Desabamento de prédio escancara o apartheid habitacional na cidade mais rica do Brasil

Felipe Betim e Carla Jimenez

 

desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, no centro de São Paulo, escancarou uma verdade com a qual a população da periferia convive diariamente, mas que a classe média e alta esquece ou simplesmente ignora. Na maior e mais rica cidade do país, nem todos os seus habitantes podem se dar ao luxo de pagar aluguel ou prestação de um apartamento. Muito menos se o imóvel estiver na região central da cidade e próximo de seus locais de trabalho. Os dados corroboram as impressões: só na capital paulista há um deficit habitacional de 358.000 moradias, o que significa que aproximadamente 1,2 milhão de pessoas vivem de forma precária. Em todo o Brasil, segundo dados do IBGE, mais de seis milhões de famílias — ou aproximadamente 20 milhões de pessoas — precisam de um lugar para viver, ao mesmo tempo em que sete milhões de imóveis estão vazios.

Com exceção de algumas construções, como as torres residenciais para habitação social construídas recentemente — e não sem críticas na região da Cracolândia, o poder público investe há décadas em grandes conjuntos habitacionais nas periferias da cidade. O terreno é mais barato, mas muito longe da maior parte dos empregos de quem precisa morar ali e geralmente sem a infraestrutura adequada. Esta vem sendo, inclusive, a tônica do programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), do Governo Federal. Mesmo assim, a população que mais necessita de políticas públicas habitacionais podem esperar anos, ou décadas, até que consigam suas residências. A COHAB (Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo) possui uma fila de 170.000 pessoas que esperam adquirir, um dia, uma residência subsidiada. Desde 2010, somente 8% das quase 57.000 unidades erguidas pelo MCMV foram destinados a quem ganha até 3 salários mínimos, informa reportagem do jornal O Estado de São Paulo, com dados do Ministério das Cidades. “O Governo Federal cortou o MCMV especialmente na faixa de zero a três salários mínimos, que são exatamente aqueles que mais precisam de política pública”, observa Rolnik. Ela aborda outras possibilidades de políticas, como o aluguel social em imóveis públicos, o subsídio para o pagamento de aluguel em apartamentos já construídos… “O importante é termos um leque de alternativas e não apenas a possibilidade de financiamento da casa própria. Mas há uma total paralisia por parte dos governos municipal, estadual e federal neste momento. Também estão cortando tudo aquilo que existia ou estava sendo feito”.

Dinheiro para solucionar o problema sempre existiu, mas mal aplicado, segundo especialistas em urbanismo e habitação. “Não faltou e não falta dinheiro. Mas ele é colocado num modo de produção de moradia que é muito simplista, porque parte da lógica de que vou comprar grandes terrenos baratos, fora da cidade”, diz Washington Fajardo, arquiteto e urbanista, que cita o programa MCMV, como mau exemplo. “Nunca foi uma política habitacional, mas sim de incentivo econômico para combater a crise de 2008 cujo foco era produzir casa”, completa. Ele cita o fato de o Governo Dilma ter destinado 270 bilhões reais para esse programa. Na gestão Temer, foram outros 70 bilhões. “São 340 bilhões, muito dinheiro. Usando como parâmetro o prédio que caiu em São Paulo, que tinha 14.000 metros quadrados e precisava de 40 milhões para ser reformados, poderíamos ter reformado 8.500 prédios como aquele. Ou seja, o valor colocado no MCMV poderia ter mudado o cenário dos centros urbanos brasileiros”, critica.

Rolnik também aponta outra fonte de recurso que, para ela, é mal aplicado: o auxílio aluguel de 400 reais concedido pela prefeitura de São Paulo para famílias de baixa renda em situações de emergência, como quando são removidas de algum imóvel. As famílias que perderam o teto com o desabamento do prédio, por exemplo, receberão 1.200 reais no primeiro mês e, depois, receberão os 400 mensais, segundo a prefeitura. “Há 30.000 pessoas que recebem esse bolsa aluguel. Algumas estão há dez anos recebendo o benefício e estão na fila para receber uma moradia. Mas não existe em nenhum lugar de São Paulo aluguel por este valor, nem na extrema periferia”, diz Rolnik. “É absolutamente insuficiente para a pessoa pagar uma moradia e não é sustentável. Isso acabou indexando o mercado, que já absorveu o preço dessa bolsa. Com esse recurso todo, a gente já podia estar fazendo algo. É uma falácia quando dizem que não há dinheiro. Ele só não está indo para quem precisa e para onde precisa”, completa. Para Evaniza Rodrigues, da União dos Movimentos de Moradia, que representa cerca de 40 grupos, o bolsa aluguel não é uma alternativa, nem pode ser vista como uma parte de uma política habitacional. “É mais para tirar o problema imediato da frente. Mas ele continua”, diz.

Fajardo diz que programas como o MCMV, visto como alternativa por muito tempo, focam na construção de condomínios fechados para a população carente, um modelo similar ao dos ricos, “estimulando que a sociedade viva em guetos”. Milton Braga, doutor em urbanismo pela USP, segue a mesma linha. “São como depósitos de gente: sem mistura social, não são áreas adequadas, não têm infraestrutura, nem têm oportunidade [de trabalho perto]. É ruim para o Estado que tem de construir tudo que falta, fica mais caro que construir no centro, e é ruim para o morador que acaba privado de oportunidade”, diz ele.

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