A apreensão de municípios com a saída de cubanos: “vamos perder 16 dos nossos 18 médicos”

Beatriz Jucá – El Páis

No começo, até o idioma parecia um empecilho para que os médicos estrangeiros recém-chegados ao Brasil conseguissem se comunicar com a população das periferias e das cidades mais isoladas do país. Mas a exigência do período de três anos para atuar na mesma localidade incluída no convênio firmado com Cuba levaram esses profissionais a criarem vínculos com as comunidades, que, segundo gestores municipais, repercutiram também em uma melhoria dos indicadores de saúde. Cidades que até então tinham cobertura praticamente nula na atenção básica —aquela considerada mais preventiva, pois faz o primeiro atendimento— passaram a multiplicar equipes e desafogar os atendimentos especializados e em hospitais, economizando verba pública. Segundo o Ministério da Saúde, o programa Mais Médicos, criado em 2013, viabilizou que 700 cidades tivessem médicos pela primeira vez. A presença desses profissionais em mais localidades ampliou o acesso à saúde, as consultas e pré-natais e reduziu até índices de mortalidade infantil.

Em Embu-Guaçu, a 47 quilômetros de São Paulo, a rede de atenção básica era praticamente inexistente antes de 2013, quando chegaram os primeiros médicos cubanos em missão ao país. A secretária de saúde Maria Dalva dos Santos conta que eram escassas as inscrições de médicos brasileiros interessados em atuar na cidade de 67.000 habitantes. “A gente fazia os concursos, mas pouca gente participava”, diz. Segundo ela, o Mais Médicos foi fundamental para que o município pudesse estruturar toda a rede de atenção básica. “Nossa rede virou realidade pelo programa. De 2016 pra 2017, nós tivemos uma redução de mortalidade infantil de 14% para 6%”, afirma.

Na última quarta-feira, Cuba decidiu retirar seus médicos do Brasil, mantidos por um convênio por meio da Organização Pan Americana da Saúde (OPAS), em que 70% da remuneração dos médicos cubanos vai para o Governo da ilha, o que suscita polêmica desde o início da iniciativa. A saída desses médicos tem causado grande apreensão em diversos municípios, entre eles Embu-Guaçu. Todo o atendimento da rede básica da cidade é feita por médicos do programa federal. São 18 médicos, no total, apenas dois deles brasileiros, formados no exterior. Os outros 16 são cubanos e todos eles retornarão à Cuba, seis já em 25 de novembro. “Vamos perder quase 100% dos nossos médicos”, diz a secretária. “Estamos muito inseguros por não saber como vai ser. Ficaremos totalmente descobertos na atenção básica.” Inconformada com a posição do Governo brasileiro em não tentar reverter a decisão de Havana, ela teme um grande retrocesso na assistência prestada na cidade caso o Ministério da Saúde não consiga preencher as 8.300 vagas ociosas pelo fim do convênio e atender aos 24 milhões de brasileiros que dependem desses profissionais. “A gente está muito preocupado porque não conseguimos candidatos em todas as nossas tentativas anteriores de contratar médicos. A gente espera que o Ministério tome uma atitude fidedigna e consiga repor essas vagas”, afirma.

A 53 quilômetros de Embu-Guaçu, também no Estado de São Paulo, o município de Mauá deve perder 33 dos 46 médicos que atuam no programa. A pesquisadora Melissa Spröesser Alonso (Sanitarista e Mestra em Estado, Governo e Políticas Públicas pela FLACSO) acompanhou a implantação do programa na cidade que, se antes tinha dificuldade de contratar profissionais para a periferia, chegou a duplicar as equipes de saúde nos últimos anos e reduzir os índices de mortalidade infantil com o acompanhamento eficiente do pré-natal.

“O médico formado no Brasil, com o CRM do país, normalmente quer estar mais perto de um grande centro, onde pode também ir pra iniciativa privada com propostas melhores”, explica ela. Segundo dados da Democracia Médica no Brasil 2018, uma pesquisa do professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, Mário Scheffer, 84% dos recém-formados em medicina têm nas condições de trabalho o principal fator determinante para fixação em uma instituição ou cidade após a graduação ou residência. A segunda condição mais apontada foi a qualidade de vida, seguida pela remuneração. Por isso, as vagas em locais mais distantes do país ou municípios menores, geralmente com estrutura mais precária, costumam interessar menos estes profissionais.

Antes da chegada dos médicos cubanos, Mauá tinha 40 equipes de saúde da família, mas havia uma dificuldade de fixar esses médicos na cidade e de garantir que tivessem a formação em saúde comunitária. De acordo com o Departamento de Planejamento e Regulação da Provisão de Profissionais de Saúde (Depreps), do Ministério da Saúde, os médicos cubanos têm 62% de permanência no programa enquanto os brasileiros têm 21% e os estrangeiros 17%. “Essa era a dificuldade de muitos municípios desde a criação do SUS. O Mais Médicos tinha esta característica de o profissional permanecer um tempo mínimo no local, o que permite o vínculo com a comunidade”, explica Melissa.

Em 2010 e 2011, a pesquisadora diz que Mauá chegou a oferecer salários mais altos aos médicos que os oferecidos pela capital São Paulo, mas ainda assim não conseguiu suprir a cobertura. “Com o Mais Médicos, conseguimos avançar até o final de 2016 para 85 equipes. Os médicos enfim ficaram nessas regiões onde o médico brasileiro ainda não chegava ou não se fixava. Mauá colocou médicos nas unidades que tinha e ainda ampliou as equipes. Com isso, conseguiu uma cobertura da atenção básica estratégica”, avalia.

Com os casos resolvidos diretamente na atenção básica, as internações hospitalares desnecessárias foram reduzidas. As consultas de urgência, por exemplo, caíram de 76.633 em 2013 para 29.547 em Mauá, em 2017. O aumento no número de consultas na unidade básica e da realização de pré-natal também repercutiu na redução da mortalidade infantil no município: caiu cinco pontos percentuais em três anos (16% para 11%). A cobertura na atenção primária que era de 60,49% em 2012 chegou a 75% no ano passado com o reforço dos especialistas cubanos. “Quando as equipes foram ampliadas, Mauá mudou o perfil do médico. Não se trata só de conseguir médicos com o programa, mas também da formação desse médico. Eles [cubanos] são focados na atenção básica. O fato de a formação deles já ser em saúde da família fez a diferença”, analisa a pesquisadora.

Crise médica

O Governo cubano decidiu retirar o Mais Médicos do Brasil depois de Jair Bolsonaro questionar a preparação profissional dos médicos que integram o convênio e condicionar a manutenção do programa à realização de contrato individual com os profissionais, que também deveriam, para exercer a medicina no país, se submeter ao Revalida (teste que valida o diploma estrangeiro no Brasil). Havana considerou as condições “inaceitáveis” e determinou o retorno dos médicos cubanos. O Ministério da Saúde informou nesta sexta-feira que lançará o edital para cobrir as 8.332 mil vagas na próxima segunda-feira, mas não se pronunciou sobre as 1.600 cidades que já estão com vagas de médicos ociosas há seis meses. “A seleção de profissionais brasileiros em primeira chamada do edital será realizada ainda no mês de novembro e o comparecimento aos municípios, imediatamente após a seleção”, informou em nota.

O presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), Mauro Junqueira, lamentou que a decisão de Cuba seja irreversível e reiterou que a grande dificuldade dos prefeitos será conseguir fixar o médico brasileiro em regiões vulneráveis e garantir o avanço que havia sido alcançado na saúde pública com o programa. A pesquisadora Melissa Spröesser Alonso, que também já foi gestora de saúde, avalia que será complicado garantir a reposição dos médicos. “Em cinco anos do programa, nenhum edital de contratação conseguiu mais de 3.000 médicos. A partir de 2015 a gente começou a ter vagas repostas por brasileiros, nas as zonas mais vulneráveis e com difícil acesso ainda tinha uma ocupação muito baixa. Ainda que se contrate, como garantiremos a permanência?”, questiona. Para ela, o Brasil corre o risco de uma falta de assistência desastrosa. “Vínhamos gradativamente conquistando uma saúde com mais democratização de acesso com a presença de médicos”, completa.

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