Revista põe lésbicas no centro do debate e desafia narrativas tradicionais

Por Camila Nóbrega e Iara Moura*

O 17 de maio, Dia Internacional de Combate à Homofobia, Lesbofobia e Transfobia, é marcado por uma variedade de eventos que discutem temas relacionados à população LGBTI no Brasil e no mundo. Por aqui, este também é um momento em que a pauta encontra uma brecha narrativa dentro dos meios de comunicação tradicionais. A agenda da diversidade se impõe sobre a dinâmica usual das redações e não falar da população LGBTI pode gerar certo desconforto nos bastidores da mídia.

Editores sentam-se à mesa para debater “o que iremos publicar sobre o 17 de maio”, repórteres correm atrás de entrevistas e eventos e começa a saga para selecionar as fotografias mais adequadas. As palavras lésbica, gay, bissexual e transsexual, normalmente escassas do noticiário diário, ganham algum espaço, como em alguns outros momentos do ano, referentes a conquistas dos movimentos LGBTI.

Toda a falta de debate interno, de representatividade e de mudança para adequação da linguagem às necessidades atuais ganha proporção e, muitas vezes, são expressas nos resultados da cobertura, muito aquém do que se espera. Isso ocorre por um motivo simples: a marginalização das narrativas LGBTI dentro do noticiário brasileiro é diária. Não basta um dia de visibilização e depois o retorno à invisibilidade cotidiana.

Vale dizer que esta não é uma característica exclusivamente brasileira, no mundo inteiro segue a luta por mais espaços e visibilidade. E, embora o país tenha sido reconhecido internacionalmente por alguns avanços na legislação, como a autorização para o casamento homoafetivo, e por realizar um dos maiores eventos LGBTI do mundo, a Parada Gay, em São Paulo, isso não se reflete em representatividade na mídia, e, principalmente, não se reverte na diminuição dos assassinatos da população LGBTI.

É neste contexto que acaba de ser lançada, no Rio de Janeiro, a Revista Brejeiras totalmente produzida por mulheres lésbicas. As criadoras definem o trabalho como “resultado de um movimento cooperativo que procura ampliar os espaços de fala das mulheres lésbicas, trazendo-as para o centro do debate”.

A publicação traz em sua primeira edição reflexões sobre o lugar ocupado pelas lésbicas no Dia Internacional da Mulher, o 8 de março. Nesta entrevista, exclusiva para o Blog do Intervozes, as cinco criadoras da revista, Camila Marins, Cristiane Furtado, Laila Maria, Luísa Escher e Roberta Cassiano, respondem às perguntas de forma coletiva – opção feita por elas.

Intervozes: Como surgiu a ideia sobre a Brejeiras?

Brejeiras: Somos um grupo de cinco amigas sapatonas que se encontrou na militância no PreparaNEM, curso popular preparatório para o vestibular para pessoas trans, vindas de partes diferente do Brasil. A Revista Brejeiras surge a partir do afeto entre mulheres. No aniversário de 40 anos de Cristiane Furtado nos sitiamos, literalmente. Subimos a serra e fomos para um sítio em Rio Bonito de Lumiar, sem internet e sem sinal no celular. Como toda sapatão brejeira, levamos violão, cerveja e vinho.

Sem dúvida, foi um momento especial de cuidados e proteção, renovação de forças para as lutas diárias que enfrentamos. Estávamos apenas entre nós, mulheres, amigas, sem interferências externas, com a mata, o rio, o vento suave e a chuva que, de vez em quando, caía e renovava tudo e todas ao redor. Envolvidas com os afazeres de nossa pequena casinha na mata, entre um risoto e taças de vinho, surgiu a ideia da revista, ainda muito tímida, sem a certeza se teríamos pernas, braços e grana para tocar.

A vida de mulheres lésbicas é pautada pela constante tentativa de sobrevivência. O ato de lutar significa, para nós, construir espaços onde possamos ser e estar juntas, onde possamos falar sobre as especificidades de nossas alianças de vida e nossos desejos. A construção da Brejeiras se inicia diante dessa necessidade de lutarmos pela plenitude de nossas vidas, de pensarmos nossas lesbianidades desde os pequenos gestos cotidianos e nos mais diversos espaços que ocupamos com nossos amores e nossas urgências.

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Por tudo isso, deslocadas de nossas rotinas e em celebração, nossos esforços se voltam para o fazer-se caber em um mundo que nos apaga e exclui. Brejeiras nasce, acima de tudo, do afeto entre amigas, da vontade de nos vermos em um meio de comunicação, da nossa militância, da nossa vontade de pensar em nós, mulheres lésbicas, que pouco vemos representadas no mundo que nos rodeia.

Intervozes: Quais foram (e são) os principais desafios nessa caminhada?

Brejeiras: O que veio depois foi muito trabalho e aprendizado. Entre nós, a única brejeira que tem experiência com o trabalho de comunicação é Camila Marins, nossa jornalista e a quem atribuímos o título de ser “a melhor jornalista do mundo”. Foram muitas reuniões, organizações, divisões de tarefas e um interessante processo de invenção de uma escrita coletiva. Desde o primeiro pensamento sobre Brejeiras, sabíamos que precisaríamos de mais alguém para compor o corpo editorial. E, desde o primeiro momento em que esse assunto foi tocado, pensamos no nome de Laila Maria, também professora do PreparaNEM. Sabíamos que seria muito potente contar com sua perspicácia, seu olhar atento, suas habilidades na área de administração e múltiplos saberes.

Assim, fechamos nosso conselho editorial, com 5 mulheres sapatonas feministas muito diferentes, e com muitas afinidades. Cristiane Furtado, aquariana, gaúcha, historiadora, professora, técnica de som e cervejeira e para os íntimos “Ternurinha”. Cris enche de afeto nossa revista. Luísa Escher, psicóloga, mulher de rio que traz as bênçãos do Tapajós para nós, não perde uma piada maliciosa e investe na potência da beleza e sensualidade de nossa escrita. Laila Maria, da Geografia e do Serviço Social, baiana, a mulher das planilhas e do afeto, cuida dos textos, das redes sociais e das vendas. Roberta Cassiano, filósofa, carioca e pisciana, arrasa na cozinha, na organização dos e-mails, nas artes, na revisão dos textos e nas dicas culturais. Camila Marins, jornalista, militante, taurina, nossa assessora de comunicação, relações públicas, redatora, e o que mais se pode imaginar. Ela faz o impossível em três mensagens e dois telefonemas.

Intervozes: Logo no primeiro número vocês falam em “enfrentar apagamentos”, trazendo reflexões sobre o 8 de março. Quais apagamentos, quando se fala como mulher lésbica, estão no centro do discurso da Revista Brejeiras, falando na sociedade em geral e também dentro dos movimentos sociais?

Brejeiras: A herança colonizadora patriarcal deixa para todas as mulheres o legado do apagamento da sua força de trabalho, da sua importância política, da sua inteligência e da sua voz. As mulheres existem e aparecem nas mídias hegemônicas como objeto de desejo masculino e força reprodutiva. Ser lésbica é dizer não à metade mais rica e poderosa da população.

Ser lésbica é rechaçar a oferta de caber e servir ao desejo masculino. Ser lésbica é ser sujeito de desejo e por nosso desejo pagamos caro. A conta é alta e difícil de pagar sozinha, assim, não por coincidência, todas nós, Brejeiras, atuamos nos movimentos sociais.

Neste ano de 2018, algumas de nós estivemos envolvidas na construção do ato unificado do 8 de março no Rio de Janeiro, e conseguimos unir forças com outras mulheres para dizer não à intervenção militar que assola esse Estado, agrava o genocídio do povo preto e representa mais um golpe à democracia.

Construir esse ato foi um processo extremamente difícil. Algumas vezes, nem fomos lidas como mulheres. Chegamos a ver a palavra lésbica ser riscada de um dos eixos do ato, com caneta vermelha. A única fala de lésbicas (mesmo diante de uma diversidade de movimentos de lésbicas) foi colocada como movimento popular, e não movimento de mulheres.

Consideramos que o papel da mulher lésbica no movimento feminista é ampliar e fortalecer as disputas em torno do ser-mulher, por isso não abrimos mão de brigar com essa leitura que nos nega o pertencimento ao movimento de mulheres. Há um agravamento histórico nesse processo, mulheres feministas sempre foram atacadas e caçoadas por não serem femininas, por serem masculinizadas, por serem lésbicas.

Esse é o “insulto” que elas ouvem nas ruas, nas redes, nas famílias. Acontece que isso é o que nós somos, mulheres lésbicas! O que para muitas é o grande medo, o insulto, para nós é a realidade, o dia a dia, aquilo que somos, desejamos e lutamos para ser.

Nos atos de rua, dos movimentos sociais em geral, sempre há uma fala para o movimento LGBTI e ela nunca é de lésbica. Há muitos homens gays ocupando esses espaços. Raramente conseguimos uma fala pelo movimento de lésbicas em atos contra a reforma da previdência, desmonte do SUS e até mesmo no 8M.

Somos apagadas nos manifestos, nos debates, na política institucional. Até porque dentro dos partidos ainda existe aquela cultura de que sapatão perde voto na sociedade. Parece que só temos direito de fala nas pautas LGBTI e, mesmo assim, é uma briga enorme para conquistarmos o protagonismo. Nós sabemos falar sobre conjuntura, Previdência, teto dos gastos, economia, comunicação.

E os movimentos ignoram a nossa capacidade de mobilização e formulação. Mas nós seguimos nos organizando e a Revista Brejeiras existe para dar visibilidade a esses movimentos, que são diversos, contraditórios, coloridos e potentes.

Intervozes: As mulheres lésbicas negras estão também no centro do debate e do lugar de fala da revista, certo? Como foi esse processo de construção da identidade da Brejeiras?

Brejeiras: O protagonismo de mulheres negras é um princípio para nós. Como a revista surge num contexto de 8 de março e a construção é muito permeada por racismos, este foi o centro da nossa proposta política, inclusive, no sentido de provocar os meios de comunicação que também têm uma narrativa branca.

Quando olhamos as publicações de grande circulação, a maioria traz em suas capas homens brancos, o que é um retrato da vigência de uma estrutura colonial que institui uma supremacia branca que marca os processos de constituição e sociabilidade dos corpos de mulheres negras. Mulheres negras mal são tocadas pelos profissionais de saúde por racismo. Imaginem o que ocorre com uma preta sapatão.

Somos duas mulheres negras (Camila e Laila) no corpo editorial da Brejeiras e nós duas queríamos nos ver e nos ler ali. É o que a Ellen Oléria (capa da primeira edição da publicação) falou em sua entrevista: “enquanto as brancas brigam para entrar no mercado de trabalho, nós, mulheres negras, ainda lutamos para sobreviver”.

Mulheres negras são maioria, mas ainda estamos na base da pirâmide. Somos as que mais morrem, mais sofrem estupros. Tem sapatão preta tomando dura de policial homem. Tem sapatão preta, como Luana Barbosa, brutalmente espancada e executada por policiais. Queríamos trazer também a potência das sapatonas pretas que estão realizando por aí. Tem arte, poesia, fotografia, gastronomia, cultura, lazer.

Como mulheres negras, ter como capa a Ellen foi uma das melhores coisas que poderia acontecer. Ellen é linda, segura de si, tem uma voz sensacional, muitos talentos, atua, apresenta programa de tevê que dialoga com nossas pautas, alguém que admiramos muito. Inclusive, a presença de Ellen em nossa primeira capa indica a construção de uma estética para além da normatividade que subjuga e limita os corpos e belezas das mulheres, representa muito para mulheres negras que não costumam se ver nas mídias convencionais.

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Intervozes: É impossível não pensar no caso da Marielle, quando falamos em visibilidade lésbica no Rio de Janeiro e no movimento de mulheres negras. Já são mais de 60 dias sem respostas. De que forma esse caso absolutamente emblemático se relaciona com o processo da revista e de que forma vocês se veem na atual conjuntura política do país?

Brejeiras: Perder Marielle é dor e pesadelo. É perder uma de nós, alguém que admiramos, com quem construímos, alguém que tensionamos, alguém com quem conversamos, alguém que nos reunia, alguém que nos ouvia, alguém em que confiávamos. Perder Marielle é perder muito. É dor que rasga a carne, que vira lágrima, grito e também abraço. Temos nos abraçado muito, falado muito, fofocado, conspirado, militado.

São sessenta dias de raiva, de luta, de atos, de lançamentos, de amanheceres, de vestir a camisa, de buscar forças que ainda não sabíamos que tínhamos. Marielle vive em nós e nenhuma intervenção militar, nenhum patriarcado, nenhum genocídio vai nos calar, porque nunca andamos sós.

Quando perdemos Marielle, ficamos sem palavras, paralisadas e em luto. Atrasamos a revista e não sabíamos se teríamos forças para continuar. Foi quando, durante os atos, na luta para sobreviver e dar significado a essa perda inenarrável e absurda, ouvimos, uma, duas e diversas vezes, “nenhum um passo atrás”!

E, a partir desse comando, que parecia ser dado por ela, que poderia ter sido dado por ela, reorganizamos nossas forças para continuar, por ela e por todas. A força da vida de Marielle está presente nos corpos que ocupam as ruas diante da ausência devastadora de uma de nós. A presença de Mônica nos atos, homenagens e na luta foi e é algo fundamental para romper com a paralisação, pois, se essa mulher, que perdeu o amor de sua vida, está em pé, nós só podemos estar ao seu lado, apoiando e dando continuidade à história que Marielle construiu.

Intervozes: No contexto de extrema concentração dos meios de comunicação do país, nos quais os grupos LGBTI e especialmente as mulheres lésbicas são muito pouco representadas, não é pequena a vitória de fazer circular uma revista como a Brejeiras. Em termos de narrativas, quais as propostas principais da revista?

Brejeiras: Em primeiro lugar, é preciso dizer que nós acreditamos na comunicação como direito humano e como prática pedagógica de combate às opressões. Os meios de comunicação, tanto da mídia privada como veículos públicos e populares, insistem no apagamento de mulheres lésbicas. Isso porque mesmo em pautas gerais sobre orgulho LGBTI, por exemplo, as narrativas e as fotografias são de homens, especificamente os brancos, fenômeno a que chamamos de movimento GGGG.

Em raros momentos, uma lésbica é entrevistada. Mesmo numa data específica nossa, como o 29 de agosto, Dia da Visibilidade Lésbica, os veículos de comunicação não noticiam ou fazem a cobertura. E este é um aspecto que reforça a misoginia da sociedade.

Os corpos de mulheres que amam mulheres são descartáveis e, portanto, não importam para a agenda da mídia. Nossa proposta central com a Revista Brejeiras é demonstrar a força da mulher sapatona. Não somos corpos descartáveis.

Temos uma força de mobilização incrível. Tanto que lotamos o lançamento, ocupamos a rua e recebemos pedidos de exemplares até de fora do Brasil. Para além de afirmar a narrativa lésbica, nosso objetivo é de mostrar a nossa força e como Brejeiras pode ser instrumento de luta, por meio de debates nas escolas, sindicatos, associações de moradores.

Para que também a juventude sapatona e as mais velhas se vejam ali naquelas páginas. Brejeiras também é cultura do encontro, da crush, da luta e das redes. E somos lésbicas escrevendo para lésbicas. 

Intervozes: Ser mulher lésbica é também revolução, assim vocês apresentam a narrativa da revista. Mas é uma perspectiva que costuma ficar apagada, falando em meios de comunicação. De que maneira vocês propõem essa discussão que traga a mulher lésbica para o centro da sua potência?

Brejeiras: Ser uma mulher e desejar já é muita ousadia. Vivemos em um mundo que mata, desvaloriza, oprime, comprime e ridiculariza mulheres: nossos corpos são considerados públicos, nossos pelos sujos, nossas celulites e estrias deveriam ser escondidas, nossas medidas controladas, nossa voz moderada.

Assim, ser mulher e desejar uma mulher, amar os cheiros, os gostos, as texturas e as curvas de uma mulher já nos parece um atentado aos pudores das estruturas patriarcais. E ser lésbica é tudo isso e mais, é preferir mulher, é dizer não ao desejo masculino, é uma vida que quebra protocolo, é um sexo que não cabe em modelo algum, que rompe com o binarismo ativo/passivo, é viver em um mundo em que ser mulherzinha não é defeito, é dizer que mulheres são confiáveis, é não esperar ser salva por um príncipe, é enfrentar precariedade e redistribuir capital, é revolução.

Quando dizemos nenhum homem será o centro de nossas discussões, abrimos um campo amplo de possibilidades para nós, mulheres. É necessário respirar e pensar, o que somos para além do desejo masculino. Isso é colocar o mundo de cabeça para baixo, é deslocar, descentralizar as estruturas construídas até aqui.

A linguagem é masculina, o que qualifica ou não algo são atributos masculinos. Tudo é feito para que sejamos servas desse desejo. Estarmos no centro é pensar em nós de forma afirmativa, e não em mera oposição. Pensar nossos gostos, nossas estéticas, nossas músicas, nossos saberes, nossa política e nossas diferenças, a partir de nós mesmas.

*Camila Nobrega é jornalista e integrante do Coletivo Intervozes, mestre em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e Iara Moura é feminista, integra o Intervozes e o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).

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