João Filho
O JORNALISTA Maurício Stycer lembrou: “Em 9 de novembro de 1989, o TSE, presidido por Francisco Rezek, barrou a candidatura Silvio Santos. Eleito presidente, Collor convidou Rezek para ser ministro das Relações Exteriores, que aceitou”. Em 1992, Rezek seria indicado por Collor a uma cadeira no STF. É exatamente esse plano de carreira que Bolsonaro ofereceu, e Sérgio Moro aceitou.
A repetição da História deveria ser motivo de preocupação geral, mas, em um país com baixa cultura democrática, intoxicada pelo maniqueísmo, o fato está sendo encarado por boa parte da população como o fortalecimento do time do Bem na luta contra o do Mal. Deve estar em algum lugar da Bíblia. Lembre-se que o lema do medievalismo contemporâneo é “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos.”
Enquanto Rosângela Moro fazia campanha para Bolsonaro nas redes sociais, Paulo Guedes oferecia para seu marido uma nova carreira na política. O juiz passou semanas projetando sua estréia na política enquanto ainda vestia a toga, o que é apenas mais uma acintosa imprudência para a coleção de acintosas imprudências praticadas pelo magistrado nos últimos anos. Na última quarta-feira, General Mourão disse que o convite de Paulo Guedes aconteceu “há algumas” antes da eleição. Quantas semanas antes? Terá sido antes de Moro liberar trechos da delação de Palocci às vésperas do primeiro turno? Não se sabe, mas a suspeita por si só já deveria ser considerada inaceitável. Segundo os próprios procuradores da Lava Jato, a delação de Palocci não tem “provas suficientes” e as “expectativas não vão se revelar verdadeiras”. Não havia, portanto, nenhum motivo jurídico para a divulgação. É legítimo acreditar que Moro atuou com uma agenda eleitoral debaixo do braço e calculou os efeitos políticos enquanto vestia a toga. Haddad foi para as cordas no noticiário, enquanto Bolsonaro faturou eleitoralmente com a ação do seu futuro ministro da Justiça.
Além da suspensão do sigilo da delação de Palocci, outras ações tomadas por Moro influenciaram decisivamente o processo eleitoral. Depois de um processo repleto de incoerências jurídicas, o juiz determinou a prisão de Lula, retirando da disputa o candidato favorito dos brasileiros nas pesquisas, faltando 6 meses para o pleito. Chegou a interromper as próprias férias para contestar a decisão de um desembargador que determinou a soltura de Lula, impedindo que o ex-presidente participasse da campanha. Com a eleição definida, Moro não esperou nem a fervura eleitoral baixar e aceitou de imediato fazer parte do governo Bolsonaro, cuja candidatura inequivocamente foi a principal beneficiada pelas ações do juiz durante o período eleitoral.
A suspeita de que Moro atuou nos tribunais calculando efeitos políticos que beneficiassem o candidato que lhe ofereceu um ministério torna-se enorme. Parecer imparcial, tanto quanto sê-lo, é um preceito básico para um juiz. E a história recente mostra que Moro despreza esse conceito, não vendo problema em desfilar em eventos organizados por tucanos ou aparecer cochichando com Aécio Neves em evento público. O juiz aceitou o figurino de antagonista de Lula e fez questão de viajar pelo mundo cumprindo esse papel. Durante muito tempo se cogitou que ele tinha um projeto político pessoal. Agora é possível dizer, fora do campo das cogitações, que esse projeto existia. Resta saber quando que ele começou a ser desenhado. Bolsonaro já vinha cogitando levar Moro para Brasília pelo menos desde outubro do ano passado. A possibilidade, portanto, já estava há algum tempo no horizonte do juiz.
Como todo bom político que nega que será candidato, Moro negou ter pretensões políticas por pelo menos oito vezes. Em uma entrevista para a Veja em novembro de 2017, foi categórico: “no momento — e também não vejo isso no futuro — não seria apropriado da minha parte postular qualquer espécie de cargo político. Isso poderia, vamos dizer assim, colocar em dúvida a integridade do trabalho que eu fiz até o presente momento.” A jornalista pergunta se seria inapropriado “neste momento”, mas Moro faz questão de reforçar: “no futuro também”. Podemos dizer, então, que o Moro do passado concorda que o Moro do presente está colocando em dúvida o seu trabalho frente à Lava Jato.
A condição de super-herói do combate à corrupção foi definitivamente colocada em xeque. Moro topou integrar o governo de um presidente que recebeu 200 mil da JBS e encaminhou esse dinheiro para o seu partido, o PP, o mais enlameado pela Lava Jato. Que conseguiu empregos (alguns deles, fantasma) em gabinetes do Legislativo pro irmão, ex-mulheres, ex-cunhado, ex-sogro. Que usou o auxílio-moradia “pra comer gente”. Que desviou verba da Câmara durante 15 anos para pagar o salário da sua caseira, a Wal do Açaí. O nosso herói da luta contra a corrupção aceitou de bom grado ser subordinado a um político com essas credenciais éticas. O convite para integrar o governo bolsonarista foi intermediado pelo seu futuro colega Paulo Guedes, que está sofrendo uma investigação criminal no MPF por suspeita de gestão fraudulenta em fundos de pensão ligados a estatais. Fico imaginando também como serão as reuniões de Moro com o chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que admitiu ter recebido caixa 2 da JBS. É que, no ano passado, o juiz afirmou que “caixa 2 é pior que corrupção”. Será que o Moro do passado concorda com o Moro do presente nessa questão?
As qualidades democráticas de Sergio Moro também entram em xeque. Ele se disse “honrado” com o convite de um homem que fala em fuzilar e varrer seus opositores políticos. Que cujo filho afirmou que resolveria um problema com o STF mandando militares fazer uma visitinha ao tribunal. Que considera a ditadura militar um período de ouro do país. Que cujo livro de cabeceira é da autoria de um torturador. Ou seja, Sergio Moro aceitou com muito orgulho ser subordinado por um sujeito que reiteradamente despreza a democracia e que passará o mandato inteiro com a carta do golpe militar na manga. Isso diz muito sobre Sergio Moro como cidadão, como juiz e como político.
A escolha no novo ministro da Justiça teve repercussão internacional. Grandes jornais como Le Monde, El País, New York Times, Washington Post, Financial Times e BBC lembraram que a atuação de Moro nos tribunais teve consequências políticas que ajudaram a pavimentar o caminho de Bolsonaro ao Planalto. A manchete do britânico The Timesnão poderia ser mais cirúrgica: “Jair Bolsonaro promete alto cargo a juiz que prendeu seu rival”. Já a grande imprensa nacional, que serviu de palanque para Moro durante toda sua trajetória até Brasília, se mostrou bem mais tímida em contextualizar a indicação de Bolsonaro em suas manchetes. A sacralização do juiz e a a construção do seu projeto político não seriam possíveis sem os holofotes sempre generosos da imprensa.
A mosca azul da política picou Moro. Largou uma aclamada carreira jurídica pela metade para assumir um dos principais cargos de poder do governo federal. Se tudo der errado, tem garantida a promessa de pular para o STF assim que liberar uma vaga. Até lá, Moro terá sob suas rédeas um super-ministério. Com a fusão da Justiça e da Segurança Pública, o ex-juiz comandará a Polícia Federal, a Controladoria Geral da União e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras. A operação Lava Jato, que sempre atuou com independência em relação aos governos Dilma e Temer, foi levada para Brasília e agora atuará dentro do governo de Jair Bolsonaro. Não me parece um bom caminho.
Moro ocupará o segundo cargo mais poderoso do país, o que o coloca diretamente na fila dos presidenciáveis para 2022. É a posição perfeita para quem tem um projeto político e sonha com voos maiores na política. Se perguntarem hoje para ele se existe essa pretensão, Moro provavelmente dirá o que disse para o Estadão há exatos dois anos sobre uma possível migração para o mundo político: “Não, jamais. Jamais. Sou um homem de Justiça e, sem qualquer demérito, não sou um homem da política. (…) Então, não existe jamais esse risco.”
Palavra de juiz.