A perseguição a um juiz por ‘soltar demais e prender de menos’

Fred Melo Paiva

Depois de algum tempo de campana no estacionamento do hipermercado Extra de Taboão da Serra, na Grande São Paulo, eis que adentra o Fiat Doblò pelo qual espera uma equipe do Departamento de Investigações Criminais (Deic) deslocada da Zona Norte da capital. Os policiais só observam. Quando, enfim, se aproxima outro carro, precipitam-se no tradicional baculejo de ambos, os motoristas com as mãos na cabeça, os veículos revirados.

No interior de um deles encontram 74 tijolos de maconha, cerca de 45 quilos de droga prensada. Duas pessoas são presas. Aos olhos leigos da população e ao crivo relaxado dos punitivistas, aquela fora uma operação exemplar. Pena que o juiz Roberto Corcioli estivesse de plantão quando o caso chegou à sua comarca. Sem se demorar em demasia, mandou soltar.

Dois anos depois, Roberto Luiz Corcioli Filho, de 35 anos, está encrencado com a Justiça. Num país com mais de 726 mil presos em 2016 – terceira população carcerária do mundo e o dobro do que se tinha há dez anos –, o delito do juiz Corcioli é “soltar demais e prender de menos”. Denunciado à Corregedoria por um conjunto de 23 promotores, acaba de ser punido com a “censura administrativa”.

Na prática, a medida proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) tem potencial para encerrar a carreira de Corcioli na área criminal e intimidar qualquer outro juiz cujo entendimento da Constituição seja exatamente o que ela é, uma Constituição garantista. “A mais garantista do mundo”, ensina o jurista Lenio Luiz Streck. “Cumpri-la deveria ser motivo de júbilo e não de punição. Mas, no Brasil de hoje, aplicar a Constituição é um ato revolucionário.”

No Direito, o “garantismo” é a jusfilosofia primeiro implantada entre o fim dos anos 60 e começo dos 70 pelo juiz italiano Luigi Ferrajoli – que, em detrimento de leis escritas no período fascista, detinha-se à Constituição. Acabou por definir uma doutrina que tem por base botar freio no poder de Estado, ensinando que os fins de uma investigação policial jamais podem justificar os seus meios. Tal doutrina versa também sobre um princípio que apenas parece óbvio: questões morais não podem se sobrepor às garantias processuais que estão na Constituição.

Dessa forma, para um juiz garantista não importa a qualidade do crime cometido, se rumoroso ou não, tanto faz. Importa que, independentemente da culpabilidade mais ou menos explícita, se o furor punitivo do Estado induzir ao cometimento de alguma ilegalidade, o processo deve ser considerado nulo não apenas para que se faça justiça – mas também para efeito profilático, de modo a prevenir que a prática vire moda. Foi nesta fonte que bebeu o alvará de soltura firmado por Roberto Corcioli quando deu liberdade aos dois supostos traficantes, nem tão supostos assim.

“Impossível não olhar com certo estranhamento para o presente caso”, escreveu o juiz em sua decisão. “Quem teria passado tal informação à equipe do Deic? Os policiais, sem qualquer apuração prévia, dispuseram-se a sair da Zona Norte de São Paulo para apurar uma notícia de suposto tráfico em Taboão da Serra?”

Os questionamentos de Roberto Corcioli ganham ainda mais sentido quando se entende a figura do juiz não apenas como aquele que pune e absolve, mas também como o fiscal da atuação das forças do Estado, o que de fato é. Corcioli anotou ainda que o Código Penal impede a abordagem de alguém que não esteja em flagrante delito, e que as “fundadas suspeitas” para a fazer não se aplicam aos casos em que denúncias são anônimas.

Todo o ocorrido desenrolou-se no estacionamento de um hipermercado, mas os policiais não foram capazes de trazer ao juízo uma única testemunha, a não ser eles mesmos, observou Corcioli. Por fim, registrou também a obrigação de os suspeitos terem sido levados a uma audiência de custódia em até 24 horas depois da prisão, conforme o Pacto de San José da Costa Rica, da qual o Brasil é signatário.

A citação teria irritado sobremaneira o tribunal, que recentemente implementara toda uma programação para se cumprir o pacto, veja bem, assinado há 30 anos. Em Taboão da Serra não existia as audiências de custódia, mas isso não serviria de desculpa a nenhum juiz garantista, e, portanto, constitucionalista. Pactos internacionais têm status de leis constitucionais – se não havia as tais audiências, deveria haver e ponto. Corcioli mandou soltar os elementos, para o assombro dos cidadãos de bem.

No Brasil loucão recentemente mandado ao front da Guerra Fria, em que um competitivo candidato a presidente homenageia torturador e professa crença no “bandido bom é bandido morto”, não espanta que o garantismo passasse a ser atacado como doutrina comunista, obra, talvez, de bolivarianos da Ursal.

“Há promotores juntando Marx e o garantismo em palestras”, diz Streck, “uma tremenda inverdade histórica.” A censura a Corcioli – um juiz de visão progressista em temas como a Guerra às Drogas e a maioridade penal – acaba por encontrar abrigo também nesse tipo de tolice que parece extraída do Pensamento Vivo de Cabo Daciolo.

“A condenação do juiz Roberto Corcioli é um completo absurdo”, diz a presidente do conselho executivo da Associação Juízes para a Democracia, Laura Rodrigues Benda. “Há casos semelhantes de perseguição ideológica, como o da desembargadora Kenarik Boujikian. Mas o de Corcioli é ainda pior, porque ele foi censurado pelo conjunto de uma obra progressista.”

A então juíza Boujikian, responsável por condenar o médico Roger Abdelmassih a 278 anos de prisão, também recebeu censura administrativa do TJSP ao soltar 11 presos provisórios que cumpriam pena havia mais tempo do que suas sentenças acabaram por fixar (o argumento era de que sua decisão deveria ser colegiada).

Foi absolvida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ao qual Roberto Corcioli também recorrerá, apesar de o estrago estar feito. “Com que liberdade de consciência poderá atuar de novo numa vara criminal?”, pergunta uma juíza próxima a Corcioli. “Não voltará a fazê-lo, o que é um prejuízo enorme para a sociedade e para a magistratura.”

Recém-chegado em São Paulo em 2012, o jovem juiz nascido em Garça (SP) passou a dar plantões no Fórum da Barra Funda. Naquele ambiente conservador, em pouco tempo converteu-se no “doido que chegava lá e, no lugar de prender 80% e soltar 20, soltava 80% e prendia 20” – entre aqueles, um “ladrão” que desviara 6 reais de uma carteira e por isso recebeu pena alternativa; e outro cujo delito fora a tentativa de levar dois salames, o que resultou, atente-se para o absurdo perpetrado por este esquerdopata, em sumária absolvição.

Pois em oito meses promotores denunciaram Corcioli à Corregedoria. E, embora o processo tenha sido rejeitado pelo Órgão Especial do TJSP por 25 votos a 0, o juiz acabou deslocado informalmente para uma vara cível pelo então presidente do tribunal, José Renato Nalini, que depois se tornaria secretário da Educação no governo de Geraldo Alckmin.

Amparado por associações de juízes, impetrou recurso no CNJ pedindo regras objetivas de designação, de modo que magistrados não fossem removidos de seus postos por desagradar a este ou aquele. Saiu-se vitorioso, mas o ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski concedeu liminar a favor do TJ. Até hoje o caso não voltou a ser analisado pelo Supremo, e Corcioli passou a pipocar aqui e ali, sempre nas varas cíveis da cidade.

Farto da errante embora acertada carreira, transferiu-se em 2016 para Itapevi, Região Metropolitana de São Paulo, onde voltou aos plantões e, por conseguinte, ao julgamento de crimes como roubo e tráfico de drogas, inclusive aqueles relacionados à infância. A atuação nas comarcas da região acabou por resultar na nova representação de promotores e em sua censura administrativa.

Entre vários casos descritos na peça acusatória, citam-se os 74 tabletes de maconha; um adolescente posto nas ruas porque sua apreensão fora feita pela Guarda Municipal, que não tem a competência constitucional para esse tipo de ação; a improcedência da representação contra um adolescente com 61 invólucros de cocaína e 55 porções de maconha, apanhado dentro de casa sem que houvesse um mandado judicial autorizando a entrada da polícia.

No pedido de abertura do processo, o corregedor-geral Manoel de Queiroz Pereira Calças defendeu a punição ao magistrado. Dr. Calças foi pego em calças curtas pelo voto contrário de Márcio Bártoli. Em 154 páginas, o desembargador demonstra como as decisões do juiz acham respaldo na Constituição. “Não há nos autos”, também anota, “nenhuma decisão que descumpra entendimento superior.” Caso a caso, Bártoli aponta a jurisprudência de Corcioli: o STF, o Superior Tribunal de Justiça, o próprio TJSP. Mesmo assim, o processo foi aberto por uma lavada de 23 votos a 2.

Preteridas as acusações de crítica indevida ao tribunal em texto (fictício!) do juiz publicado pelo site Jornalistas Livres, além de autopromoção (o que se dirá de Sergio Moro?), sobrou o “conjunto da obra” garantista, apontada pelo corregedor como “ilimitada criatividade interpretativa”, suficiente agora para a sua punição. “As acusações feitas contra o magistrado têm essência explicitamente ideológica”, escreveram em parecer os professores da Faculdade de Direito da USP Conrado Hübner Mendes e Rafael Mafei Rabelo Queiroz.

Em Araraquara (SP), um cidadão preso ilegalmente por 10 meses e 13 dias entrou com ação contra o juiz que determinou seu encarceramento. Em julho, o próprio TJSP ofereceu-se para tomar parte no processo na condição de “amicus curiae”. Punitivistas, como se vê, são amigos da Corte (amicus curiae, em latim). “O tempo do Judiciário brasileiro se divide em AM e DM”, diz o jurista Lenio Streck. “Antes do mensalão e depois do mensalão, quando a sanha punitivista passa a combater violentamente aquilo que podemos chamar de o espantalho do garantismo. Porque o garantismo mesmo, ao que parece, eles sequer sabem do que se trata.”

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