Emenda do teto de gastos também afeta direito à comunicação

Por Ana Claudia Mielke*

Quem acompanha os debates sobre os impactos da Emenda Constitucional 95, sancionada em dezembro passado pelo presidente Michel Temer, sabe que a imposição do teto nos gastos públicos ao longo de 20 anos levará o Brasil a um estado de vulnerabilidade profunda no que diz respeito à garantia dos direitos sociais. Saúde e educação serão certamente as áreas mais atingidas, mas o desmonte atinge outros setores, como a radiodifusão e a internet.

Em 2017, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), principal empresa pública da área nopaís, recebeu 57,7% menos do que o previsto em seu orçamento, que era de R$ 708.409.651, em função do corte geral de 4,7 bilhões de reais em investimentos feito pelo governo federal depois da aprovação da PEC 55, atual Emenda Constitucional 95.

As consequências diretas são evidentes. Sucateamento material da empresa, precarização das condições de trabalho, cancelamento de contratos e, consequentemente, de programas, que impactam diretamente na qualidade da programação. Indiretamente, há um problema maior.

O desinvestimento na comunicação pública, somado ao desmonte na EBC – que teve início no pós-golpe, com a edição da MP 744 (Lei nº 13417/2017), que extinguiu o Conselho Curador da empresa e acabou com o mandato de seus presidente –, impacta negativamente a liberdade de expressão e o direito à informação dos brasileiros.

Isto porque os cortes na EBC atingem frontalmente o princípio da comunicação para o desenvolvimento, a inclusão e a democracia, que devem nortear os investimentos públicos nesta área. Além disso, regridem em algumas décadas a tentativa de cumprimento do Art. 223 da Constituição de 1988, que prevê a complementaridade entre os sistemas de comunicação, com a instituição de meios públicos, para evitar que a sociedade brasileira seja refém exclusivamente da mídia comercial.

Para se ter uma ideia dos estragos na EBC, a Rádio Nacional da Amazônia, gerida pela empresa pública e que alcança toda a população da Amazônia Legal, permaneceu seis meses fora do ar depois que um raio atingiu o Parque de Transmissão da EBC, localizado no Distrito Federal. A justificativa da direção foi que não havia recursos para a troca dos equipamentos danificados. Assim, centenas de milhares de ouvintes cativos, que vivem nas regiões norte e centro-oeste do Brasil, ficaram sem acesso à informação e ao entretenimento produzido, há mais de 40 anos, pela Rádio Nacional.

A política de desmonte e os desinvestimentos apontam, ainda, para um futuro nada promissor para a comunicação pública do Brasil – que não se resume à EBC, mas que tinha nela o principal pilar para a constituição de uma rede de distribuição de conteúdo não comercial no país. Na semana passada, a direção da EBC anunciou seu segundo Plano de Demissões Voluntárias (PDV) deste ano. A meta é desligar os 22% do quadro de funcionários que atualmente se enquadram nos critérios do programa.

Exclusão digital

Além do descaso com a radiodifusão pública, os programas de inclusão digital estão todos parados. Para se ter uma ideia, parte da verba contingenciada pelo Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) iria para o programa Governo Eletrônico – Serviço de Atendimento ao Cidadão (Gesac), que leva conexão em banda larga gratuita a mais de 6.800 mil unidades escolares, postos de saúde e telecentros em todo o país. O programa só não colapsou por conta da liberação de uma emenda da Comissão de Ciência e Tecnologia do Senado.

A lógica do atual governo federal é deixar a cargo do mercado a oferta da conectividade à população. As mudanças previstas na Lei Geral de Telecomunicações (Lei nº 9.472/1997) por meio do PLC 79/16, que tramita no Senado, devem consolidar a primazia do setor privado na gestão da inclusão digital dos brasileiros.

Ainda no campo da Internet, vale lembrar que, em 2017, as Câmaras de Consultoria que compõem o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.Br), órgão de governança multissetorial da Internet no país, não se reuniram, ao que tudo indica, em função de cortes do orçamento. E o Fórum da Internet no Brasil (FIB), realizado todos os anos, quase não aconteceu. A diminuição no número de bolsas na edição deste ano também foi criticada por prejudicar a participação de atores de regiões mais distantes do território nacional. Considerado o espaço preparativo no país para o Fórum de Governança da Internet (IGF), promovido pela ONU, o FIB teve seu peso político e diversidade comprometidos também pela política de austeridade.

20 anos de atraso

O desmonte dos setores de comunicações e ciência não é exatamente uma novidade. A fusão do Ministério das Comunicações com o de Ciência, Tecnologia e Inovação já demonstrava que o ajuste fiscal imposto pelo governo passaria pelo fim de investimentos em setores estratégicos. No caso do MCTIC, os cortes ocorridos no início do ano foram de 55,36% em relação ao previsto na Lei Orçamentária Anual de 2017.

Para piorar, boa parte deste recurso tem sido reiteradamente contingenciado para “cobrir o rombo do déficit público”. Já foram contingenciados mais de R$ 425 milhões do orçamento do órgão em 2017 e, até o final do ano, este montante deve chegar a R$ 500 milhões, segundo o cálculo de alguns especialistas.

O impacto sobre a ciência, principalmente sobre a pesquisa e a manutenção das universidades, já vem sendo denunciado por entidades setoriais como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), por meio da campanha Conhecimentos Sem Cortes. Em documento publicado em outubro, a SBPC questiona a “solução” dada pelo Brasil para resolver a crise econômica. Em grande parte de países que passaram por crises econômicas recentes, os recursos investidos em ciência e tecnologia se mantiverem, por haver um entendimento de que estes setores são estratégicos para retomada do desenvolvimento.

No Brasil, ao contrário, além de o governo federal desinvestir em setores estratégicos como comunicações e ciências, ainda o faz com base no discurso da austeridade. O problema é que este mesmo governo não tem medido esforços para aprovar suas reformas, gastando rios de dinheiro em publicidade institucional no rádio, na TV e jornais e revistas impressos.

O orçamento da Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom) para 2017 era de R$ 180 milhões. Até junho, o órgão já havia dispendido R$ 100 milhões em propagandas da Reforma da Previdência (55% do total). Em novembro, uma nova campanha, ainda mais arrojada, voltou a circular nos veículos de comunicação, com gastos ainda mais elevados. Ao que tudo indica, não houve cortes na Secom e, possivelmente, seu orçamento terá, inclusive, estourado.

Atentado à democracia

Durante audiência pública realizada na Câmara dos Deputados, no último dia 14/12, para questionar a Emenda Constitucional 95 e denunciar o descalabro que serão os 20 anos de imposição de um teto nos gastos públicos, o presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), Darci Frigo, alertou para o fato de que os desinvestimentos públicos atingem diretamente também a democracia.

Isto porque, além de causar enorme impacto nos direitos humanos, econômicos, sociais e ambientais dos brasileiros nos próximos 20 anos, a EC 95 também tem caráter ditatorial e antidemocrático, visto que limita a escolha de um projeto político para o país ao condicionar o orçamento dos próximos 20 anos e a forma como os novos presidentes deverão investir os recursos públicos. Em outras palavras, a única saída para a execução de um projeto de país diferente do que está aí é a revogação da EC 95.

Esta análise se alinha a outra, mais específica, porém igualmente determinante, do que é ou do que será a nossa tão jovem democracia: num país em que meios de comunicação comerciais são propriedades privadas concentradas nas mãos de poucos grupos econômicos e onde as políticas para o setor de telecomunicações – responsáveis por levar infraestrutura de conexão à Internet aos brasileiros – são determinadas pelas por poucas operadoras do setor, desinvestir na comunicação redundará num forte abalo ao desenvolvimento, à inclusão e à democracia.

* Ana Cláudia Mielke é jornalista, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP e coordenadora executiva do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

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