre, no fundamental, com a grande imprensa. Contou e conta ainda, e cada vez mais, com o apoio dos EUA, de cujo presidente o capitão Messias é fã de carteirinha.

Em meio a tudo isso, na campanha e agora no governo, está a famiglia, com seus negócios, seus interesses, as disputas de espaço entre sócios, seu espantoso primarismo, interferindo nas diretrizes do governo.

Dela pode sair o PC Farias do capitão.

Os grupos no poder guardam dessemelhanças entre si, e, internamente, cada um cultiva seu rosário de contradições, até aqui não fundamentais, ou seja, nem impeditivas da convivência, nem alimentadoras de dissenso.

O estado-maior, instância do autoritarismo burocrático- militar, desenvolve projeto estratégico específico; não se confunde com o ‘bolsonarismo’ e nem a ele se reduz. Por isso mesmo não está preso ao destino do capitão-presidente. Sobreviverá, como poder, à eventual queda do capitão. A convivência pacífica é necessidade tática que visa a preservar estratégia longamente pensada nos muitos círculos de pensação militar.

Há apenas uma certeza (e isto não é consolo): por piores que tenham sido os erros, nosso povo não merece o país que agora temos.

Na tragédia de Sísifo, a pedra cai do alto, mas chega ao solo ao alcance das mãos do penitente que, incansavelmente, repete o esforço de leva-la de volta ao topo, mesmo sabendo que seu esforço será inútil, pois essa é a pena eterna imposta por Zeus. Nosso caso é diverso: a pedra, ao cair, sai rolando ribanceira abaixo e jamais volta ao cume. O Brasil deixa de recomeçar do ponto de partida, crise após crise (o que já era em si uma tragédia): agora ele anda para trás.

 

 

 

 

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