Maria Mello – Intevozes – Carta Capital
Surfando no conservadorismo do governo Bolsonaro, emissora desrespeita premissas da ética e técnica jornalística e ataca Sem Terra
Além de apresentar uma verdadeira aula magna de mau jornalismo, a reportagem “A polêmica dos Sem Terrinha”, exibida pela TV Record na noite de domingo 10, pode indicar que o processo de intensificação da criminalização de movimentos sociais brasileiros em curso terá o apoio integral da emissora. Depois de fazer campanha aberta pela candidatura do agora presidente Jair Bolsonaro, o canal de televisão do bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, ressuscita notícias falsas da década passada e embarca no discurso propagado pelo Palácio do Planalto de ataque aberto ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Por cerca de 20 minutos, a matéria veiculada no programa Domingo Espetacular se dedicou, basicamente, a erigir uma imagem violenta e doutrinadora do MST a partir da agenda organizativa das crianças Sem Terrinha, filhas e filhos de militantes da organização, acampados e assentados da reforma agrária.
A maioria das imagens utilizadas pela reportagem foi produzida e disponibilizada publicamente pelo próprio MST – incluindo as feitas pelas crianças, em um processo pedagógico de construção autônoma da própria imagem –, durante o Encontro Nacional das Crianças Sem Terrinha. O evento, que reuniu 1.200 crianças e adolescentes de 24 estados em Brasília, em julho de 2018, teve como objetivo central promover debates sobre os direitos da criança e a importância da alimentação saudável, além da interação lúdica entre Sem Terrinhas de todo o país.
Ao selecionar trechos específicos de palavras de ordem entoadas pelas crianças, que evocam “luta” em seu sentido cívico e político – como “pra ser feliz tem que brincar, pra brincar tem que sorrir, pra sorrir tem que lutar” –, a emissora construiu uma narrativa relacionada à ideia de “lavagem cerebral” e ao estímulo à violência em meninos e meninas. Num contexto em que líderes políticos ensinam crianças a fazerem o sinal de armas com as mãos e no qual a doutrinação ideológica do projeto “Escola Sem Partido” pretende acabar com a diversidade do pensamento crítico transmitido a estudantes, a Record preferiu silenciar sobre tais questões e requentar um encontro que ocorreu há mais de seis meses para pregar ódio aos movimentos sociais.
A trilha sonora, digna de um filme de terror, e a edição do material, com efeitos visuais sombrios, não conseguiram, entretanto, esconder os semblantes felizes das crianças, que tiveram no encontro um espaço essencial de brincadeira, diversão e construção de um futuro melhor, através de atividades culturais, educativas e oficinas de arte. Se a reportagem da Record tivesse feito jornalismo de fato e participado do encontro, não encontraria nada diferente disso para divulgar a seus telespectadores.
Mas o objetivo ali era outro. Assim, como de costume, todos os “especialistas” ouvidos na matéria apresentaram um único ponto de vista: o que deslegitima o maior movimento social do país, evidenciando a intencionalidade editorial da emissora e desrespeitando os preceitos basilares da ética jornalística. Basta notar que nenhum(a) integrante do MST foi ouvido pela reportagem, tampouco representantes de entidades de defesa dos direitos infância e da juventude, supostamente violados durante o encontro.
Se tivesse feito jornalismo, a Record talvez tivesse preocupado em verificar as autorizações dadas ao evento pelos órgãos responsáveis por fiscalizar os padrões de segurança exigidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Ao contrário do que fez parecer, também teria mencionado os alvarás necessários e a autorização dada pelos pais e responsáveis pelos participantes para que todos estivessem ali reunidos. Segundo os organizadores, mais de 400 adultos acompanharam as crianças, e foram garantidas segurança, alimentação e atendimento médico conforme os padrões exigidos pela lei.
Mas a Record queria acusar o MST de descumprir o ECA – uma contradição, aliás, em relação à história do movimento, que ao longo de sua existência garantia que mais de duas mil escolas tenham sido abertas no campo brasileiro, permitindo o exercício do direito à educação por milhares de filhos e filhas de trabalhadores rurais.
Prática recorrente
Não é a primeira vez que o grupo Record ultrapassa os limites da ética em sua programação. Por veicular agressões contra religiões de matriz africana, a Record terá de exibir em 2019 quatro programas sobre o tema a título de direito de resposta. A reparação é fruto de uma Ação Civil Pública aberta há 15 anos pelo Ministério Público Federal, o Instituto Nacional de Tradição e Cultura Afro-Brasileira (Itecab) e o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e da Desigualdade (Ceert).
Após um acordo firmado no final de janeiro deste ano entre a Record News e os autores da ação no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), a emissora exibirá três programas educativos sobre as religiões afro-brasileiras e um com conteúdo documental sobre a própria Ação Civil Pública que levou à condenação, priorizando conteúdos informativos e culturais que abordem aspectos como origem, tradições, organização, rituais e outros elementos. Além disso, pagará R$ 300 mil de indenização para o Itecab e a Ceert.
A construção de estereótipos, a criminalização e o silenciamento do MST pela mídia brasileira também não é um fenômeno novo. Em 2011, o Intervozes publicou a pesquisa “Vozes Silenciadas”, analisando a cobertura da mídia sobre o Movimento Sem Terra durante a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito aberta contra o MST no Congresso. Por meio do estudo de cerca de 300 reportagens sobre a CPI, veiculadas nas TVs, jornais impressos e revistas na época, ficou comprovado o padrão da imprensa brasileira em usar termos negativos e pejorativos para se referir ao movimento, em ignorar e silenciar suas vozes no jornalismo e em privar a população brasileira de informações sobre as lutas, reivindicações e conquistas do MST para o povo do campo. Oito anos depois, o padrão permanece.
Mas em um momento político como o atual – em que a importação da retórica do terrorismo cresce para justificar o aniquilamento das lutas sociais e o fundamentalismo reduz a possibilidade da convivência da pluralidade de ideias –, episódios como este requerem nossa atenção. Não apenas porque são exemplos simbólicos do que não se pode chamar de jornalismo. Mas porque sinalizam para uma possível estratégia de crescimento com base na adesão ao discurso oficial do governo de plantão. No caso da Record, um crescimento de telespectadores e também de seu número de fiéis.
Para formar sua opinião sobre as crianças filhas de integrantes do MST de uma maneira plural, assista ao documentário “Sem Terrinha em movimento: brincar, sorrir, lutar”, produzido pelo MST, lançado nesta segunda-feira 11.