O cientista político Fernando Antônio Azevedo, autor do livro recém-lançado “A Grande Imprensa e o PT (1989-2014)”. Professor titular do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de São Carlos (PPGPol/UFSCar), Azevedo é também pesquisador associado do NEAMP/PUC-SP – Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política- e do CESOP/UNICAMP – Centro de Estudos de Opinião Pública, cedeu uma entrevista para o site Manchetômetro em que expõe a análise das relações entre mídia e política.
Vamos conferir!
Fernando, no livro você aborda a constituição mútua entre os sistemas político e de mídia no Brasil a partir do modelo mediterrâneo e a luz do conceito de paralelismo político. Como se configura essa relação e quais os argumentos e elementos se repetem historicamente, referentes a clivagem liberal-conservadora e nacional-desenvolvimentista?
Fernando Azevedo: O jogo político brasileiro nos períodos democráticos apresenta uma linha de continuidade em sua clivagem ideológica: o embate histórico entre as forças de centro-direita e centro-esquerda se dá em torno das teses liberais de um lado e, de outro, do nacional-desenvolvimentismo que tem caracterizado as bandeiras da esquerda brasileira desde a democracia de 45. Historicamente, a imprensa brasileira tem se posicionado editorialmente ao lado das forças políticas de centro-direita. No passado, os grandes jornais, como o Estadão e O Globo, foram antigetulistas e apoiaram o golpe que derrubou o governo Jango e a instauração do governo militar. O Estadão, depois do AI-5, fez uma oposição liberal, mas mantendo seu viés conservador. A Folha apoiou o regime autoritário durante toda a década de 70, os anos mais duros da ditatura, e só no final do processo de abertura política é que se redefiniu editorialmente e aderiu a campanha das diretas já. Na atual quadra democrática, como meu livro mostra, os três grandes jornais foram críticos sistemáticos do PT e de seus governos. E, em 2016, apoiaram o afastamento da Dilma, embora com argumentos e ênfases diferentes. Este ativismo político caracteriza plenamente um paralelismo da imprensa em relação aos atores políticos tanto no passado quanto no presente.
Com base na observação de um período temporal extenso, você descreve os perfis dos principais veículos impressos do país. Quais proximidades e diferenças você ressalta como mais significativas entre eles? Algum deles se aproxima mais do ideal de imparcialidade? Podemos afirmar que a imprensa é partidarizada no Brasil?
Fernando Azevedo: Eu não diria que a grande imprensa é partidarizada, no sentido de apoiar um partido ou estar vinculado ou associado a uma liderança política. Ela, a imprensa, pelo menos os grandes jornais de circulação nacional, não tem vínculos verticais com organizações partidárias, políticas ou governos e são organizações comercialmente independentes que dizem adotar o modelo normativo do jornalismo liberal de inspiração norte-americana, baseado no equilíbrio e na neutralidade. Mas, por outro lado, a nossa imprensa também é caracterizada por um forte jornalismo de opinião, de comentários, no qual os editoriais, as colunas e os artigos possuem um grande peso em relação às páginas informativas. Mas, há diferenças editoriais entre eles. Embora os três grandes compartilhem os mesmos valores ideológicos, O Estadão e o Globo são mais conservadores e a Folha tenta manter um espaço de discussão mais plural, apesar da predominância de articulistas e colunistas liberais e/ou conservadores sobre os de esquerda. Aqui, é necessário lembrar que não há problema nenhum os jornais se posicionarem como liberais ou conservadores; o problema é que o nosso sistema de mídia é concentrado, monopolizado e não há diversidade e fontes alternativas de informação, configurando, desta forma, um importante desequilíbrio e déficit democrático na arena informacional.
Como você entende a participação da imprensa brasileira na consolidação de nossa democracia nesses últimos 25 anos? E qual papel ela vem desempenhando na atual conjuntura, especialmente no que concerne ao golpe parlamentar e os seus desdobramentos? Vivemos um momento “pós-democrático”?
Fernando Azevedo: Apesar do golpe parlamentar que feriu nossa democracia não acho que vivemos um momento “pós-democrático”, mas um período em que o sistema político está fragilizado perante o eleitor e a crença na democracia em viés de baixa por conta da crise de credibilidade dos partidos e dos políticos enredados em denúncias e processos judiciais e pela ilegitimidade do atual governo. Com o impeachment da Dilma a lógica que comandou o processo político-eleitoral da Nova República, e que se expressava na polarização entre o PSDB e o PT, acabou. A eleição de 2018 recolocará um cenário muito parecido com a primeira eleição direta pós-redemocratização, em 1989, com um governo impopular incapaz de bancar um sucessor e uma disputa aberta sem um candidato efetivamente competitivo, com a exceção de Lula, mas que se encontra ameaçado de ser impedido de se candidatar. Este cenário, marcado ainda por uma onda conservadora e pela ação dos grupos de extrema-direita, encerra o perigo do discurso populista “salvacionista”, de cunho autoritário e regressivo ganhar apoio. A imprensa, que apesar do paralelismo político e o seu apoio ao impeachment de 2016 participou da construção da nossa democracia recente, tem um papel importante a desempenhar na defesa dos valores democráticos e na denúncia e rejeição das tendências autoritárias e regressões conservadoras. Provavelmente fará isso, apoiando um candidato de centro-direita, moderado e confiável às elites, mas teremos que ver o quanto ela será capaz de defender os valores básicos da democracia e os direitos das minorias que hoje estão sob ataque.
Em outro trecho do livro, você observa que os grandes jornais têm como público alvo as classes AB e que o jornalismo opinativo é voltado para essas classes. Sobre isso, trazemos, como você brinca nas considerações, uma pergunta típica do dilema Tostines: Como se estabelece essa relação entre poder econômico e poder comunicativo? A opinião dos jornais reflete as preferências dos seus consumidores, os grandes conglomerados midiáticos sustentam interesses específicos e buscam convencer a audiência de suas pautas, ou mesmo sofrem interferência de interesses de outras empresas privadas e de elites políticas que tentam agendar determinados temas e influenciar a opinião pública? Como você acha que essa interação se manifesta? E qual o papel do jornalismo televisivo, tendo em vista seu caráter mais popular, nesse imbróglio?
Fernando Azevedo: A pergunta básica que conduz a pesquisa do meu livro é: o que explica o apoio da imprensa às forças de centro-direita ao longo do tempo, atravessando sistemas partidários e eleições? Uma hipótese possível é a de que esse apoio se deve a uma estratégia de fidelização do público desses jornais que, sociologicamente, é constituído por um estrato de renda e nível educacional alto e conservador do ponto de vista político. Sem dúvida, esse público compõe a audiência por excelência dos chamados jornais de prestígio e qualidade. Mas, aqui, estamos diante de um dilema do tipo Tostines: “o biscoito vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais? “. Assim, embora, de fato, os três grandes jornais pesquisados escrevam para um público que pretendem manter fidelizado, talvez a hipótese mais robusta e de maior amplitude explicativa é a da afinidade histórica e ideológica com o ideário liberal-conservador, mais forte e visível no caso dos jornais O Globo e Estadão, mas também presente no caso da FSP. No caso do jornalismo televisivo, é importante lembrar que os principais canais jornalísticos do país e líderes de audiência em seu segmento (TV Globo e Globonews) pertencem a Rede Globo, e, portanto, seguem a mesma lógica editorial do jornalismo impresso do grupo. Os canais concorrentes possuem pequena audiência e impacto reduzido no público, mas são mais plurais na informação política, como o jornal da Band. Seja como for, é preciso atentar que a maior parte da pauta do jornalismo televisivo é baseado nas notícias que saíram nos jornais impressos e digitais, mas o impacto da televisão na opinião pública é muito maior porque atinge uma audiência muito ampla.
A partir da análise do enquadramento do PT nas manchetes e editoriais durante os períodos eleitorais, você observou a existência de dois pacotes interpretativos dominantes “O PT é um partido ideologicamente negativo” e “O PT é um partido corrupto”. Quais são os precedentes históricos do antipetismo? O seu surgimento e diferentes expressões, evidenciadas por esses pacotes, estão vinculadas a quais outros fenômenos?
Fernando Azevedo: Os precedentes históricos do antipetismo se encontram no antigetulismo dos anos 50, o Getúlio democrático, que então incorporou as bandeiras nacionalistas associada com a concepção de um Estado mais presente e intervencionista, como motor para o desenvolvimento. Este Vargas, definido como populista, foi combatido duramente pelas forças liberais aglutinadas na UDN e lideradas por Carlos Lacerda. Vargas e o seu governo foram caracterizados como populista e como corrupto, os mesmos enquadramentos que seriam, depois, atualizados para o governo Jango e, finalmente, para o PT, Lula e os governos petistas. Nesse caso, antes do PT chegar ao poder, o enquadramento predominante na narrativa editorial era o esquerdismo e o populismo e, depois do mensalão, o tema da corrupção. Como se vê, os enquadramentos básicos usados tanto no passado como no presente são, no essencial, os mesmos.
Na sua pesquisa, você observa uma cobertura midiática acentuadamente personalista, sobretudo no que se refere a exposição do ex-presidente Lula. De que maneira se conforma essa relação entre o antipetismo e o personalismo político?
Fernando Azevedo: A cobertura personalista é decorrente, em parte, das características do regime presidencialista na qual a figura do presidente é central no sistema político, e das características do que Manin chama de “democracia de público”, na qual a interação e a relação do líder político com o cidadão se dão mais de forma direta, via televisão ou mídia social, do que pela intermediação do partido. Além do mais, Lula certamente é, desde Getúlio, o maior líder popular deste país. Nesse sentido, a visibilidade de Lula sempre foi maior do que o do PT, mas a sua figura era e é indissociável do PT e do petismo porque a sua trajetória política se confunde com o partido. Portanto, atacar Lula era e é bater, por tabela, no PT.
Embora a grande mídia tenha uma cobertura claramente contrária ao Partido dos Trabalhadores, ao ex-presidente Lula e à ex-presidenta Dilma Rousseff, as consecutivas vitórias dos petistas em eleições e reeleições sinalizam que a percepção da população em relação aos fatos noticiados não é acrítica e passiva. Por que isso acontece?
Fernando Azevedo: A mídia tem um papel muito poderoso na formação da opinião pública e na decisão do voto do eleitor, especialmente num sistema de mídia monopolizado e altamente concentrado como o nosso, em que a diversidade política na grande mídia é muito restrita, e em que a grande mídia atua de forma paralela ao sistema político defendendo valores ideológicos e posições políticas. Mas, é preciso atentar que a mídia não a única fonte de informação no processo eleitoral. As campanhas políticas importam, e possuem uma grande força no convencimento do eleitor que estão expostos aos spots políticos, aos debates na televisão e, principalmente, ao Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral. E, mais recentemente, das mídias sociais. Além do mais, o público e o eleitor não constituem uma audiência passiva, como já mostraram largamente várias pesquisas de recepção desde Lazarsfeld. O eleitor filtra a informação que recebe através de suas crenças e valores e também de sua experiência pessoal, da sensação de “feel good”. Isso explica porque Lula, apesar de todo noticiário negativo em torno de seu nome, mantém a dianteira hoje nas pesquisas de intenção de voto com forte apoio nas classes de menor renda. O seu governo distribuiu renda e ampliou acesso à bens e serviços e essa memória é acionada hoje pelo cidadão que foi beneficiado pelas políticas públicas dos governos petistas.
Pesquisas de opinião sobre confiança nas instituições listam as forças armadas e a igreja como as que inspiram melhor credibilidade nos brasileiros. Como você acha que a mídia interfere na construção desses valores? Por outro lado, pesquisas recentes divulgadas pelo Latinobarómetro mostram que os brasileiros são os que menos confiam na democracia na América Latina. Como você observa o papel da mídia na formação de opiniões políticas das cidadãs e cidadãos?
Fernando Azevedo: A opinião pública e a confiança dos cidadãos nas instituições e na democracia são, numa sociedade de massa, em boa parte, mediada pela mídia. Em períodos críticos, como o que estamos atravessando, em que políticos e partidos de vários matizes estão sob suspeição ou são alvos de investigação e denúncias da operação Lava Jato, o noticiário é predominantemente negativo para o sistema político como um todo. Este noticiário reiteradamente negativo produz uma espiral de desconfiança e descrédito nos cidadãos que pode ser muito perigoso para a democracia, como disse em uma resposta anterior, pois pode levar à descrença generalizada e ao cinismo ou às soluções populistas de direita com discursos autoritários e regressivos. Esta situação explica os níveis baixos de adesão aos valores democráticos entre os brasileiros medidos pelo Latinobarómetro.
Na Argentina, um dos grandes conflitos enfrentados pela ex-presidenta Cristina Kirchner foi para regulamentar a mídia e alterar o monopólio do grupo Clarín. No Brasil, uma das principais críticas da esquerda direcionadas aos governos petistas é de que eles não enfrentaram efetivamente a concentração dos grandes meios de comunicação. Qual papel você acredita que esse debate pode desempenhar nas eleições de 2018?
Fernando Azevedo: Acho que nas eleições de 2018 este tema, o da regulação dos meios de comunicação, apesar de importante, será marginal. Há outros assuntos mais importantes e urgentes na agenda de debates. Mas, cedo ou tarde, o tema terá que ser colocado em discussão e a possibilidade de se avançar nele dependerá da composição futura do congresso nacional. Na Argentina, o governo de Cristina Kirchner tinha um apoio mais firme no legislativo para propor medidas que quebrassem o monopólio informacional. Aqui, os governos petistas governaram com uma base de apoio menos firme politicamente e com um congresso mais conservador que bloqueou qualquer iniciativa sobre o tema. E com a oposição dos grupos de mídia que interditam esse debate associando de forma esperta regulação dos meios de comunicação com restrição à liberdade de expressão e de imprensa. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Regular é impor limites à concentração e ao monopólio da informação que se dá através da propriedade cruzada dos meios de comunicação. Não tem nada a ver com a liberdade de imprensa que é uma condição básica e fundamental da democracia.