O Coletivo Entranhas entrevistou Camila Jourdan, ativista, professora de filosofia e uma das condenadas no processo contra os 23 do Rio de Janeiro. Camila está lançando o livro “2013: Memórias e Resistência”, pela editora Circuito e conversou conosco sobre sua trajetória de luta, as arbitrariedades do processo que a condenou e as possibilidades de resistência de quem acredita que ser de esquerda é construir novos possíveis.
Camila, você pode começar se apresentando, contando o que você faz, o que pesquisa, a sua trajetória, sua militância.
Eu sou professora do Departamento de Filosofia da UERJ desde 2010 e militante anarquista desde os 14 anos, além de mãe de dois filhos. Pesquiso temas na área de Filosofia da Linguagem, minha tese foi sobre o pensamento de Wittgenstein e atualmente desenvolvo um trabalho sobre a chamada “crise da representação”, que se insere na interface entre questões relativas à semântica e à política. Tive uma atuação política que incluiu vários grupos e coletivos libertários ao longo da minha vida, embora tenha ficado um pouco afastada da militância durante minha pós-graduação e também por conta da maternidade. De qualquer modo, sempre procurei apoiar direta e indiretamente as lutas sociais libertárias e as iniciativas autônomas em educação popular. Em 2013, me envolvi diretamente com as mobilizações que tomaram a cidade do Rio de Janeiro, particularmente como apoiadora da resistência da ‘aldeia maracanã’ e das ocupações de rua que ocorreram no período. Por conta disso, sofri muita perseguição política, incluindo o processo absurdo que criminalizou outros 22 ativistas por ocasião da Copa do Mundo no Brasil. Ainda hoje, desenvolvo projetos na área da educação libertária, incluindo um pré-vestibular popular que atua na Mangueira desde 2014 e que está vinculado a um projeto de extensão universitária da UERJ.
Será que você pode contar um pouco sobre esse processo de criminalização que os 23 estão sofrendo? Sabemos que ele é repleto de arbitrariedades e um passo nítido em direção à criminalização dos movimentos sociais, em especial os não institucionais. Como caminhou o processo? Quais as principais arbitrariedades?
Bom, a investigação começa ainda em 2013 e inclui uma série de arbitrariedades já famosas: infiltrados policiais, escutas ilegais, buscas e apreensões ilegais e toda uma construção discursiva que procura associar pessoas, algumas delas que sequer se conheciam, como fazendo parte de uma organização criminosa. Nunca é demais lembrar que o inquérito chegou a pretender investigar o próprio Bakunin, mencionado em uma conversa telefônica. O precedente que isso abre é gravíssimo já que permite transformar, isto é, ler como ‘quadrilha criminosa’ o que seriam organizações e mobilizações políticas perfeitamente legais do ponto de vista do Estado democrático de direito. Claramente, os principais focos são os grupos não partidários, sobretudo os anarquistas. Sabemos que historicamente os anarquistas foram sempre perseguidos, criminalizados, mortos. Muitas vezes estivemos nas linhas de frente das revoluções e fomos traídos em seguida. O próprio aparato repressivo do Estado contemporâneo se constitui em grande medida tendo em vista conter o crescimento das ações anarquistas, nossa história é uma história grandiosa e invisibilizada, extremamente importante para a compreensão dos movimentos sociais e a dinâmica da reação aos levantes e insurreições. Pouca gente sabe, mas a própria Interpol nasceu para conter as ações anarquistas no início do século XX. Por isso é muito ilusório quando se diz que 2013 foi responsável pela criminalização dos movimentos sociais, que as leis de exceção que surgem neste período para conter as manifestações, inclusive a lei anti-terrorista, foi culpa de 2013. Como se isso não fosse um projeto do Estado contemporâneo, como se elas não fossem ser estabelecidas assim que o Estado julgasse necessário. O que se está fazendo com esse tipo de declaração é ajudando a culpar a revolta popular pela repressão do Estado, o que além de conter uma inversão do efeito pelas causas, torna impossível qualquer revolta futura, já que elas sempre ocasionarão como reação, e assim tem sido historicamente, mais repressão e criminalização. Mas voltando ao processo, especificamente, ele responsabiliza indivíduos, permitindo uma punição exemplar, como lideranças de protestos de rua, por manifestações que ocorreram sem liderança alguma. Em máximo grau, nós respondemos por supostas ações violentas nos protestos, embora nossas acusações formais sejam ‘quadrilha armada’ e ‘corrupção de menores’. Mas o fato é que nós fomos presos em casa, não existe nenhuma materialidade para as acusações que sofremos além das acusações de infiltrados e da livre interpretação de escutas. A construção de supostas lideranças para as manifestações de rua daquele período é tão apartada da realidade que qualquer um que tenha vivido 2013 deveria ser capaz de contestar, bastava estar nas ruas para ver que não era assim que as coisas aconteciam, mas, para que haja punição, é preciso parecer que foi assim. Ao lado disso, a pena que recebemos é altíssima, muito acima da esperada se fôssemos levar em conta que se tratam de réus primários. Isso reforça a ideia de uma punição que deve ser dura para ser exemplar. Mesmo as pessoas que o Ministério Público pediu a absolvição foram condenadas, e com a pena mais alta possível. Tal decisão é justificada por uma análise psicológica que lembra o século XIX, que requenta Lombroso e a tese do sujeito criminoso: teríamos uma personalidade distorcida e voltada ao desrespeito pelos poderes constituídos. Caracterização que por si só dispensa comentários.
E como tem sido o processo de solidariedade aos 23? Como tem sido a interação das esquerdas com as injustiças das condenações de vocês? Mais do que isso, como podemos apoia-los nesse momento?
Nós temos recebido bastante solidariedade por vários meios. Ainda assim, alguns setores da esquerda partidária, mesmo sofrendo também perseguição, ainda insistem em repetir discursos que são usados em outros contextos contra eles mesmos. Mas eu não quero insistir nisso, prefiro ressaltar a força dos apoios que estamos tendo, em vez de reclamar pelo que não temos. De qualquer modo, não posso deixar de dizer aqui que não existe uma campanha oficial dos 23, e não creio que possa haver sem que as vozes de alguns sejam suprimidas. Me incomoda muito quando grupos políticos acreditam que podem falar em nome dos 23 como se fôssemos um universal, um conceito, quando de fato somos pessoas com posicionamentos políticos muito distintos, com leituras diversas do próprio processo e isso não deve ser obliterado de maneira alguma em publicações que muitas vezes sequer consultam os envolvidos, mas se acham no direito de falar com o nome de todos e todas. Além disso, hoje, é ainda mais necessário criarmos uma ampla solidariedade entre anarquistas, o que no momento infelizmente não existe. O movimento aqui no Rio é rachado, cheio de brigas internas, o que nos deixa a reboque de outros grupos com intenções políticas diversas das nossas e que, historicamente, muitas vezes se aproveitam da nossa criminalização para se promover. Se não temos um apoio entre nós, ficamos sem escolha para recusar esses oportunismos. Isso é algo que precisa ser sanado. Não se trata obviamente de passar por cima das multiplicidades existentes entre nós, mas de permitir um apoio mútuo nessa diversidade, isso é fundamental para a própria sobrevivência de uma resistência anarquista porque certamente as perseguições políticas não vão parar neste momento.
De 2013 para cá tivemos algumas prisões icônicas envolvendo, de alguma forma, lutas sociais. Primeiro, claro, o caso Rafael Braga, depois o processo de vocês e o dos 18 ativistas presos em São Paulo a partir de emboscada de um militar no Tinder, recentemente absolvidos . Em outra esfera, a prisão do Lula. Por fim, a execução da Marielle Franco. Que conexões você vê entre essas situações, se é que há alguma?
Bom, tratam-se todas de manifestações do estado de exceção, sem dúvida alguma. Começando com Rafael Braga: um rapaz pobre, negro, catador de latinhas, morador da favela, ele foi condenado por porte de Pinho Sol após ser preso em uma manifestação de rua. Como se Pinho Sol fosse um artefato explosivo! Qual o recado que esta condenação nos dá? Que este perfil popular não será tolerado em manifestações, é um recado para o povo, um recado que busca gerar o medo. E é sempre bom lembrar que Rafael Braga segue ainda preso neste momento. O levante popular de 2013 foi calado, criminalizado, a resposta dada a ele foi a repressão e judicialização. E se tentou criar uma narrativa espetacular, fantasiosa, justamente para que a criminalização fosse possível e legitimada. Neste ponto, o papel da mídia, da narrativa midiática criminalizante, foi fundamental porque o estado de exceção não existe hoje separado da sociedade de espetáculo. Em um momento como o que estamos vivendo, de acirramento dos conflitos, perda de direitos, intervenção militar, assassinato da Marielle, é muito simbólico. O golpe institucional sofrido pelo PT também se insere nesse contexto, claro, a história do PT é trágica porque ele foi conivente com um estado de exceção que se voltou contra ele mesmo.
Um dos exemplos dessa conivência que você comenta é a aprovação da lei anti-terrorismo, de autoria do governo Dilma. Ela não é diretamente acionada no processo dos 23, certo? Ainda assim, você a relaciona à condenação de vocês e/ou com esse quadro mais amplo de criminalização das lutas? Como?
A lei anti-terrorismo surge no Brasil também no contexto de reação às mobilizações de 2013, acompanhada de outras leis que criminalizam manifestações políticas e movimentos sociais. Mas, antes disso, elas são tendências internacionais, é um contexto mundial que as impõem. Vamos lá, nós denunciamos os rumos do país quando o PT ainda estava no poder, aliado com setores como o PMDB, cometendo os descalabros da Copa do Mundo, das Olimpíadas e etc. Estes setores depois abandonaram o PT. E a história mostrou que nós estávamos certos. Mas ainda com o PT e seus aliados, aconteceram as articulações para denunciar os manifestantes pelo crime de associação criminosa. O mesmo que ocorreu aqui no Rio neste sentido, ocorreu também em São Paulo. Depois, os setores da burguesia que estavam de braços dados com o PT lhe passaram uma rasteira, mas naquele momento estes setores deram sustentação à escalada de repressão às manifestações populares e estabeleceram leis que permitem a criminalização dos movimentos sociais. Nós não somos julgados pela Lei anti-terrorismo porque ela não existia ainda na época do nosso processo, mas, certamente, se ela já tivesse sido promulgada, nós cairíamos sob ela. Além disso, eu queria aproveitar o espaço para deixar claro que neste momento no Brasil existem pessoas sendo processadas pela lei anti-terrorismo, não são os 23, mas são pessoas pobres, negras, invisibilizadas, algumas delas com problemas psiquiátricos, que estão em inquéritos ficcionais, absurdos, covardes, que tomam conversas em whatsapp, novamente descontextualizadas, e sujeitas à livre interpretações, como sendo provas de que estas pessoas possuem relação com o Estado Islâmico.
A onda de criminalização de movimentos populares como tendência internacional também se relaciona a uma onda de ascensão da extrema direita. Aqui no Brasil, o discurso anti-conservador/contra o fascismo foi, em boa parte, a tônica do processo eleitoral contra o Bolsonaro. Qual você acha que são os caminhos para enfrentarmos essa ascensão conservadora/neofascista no Brasil? Faz sentido dizer que faremos isso por meio do Estado?
Um dos aspectos mais marcantes do neofascismo atual, e talvez particularmente no Brasil, é que ele é sobretudo um micro-fascismo. O que permite e garante o fascismo do Estado é o fascismo que há nos indivíduos. O que há de mais assustador é que a eleição de Bolsonaro faz coro a uma fascistização social crescente que independe inclusive do que virá ele a fazer daqui pra frente, porque ela já está feita e não vai deixar de existir tão facilmente. Por isso eu penso que a verdadeira resistência é antes de tudo de baixo pra cima, da constituição social no micro, construir novas formas de organização, novas formas de se relacionar inclusive, fazer o trabalho de formiguinha que a esquerda institucional não fez “desde abaixo e à esquerda”, como dizem os Zapatistas, nem que seja por uma questão de sobrevivência. Sair das telinhas que capturam toda a nossa energia e indignação em escândalos sucessivos por uma temporalidade do trabalho absoluta. E deixar de defender as fórmulas que não funcionaram, parar de querer ressuscitar a representação que foi morta pelo espetáculo. Não vai ter mais verdade por correspondência, ou vamos morrer afogados em fakenews ou vamos ter que construir uma verdade concreta que ultrapasse a representação. Não vai ter retrocesso, simplesmente porque a história não é progressiva, ou vamos construir uma real ruptura com o que está dado, ou vamos tentar defender um Estado democrático de direito fundado na exceção diante de soberanos totalitários que rasgam a constituição e dançam em cima dela. A esquerda tem que reaprender a propor novos possíveis, ou melhor, tem que lembrar de quando pedíamos o impossível e não aceitávamos menos do que isso. Agora, claro, combater o fascismo por todos os meios possíveis, sabendo que o Estado não pode combater o fascismo realmente, justamente porque o fascismo tem a forma do Estado: uma unidade abstrata idêntica a si mesma e imposta de cima pra baixo. É sempre a mesma forma: o patriarcado; a heteronormatividade; a morte do diferente… A esquerda tem que voltar a ser esquerda e isso não tem nenhuma relação com ser governo, como muito bem colocou o Deleuze, foi de tanto querer ser antes de tudo governo, de tanto querer tomar o poder, que a esquerda foi se tornando direita até a diferença entre elas ser menor que qualquer quantidade dada. Mas a crise da representação é também a crise tanto da social-democracia quanto do liberalismo tradicional. A direita raivosa, o novo momento do neoliberalismo, se insere numa falência da institucionalidade, no gap anti-sistêmico que a esquerda institucional, progressista, tentou esconder quando virou as costas para as possibilidades de transformação sociais reais. Aqueles que atentaram para isso, que viram os limites do pacto de classes, que apontaram uma alternativa anti-sistêmica à esquerda fomos nós, os que agora estão os criminalizados.
Conta para gente sobre o livro que você está lançando “2013: Memórias e Resistências”. Porque é importante falar sobre Junho? Quais são suas as potências e limitações? Como você interpreta esse acontecimento que gerou impressões tão diversas dentro da própria esquerda?
Bom, em certa medida este é o tema do livro inteiro. Mas o que posso dizer é que o que será junho não está dado, é objeto de disputa, de disputas atuais, a nossa criminalização faz parte dessa disputa, o discurso que faz boa parte da esquerda institucional, pelo qual 2013 teria aberto as portas do golpe contra Dilma e, com isso, a própria fascistização social, também faz parte dessa disputa. Então é preciso que a gente conte a nossa história porque disso depende o legado que vamos deixar para as próximas gerações. Eu ando muito influenciada por Walter Benjamin, ele coloca nas teses sobre filosofia da história que “se o inimigo vencer, nem nossos mortos estarão seguros”, e é exatamente disso que estou falando, nossa história é uma história dos vencedores, não basta matar concretamente, é preciso invisibilizar e recontar os ocorridos desprezando a visão dos vencidos. A criminalização é também um tipo de assassinato, por isso é fundamental recontar 2013, dizer bem claro o que aquele período significou para que as próximas gerações saibam o quanto este sistema tem suas brechas, ele precisa se fincar no medo e esconder suas fraquezas, parecer um todo homogêneo e sem lado de fora, mas isso não é exatamente assim. 2013 foi uma insurreição popular, anti-sistêmica, com vasta participação popular e com apoio da população, uma rebelião popular que se voltou contra os símbolos do capitalismo e contra todos os aspectos desse sistema excludente que nos encontramos, é muito presente aí nas lutas que estão em curso e por isso é preciso que aqueles que estão lutando não esqueçam do que houve, não esqueçam do caveirão recuando, da secretária do Estado sentada no chão da aldeia maracanã, da passagem abaixando, das ruas tomadas, do desfile militar invadido, parado, do governador chorando na TV, dos discursos midiáticos mudando, e também do modo como a criminalização conseguiu operar sobre isso, como nos recapturou, como vem punindo e destruindo nossas memórias. Tudo isso precisa ser lembrado porque se tratam de lutas em curso, porque não acabou ainda, porque a própria fascistização crescente nada mais é do que um capítulo nessa história. Não há como entender nossa história recente sem entender 2013.
Por fim, como você interpreta os tempos políticos que estamos vivendo agora? Quais são as perspectivas para quem, como nós, acredita e aposta em outras possibilidades de existência?
Bom, são tempos sombrios, disso não resta dúvida. Mas eu acho que aqueles que nunca acreditaram na nossa falsa democracia estão menos assustados. Existem aqueles que acham que o problema começou agora, quando a possibilidade da ruptura com a suposta democracia sempre esteve dada, e as elites nunca tiveram problemas em fazer uso dessa ruptura sempre que foi necessário. Mas não estou dizendo com isso que não vai piorar, certamente piorará, está piorando, principalmente para aqueles que são alvos. Para quem mora nas favelas; para a população LGBT; para os que são perseguidos ou condenados políticos, como eu… Mas a gente não tem tempo de chorar, a auto-organização como sobrevivência é a única coisa que nos resta. O que podemos tentar retirar de positivo é a abertura de novas demandas por organização concreta, se a porta da institucionalidade está fechada, talvez seja um novo gás para a esquerda voltar às suas bases. E, agora, sem as esperanças do passado, é no que podemos apostar. Isso é o que nos é permitido esperar, principalmente porque a realidade é dialética e não tardará para uma boa parte da população descobrir que seu fascismo é suicida. Se a social-democracia envergonhada e o “gato por lebre” da esquerda partidária decepcionou, a extrema direita também não tardará a decepcionar o povo.