Reportagem El Pais
Quase quatro meses se passaram desde que oito homens foram mortos no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, durante uma operação da Polícia Civil e do Exército. E os responsáveis pela chacina continuam sendo um mistério. Tanto o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MP-RJ) como o Ministério Público Militar (MPM) abriram inquérito para investigar as mortes, ocorridas no dia 11 de novembro. Mas, segundo denunciou a ONG internacional Human Rights Watch, as Forças Armadas estão bloqueando as investigações ao não disponibilizarem seus soldados para prestar depoimentos como testemunhas ao MP estadual.
A organização explica que, no dia 28 de novembro, promotores do Estado se reuniram com o general Walter Braga Netto, chefe do Comando Militar do Leste e agora interventor federal. Braga Netto foi nomeado interventor pelo presidente Michel Temer (MDB) no último dia 16. Naquela data, requisitaram ao militar uma cópia das declarações feitas pelos 17 soldados que participaram da operação do Exército e pediram para entrevistá-los como testemunhas do caso. Entretanto, até o momento as Forças Armadas não cooperaram com o MP estadual. “A obstrução das investigações por parte do General Braga Netto mostra a falta de comprometimento real em garantir justiça às vítimas nesse caso e mostra um flagrante desrespeito às autoridades civis”, disse Maria Laura Canineu, diretora do escritório do Brasil da Human Rights Watch. “Isso é um péssimo sinal para os cidadãos do Rio de Janeiro, considerando seu novo posto como chefe da segurança pública do Estado”.
Paralelamente, o MPM instaurou um inquérito para apurar o caso. Desde outubro do ano passado, um projeto de lei aprovado no Congresso e sancionado por Temer transferiu para a Justiça Militar a responsabilidade de apurar e julgar supostos crimes cometidos pelas Forças Armadas em operações de segurança dentro do país. Assim, a Procuradora Maria de Lourdes Sanson teve acesso aos depoimentos que os soldados prestaram ao Exército e, em momento posterior, pôde ela mesmo interrogá-los, segundo garantiu o próprio MPM ao EL PAÍS.
Por sua parte, o MP estadual explicou ao EL PAÍS já ter solicitado uma “cópia das declarações dos militares para análise, mas ainda não as recebeu”. Disse ainda que, “após o exame das declarações, examinará se solicitará ao Comando Militar do Leste a apresentação de alguns ou de todos os militares para oitiva”. Também explicou que, “por ora, ainda não foi formalizada qualquer solicitação ao Comando, pois a investigação ainda encontra-se em andamento”. A Procuradoria ainda disse que “ouvirá um dos sobreviventes e aguarda a juntada de peças técnicas para análise”.
Duas operações, oito mortos
Os soldados que foram escutados até o momento participaram da operação do dia 11 de novembro e estavam em veículos blindados. Tanto eles como os policiais civis asseguram que não houve troca de tiros. Mas uma operação realizada dias antes, no dia 7 de novembro, no mesmo Complexo do Salgueiro, dá pistas sobre o que pode ter acontecido.
Além de contar com 3.500 membros das Forças Armadas, assim como policiais federais, civis e militares, o Exército usou helicópteros para transportar os seus homens para uma área de mata dentro da comunidade, segundo admitiu na ocasião o Comando Militar do Leste. “Segundo contou um integrante do sistema de justiça do estado, o plano era que as forças que entraram no Complexo do Salgueiro forçassem os suspeitos a fugirem pela Estrada das Palmeiras e pela área de mata, onde os militares do Exército, escondidos, os interceptariam”, explica a Human Rights Watch. A operação foi considerada um fracasso porque as facções criminosas foram supostamente avisadas do plano.
Assim, na madrugada do dia 11, a Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE), uma unidade de elite da Polícia Civil, e o Exército realizaram uma nova operação na mesma área, mas com um efetivo menor. Haviam entrado na comunidade dentro de três veículos blindados e, ao chegarem à Estrada das Palmeiras, encontraram pessoas baleadas e feridas. Sete pessoas morreram no local e uma outra morreu no dia 1 de dezembro no hospital por conta dos ferimentos.
Testemunhas afirmaram que os tiros vieram da área da mata e que, na noite do dia 10, viram homens descendo de rapel dos helicópteros, no escuro, para dentro da mata — tal e como havia ocorrido dias antes. Segundo o relato de um sobrevivente ao EL PAÍS, os atiradores surgiram da mata após atirar, vestiam preto e portavam capacetes e fuzis com mira a laser. Trata-se do mesmo equipamento utilizado pelas forças especiais do Exército. O Comando Militar não admite ter colocado seus membros na mata, mas suas explicações se mostraram contraditórias na ocasião. Primeiro, soltaram uma nota dizendo que aqueles da operação enfrentaram “resistência armada por parte de criminosos”. Mais tarde, o Comando mudou a versão e limitou-se a dizer que os soldados que participavam da operação apenas “ouviram tiroteios”.
Esta versão foi reafirmada ao EL PAÍS nesta sexta-feira. O Comando ainda afirmou que, além de os militares terem sido ouvidos pelo MPM em um Procedimento Investigatório Criminal, as armas foram acauteladas desde o dia da operação. “Cabe ressaltar que o MPM é o órgão competente para apurar crimes militares, atuar no controle externo da atividade policial judiciária militar e na instauração de inquéritos que envolvam militares das Forças Armadas”, argumentou.
A Human Right Watch destaca por sua vez que, “mesmo que a lei impeça o Ministério Público estadual de investigar os membros do Exército na condição de suspeitos das mortes em questão, os promotores podem colher seus depoimentos na condição de testemunhas”. Isso porque a operação contou com membros da Polícia Civil, “sobre os quais os promotores têm jurisdição”. Em meio a uma inédita intervenção federal, em que o general Braga Netto atua também como chefe máximo da segurança pública do Rio, a operação no Salgueiro e os limites encontrados pela Justiça comum para investigá-la indicam que outros crimes e abusos podem acabar não sendo esclarecidos e punidos.