Por Marcos Urupá e Helena Martins*
Polarização sempre esteve presente na política brasileira. Tivemos, em muitos momentos históricos, dois grandes grupos qualificados como hegemônicos dominando a agenda dos debates políticos. E isso sempre se intensificou durante o processo eleitoral, desde a redemocratização no Brasil. Durante décadas, PT e PSDB protagonizaram uma disputa sobre o modelo de desenvolvimento de país, de políticas públicas, sobre a gestão dos serviços públicos, entre outros temas. Hoje, entretanto, é a manutenção do Estado Democrático de Direito que está em discussão.
É a primeira vez, desde a ditadura militar, que o embate eleitoral extrapola o campo democrático. E, embora o diagnóstico esteja sendo evidenciado por importantes veículos, de linha editorial diversa, da imprensa internacional, a mídia nacional nega o momento histórico que atravessamos e lava suas mãos diante do arbítrio.
A própria ombudsman da Folha de S.Paulo foi obrigada a declarar, em sua coluna em 14 de outubro, que Jair Bolsonaro, candidato do Partido Social Liberal (PSL), exerce uma vertente “política militarista com demonstrações explícitas de defesa da violação dos direitos humanos, de questionamento dos direitos das minorias, que nega a ditadura militar e a ocorrência comprovada de torturas e que mantém reiterados flertes à quebra da normalidade democrática. Esses pontos factuais somados parecem mais do que suficientes para definir uma candidatura como sendo de extrema direita”. A mídia brasileira, entretanto, não o caracteriza como tal.
A violência perpetrada por seus eleitores também não tem recebido o devido destaque de jornais, revistas, emissoras de rádio e TV. O assassinato do capoeirista Moa do Katendê, noticiado nos canais de notícias, não foi objeto de uma análise a partir da perspectiva de sua relação com o discurso de ódio proferido pelo candidato do PSL.
O mesmo aconteceu com o ataque à jovem em Porto Alegre que, por usar um adesivo da comunidade LGBT, onde estava escrito “Ele Não”, foi atacada por três homens e teve uma suástica nazista talhada a canivete em sua barriga. Em países europeus, que viveram o nazismo de perto, o caso seria um escândalo nacional, ao lado da pichação nazista na igreja de Nova Friburgo ou nos banheiros das universidades. Aqui, os meios preferem fingir que não há relação entre esses fatos e a beligerância destilada por Bolsonaro à população negra e LGBT.
O silenciamento mais gritante, entretanto, veio nesta quinta-feira 18, após a notícia publicada pela Folha de S. Paulo de que há caixa 2 na campanha de Bolsonaro financiando o envio massivo de ataques ao PT por meio do WhatsApp. A reportagem de Patrícia Campos Melo fala de diversos contratos na ordem de 12 milhões de reais cada um, que seriam pagos por empresas que apoiam Jair Bolsonaro. A prática configura crime eleitoral e é de enorme gravidade. Partidos com o PDT e o PT entraram com ações junto ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) pedindo a inelegibilidade de Bolsonaro por abuso de poder econômico e uso indevido dos meios de comunicação.
O assunto dominou o dia e os debates na internet no Brasil, mas foi relativizado e mesmo ocultado por grupos de comunicação como Record, Globo e O Estado de S. Paulo. Ao longo da tarde, enquanto a hashtag #Caixa2doBolsonaro ocupou por horas os Trending Topics do Twitter, o portal de notícias do Grupo Globo, o G1, simplesmente não havia noticiado a denúncia. No principal telejornal do país, o Jornal Nacional, só teve espaço na fala de Haddad, durante um ato de campanha. Nenhuma matéria própria sobre o tema, em nenhum dos telejornais da Rede Globo.
Na Globo News, canal de notícias da TV paga do grupo, o tema não foi apresentado por comentaristas como relevante. Ao comentar os números da nova pesquisa Data Folha, a jornalista Andrea Sadi mencionou como fatos novos que vieram à tona neste segundo turno das eleições apenas o vídeo de Cid Gomes crítico ao PT e a tentativa de Fernando Haddad de obter apoio de Joaquim Barbosa. Coube ao representante do Data Folha citar a denúncia e apontar que os impactos dela não foram captados pelo instituto, dado que as entrevistas com eleitores haviam sido realizadas antes do escândalo ser noticiado.
Assim, não só Jair Bolsonaro viu cair a sua máscara de político honesto, que não se vale de práticas corruptas, mas a própria mídia perdeu a vergonha de mostrar sua parcialidade, assumindo a defesa deste candidato.
Apoio ilegal
Para além do silenciamento do perigo que a candidatura Bolsonaro representa à democracia – um dever presente inclusive no Código de Ética dos Jornalistas – diversos meios de comunicação, incluindo concessionárias de radiodifusão, declararam apoio ao candidato do PSL. Desde o final do primeiro turno, Band, Record e Rede TV abriram na sua grade um espaço privilegiado para o candidato falar. A emissoras não ofereceram a mesma oportunidade a nenhum outro candidato, violando a lei eleitoral que proíbe o favorecimento durante eleições.
Nesta quarta-feira 17, o Intervozes e Fórum Nacional pela Democratização entraram com representação junto ao Ministério Público Eleitoral denunciando não apenas esse fato, ocorrido durante o primeiro turno, mas também o favorecimento que segue desde então. A íntegra da representação, que também menciona a TV Cidade, concessionária do SBT no Pará, pode ser lida aqui.
Na noite da denúncia de caixa 2 na campanha de Bolsonaro, o Jornal da Recordtransformou a notícia da Folha em uma ação do PT. O âncora Celso Freitas disse que “o PT entrou com ação no Tribunal Superior Eleitoral contra o PSL por suposto uso indevido de meios de comunicação digital”. A reportagem, de pouco mais de um minuto, dedica seu último terço ao resgate de uma denúncia de contratação de influenciadores pelo PT, feita em agosto. Em vez de abordar de forma aprofundada a situação do PSL, opta por enfatizar que “o PT é suspeito de desrespeitar a legislação eleitoral”.
O posicionamento do grupo Record, vinculado à Igreja Universal, em prol de Jair Bolsonaro, tem gerado críticas de vários jornalistas. O site The Intercept, que funciona no Brasil desde 2016, denunciou os casos de assédio moral internos nas redações do grupo. Virou alvo do Portal R7, da Record. A situação nos veículos da empresa é tão grave que a chefe de reportagem do Jornal da Record, Luciana Barcelos, pediu demissão no último dia 18.
Esta semana, a BBC Brasil publicou uma entrevista com um ex-líder da Ku Klux Kan, afirmando que “ele (Bolsonaro) soa como nós. E também é um candidato muito forte. É um nacionalista”. Organização racista secreta que nasceu no final do século XIX nos Estados Unidos, a Ku Klux Kan perseguiu e assassinou negros e pregou um discurso de ódio racista. A imprensa brasileira também fechou os olhos para este fato. A repórter da Folhaque fez a denúncia sobre os contratos de WhatsApp está sendo ameaçada. Estudos da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da FGV tem mostrado os ataques virtuais dos seguidores de Bolsonaro a jornalistas. A mídia seguirá silenciando sobre tudo isso até ser tarde demais?
*Marcos Urupá é jornalista, advogado e doutorando da Faculdade de Comunicação da UnB. Helena Martins é jornalista, doutora em Comunicação pela UnB e professora da Universidade Federal do Ceará. Ambos integram a coordenação do Intervozes.