Vícios e Perversidades, por Deborah Duprat

 

Com o advento da modernidade ocidental, as relações de gênero ficaram fora do âmbito da justiça. Desde os primeiros teóricos do contrato social, estabeleceu-se a diferença entre justiça e vida boa, que se traduziu numa distinção entre o público e o doméstico. A esfera da justiça – desde Hobbes, passando por Locke e chegando a Kant – é vista como o domínio de chefes de família masculinos, responsáveis por criar as bases legítimas da ordem social1. À mulher, foram confiadas as tarefas da criação, da reprodução, do amor e do cuidado, desenvolvidas no âmbito doméstico.

Kant2, por exemplo, fazia uma distinção entre cidadãos ativos (aqueles que participam da elaboração do contrato social, têm direito ao voto e se caracterizam pela independência) e passivos (aqui incluídas as mulheres, as crianças e adolescentes, os empregados, enfim, todos aqueles que dependem de outras para sua subsistência). Apenas a sua doutrina dos direitos pré-políticos concede alguns direitos a esses indivíduos.

O amplo direito dos homens aos corpos femininos é uma percepção ainda mais naturalizada em países como o Brasil, onde os episódios da conquista e da escravidão operam alegoricamente sobre mulheres indígenas e negras: territórios sobre os quais se avança e possessões que cotidianamente se afirmam.

Foi preciso o transcurso de um longo período de tempo para que, ao menos no plano normativo, se permitisse às mulheres dispor de seus próprios corpos e decidir sobre a sua reprodução. Em 1994, a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, do Cairo, consagrou a seguinte obrigação para os Estados, em seu princípio 4: “Promover a equidade e a igualdade dos sexos e os direitos da mulher, eliminar todo tipo de violência contra a mulher e garantir que seja ela quem controle sua própria fecundidade são a pedra angular dos programas de população e desenvolvimento. Os direitos humanos da mulher, das meninas e jovens fazem parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais. A plena participação da mulher, em igualdade de condições na vida civil, cultural, econômica, política e social em nível nacional, regional e internacional e a erradicação de todas as formas de discriminação por razões do sexo são objetivos prioritários da comunidade internacional”3.

A partir de então, diversas Agências da ONU, Comitês e Relatores Especiais, além da Organização Mundial da Saúde, têm defendido que os países devem revisar suas leis restritivas de acesso ao aborto seguro como garantia dos direitos humanos das mulheres. Os organismos internacionais apontam, com base em tratados e nos diversos compromissos estabelecidos em conferências internacionais, que a negativa a mulheres ao aborto seguro, além de ferir o seu direito à saúde, é um grave preconceito em decorrência do gênero e um ato de violência. Atinge desproporcionalmente as mulheres em condições de vulnerabilidade econômica e social, inclusive devendo ser compreendida como submissão à tortura4.

No texto constitucional brasileiro, não há um dispositivo específico contendo a expressão “direitos sexuais e reprodutivos”. No entanto, como ficou claro desde a Conferência do Cairo, não se está diante de uma nova geração ou dimensão dos direitos humanos. Ao contrário, constituem uma constelação de liberdades e direitos, sejam civis, políticos, econômicos, sociais, ou culturais, já reconhecidos em legislações nacionais e internacionais de direitos humanos, e que afetam a vida sexual e reprodutiva de indivíduos e casais.

A primeira expressão de garantia de domínio do próprio corpo está no princípio da dignidade da pessoa humana e na sua ideia-força de autonomia/autodeterminação. A matriz dessa ideia é a concepção de que cada pessoa humana é um agente moral dotado de razão, capaz de decidir sobre suas escolhas existenciais, e que deve ter, em princípio, liberdade para guiar-se de acordo com sua vontade.

Imediatamente correlata, é a própria noção de liberdade. Como ressaltou Ronald Dworkin, uma mulher que seja forçada pela sua comunidade a carregar um feto que ela não deseja não tem mais o controle do seu próprio corpo. Ele lhe foi retirado para objetivos que ela não compartilha. Isto é uma escravização parcial, uma privação de liberdade”5.

Direitos sexuais e reprodutivos e direito à saúde têm também uma implicação direta. Já em 1967, a Assembleia Mundial da Saúde identificou o abortamento inseguro como um problema sério de saúde pública em muitos países6, sendo uma causa importante de morte materna evitável.

A gravidez indesejada é ainda fonte de angústia e sofrimento psíquico. Há, nesse contexto, sentimentos que combinam frustração de projetos de vida com o peso da responsabilidade que recai sobre a mãe. Como lembra Dworkin, “para muitas mulheres, ter filhos indesejados significa a destruição de suas próprias vidas, porque elas próprias não deixaram ainda de ser crianças, porque não mais poderão trabalhar, estudar ou viver de acordo com o que consideram importante”7 (…) “Em outros momentos, a necessidade de abortar se impõe não a partir de um impulso assassino de pôr fim a uma vida, mas da dura realidade de um parceiro financeiramente irresponsável, uma sociedade indiferente aos cuidados com os filhos e um ambiente de trabalho incapaz de atender às necessidades dos pais que trabalham”8.

Um outro direito fundamental inscrito na Constituição brasileira e que está na gênese dos direitos sexuais e reprodutivos é o da igualdade. Mais uma vez invocando Dworkin9, “se as mulheres fossem livres e iguais aos homens em suas relações sexuais, (…)  se tivessem um papel mais verdadeiramente igual na formação do ambiente moral, cultural e econômico no qual as crianças são concebidas e criadas – então o status de um feto seria diferente, pois seria mais verdadeira e inequivocamente a criação intencional e desejada da própria mulher, em vez de algo que lhe é imposto”.

De mais a mais, no Brasil, a proibição do aborto voluntário tem impactos diferenciados tomando-se em conta ainda recortes de classe, raça, etnia e região geográfica. O Ministério da Saúde10, ao se pronunciar sobre “o aborto e saúde pública no Brasil: 20 anos”, diz que a sua criminalização impacta negativamente a saúde das mulheres, em quase nada coíbe a prática, além de perpetuar a desigualdade social. O risco imposto pela ilegalidade do aborto é, em sua maioria, vivido pelas mulheres pobres e pelas que não têm acesso aos recursos médicos para o aborto seguro.

Por fim, cortes constitucionais regionais e internacionais vêm concluindo que, embora também protegida, a vida intrauterina o é em intensidade menor do que a de alguém já nascido. E seguramente a decisão mais importante sobre o tema vem da Corte Interamericana de Direitos Humanos, não só porque o Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), a ela submetendo-se, mas também pela interpretação que conferiu ao artigo 4.1 da Convenção (“toda a pessoa tem direito a que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”). Em Artavio Murillo vs Costa Rica, a Corte IDH decidiu que, de acordo com a expressão “em geral”, a proteção do direito à vida não pode ser absoluta, “sendo gradual e incremental segundo seu desenvolvimento”.

Aliás, essa é a filosofia do nosso direito penal. O feto, o recém-nascido e as pessoas em geral têm níveis de proteção diferenciados, considerando as penas cominadas, respectivamente, ao aborto, ao infanticídio e ao homicídio.

A aprovação da PEC 181/2015, que pretende proteger a vida desde a concepção, terá dois efeitos imediatos: eliminará a possibilidade de o legislador ordinário criar causas de atipicidade ou despenalização do aborto, tornando criminosas as condutas hoje permitidas, como são os casos de risco à saúde da gestante, gravidez resultante de estupro e anencefalia; e ensejará igual sanção aos crimes de homicídio, infanticídio e aborto.

Não se pode imaginar iniciativa mais contrária à Constituição brasileira, aos tratados e convenções internacionais firmados e ratificados pelo Brasil, e ao bom-senso.
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1 BENHABIB, Seyla, “El Ser y el otro en la ética contemporánea – feminismo, comunitarismo y posmodernismo”. Barcelona: Gedisa, 2006, p. 178.

2La metafísica de las costumbresMadrid: Tecnos, 1989, pg. 315.

3 Relatório da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento – Plataforma de Cairo, está disponível em: http://www.unfpa.org.br/Arquivos/relatorio-cairo.pdf. Acesso em 17/04/2017.

4 Comité de Derechos Económicos, Sociales y Culturales, observación general núm. 20 (2009) sobre la no discriminación y los derechos económicos, sociales y culturales; Comité de los Derechos del Niño, observaciones generales núms. 4 y 15; Resolución 70/137 de la Asamblea General y UNESCO, Orientaciones Técnicas Internacionales sobre Educación en Sexualidad (2009). Informe del Grupo de Trabajo sobre la cuestión de la discriminación contra la mujer en la legislación y en la práctica (2016). Todas as publicações podem ser consultadas em: http://www.ohchr.org/EN/pages/home.aspx.  Acesso em 17/04/2017.

5 DWORKIN, Ronald.“”The Moral Reading of the Maroritarian Premise”. In Freedom´s Law: The Moral Reading of the American Constitution. Cambridge: Harvard University Press, 1996,  p. 98.

6 Organização Mundial de Saúde – Abortamento seguro: Orientação técnica e de políticas para sistemas de saúde. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/70914/7/9789248548437_por.pdf, Acesso em 17/04/2017.

7 DWORKIN, Ronald. “Domínio da vida – aborto, eutanásia e liberdade individual”.São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 143

8id, pp. 79/80

9 ob. cit. p. 78

10 Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Ciência e Tecnologia. “Aborto e Saúde Pública 20 anos. 2009. Brasília: Ministério da Saúde, p. 428 (Série B. Textos Básicos de Saúde).

Deborah Duprat – Subprocuradora-Geral da República Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão

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