O diagnóstico é da doutora em Ciências da Comunicação Magali do Nascimento Cunha, professora da Universidade Metodista de São Paulo, onde se dedica ao estudo da mídia, religião e cultura. Evangélica e integrante da Igreja Metodista, a professora agora faz parte do time de colunistas da CartaCapital, onde escreve às quintas-feiras.
Em entrevista, a professora fala sobre a ascensão dos evangélicos pentecostais e neopentecostais no Brasil, fenômeno que, segundo ela, se alinha com a revitalização da economia dada com o Plano Real e com as políticas sociais consolidadas nos anos 2000.
CartaCapital: Recentemente dados mostram um aumento no número de evangélicos pentecostais no cenário religioso brasileiro. O que explica esse aumento e como você avalia?
Magali do Nascimento Cunha: O crescimento dos pentecostais no Brasil pode ser observado em dois momentos: um primeiro nos anos 80, década considerada perdida do ponto de vista sóciopolítico-econômico, dados os efeitos das políticas da ditadura civil-militar sobre a vida da população e outro depois dos anos 90.
As promessas de cura, exorcismo e prosperidade do pentecostalismo foram uma resposta às maiorias que mais sofriam com a inflação e falência do serviço público de saúde. A pregação da prosperidade e da guerra espiritual, a oferta de cura para doenças e de exorcismo do mal representaram e ainda representam alívios diante da degradação da vida promovida pela explosão urbana.
Depois dos anos 90, com a revitalização da economia, consolidada com as políticas de inclusão a partir dos anos 2000, o pentecostalismo vai ajustar o discurso teológico à dimensão da prosperidade, não como uma saída para problemas, mas como ascensão a um estilo de vida não permitido antes.
Acompanha-se o surgimento da nova classe média, com possibilidades de pequenos empreendimentos e participação na lógica do consumo. São grupos pentecostais que vão ter sucesso na adequação da religião à realidade que se consolidava. Por aí podemos explicar o crescimento expressivo, que vai acabar influenciando as demais igrejas históricas como as protestantes e a católica.
CC: Junto com isso podemos enxergar uma ascensão política dessa classe, especialmente no Congresso. Há algum plano de poder para isso ou algo que explique essa maior participação dos evangélicos na política?
MNC: A partir do Congresso Constituinte eleito em 1986, houve uma mobilização de igrejas para terem representantes no Congresso que votaria a nova Constituição depois da ditadura civil-militar. Foram 32 eleitos naquele pleito.
Configurou-se então uma nova força não só política, mas sociocultural, com o crescimento intenso dos evangélicos a partir dos anos de 1990, que buscaram ocupar espaços na esfera pública, em especial os grupos pentecostais, com aquisição de mídias e projetos políticos muito claros, como a Igreja Universal do Reino de Deus e da Assembleia de Deus.
Depois de altos e baixos em termos numéricos, desde a Constituinte, decorrentes de casos de corrupção e fisiologismo, a bancada evangélica se consolidou como força, o que resultou na criação da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) em 2003.
Soma-se a isso o claro projeto político de igrejas como a Universal do Reino de Deus e a Assembleia de Deus de ocupação e criação de partidos e busca de mais poder decisório na esfera pública. Podemos dizer que estas duas igrejas são as duas grandes forças deste grupo na política institucionalizada. Essas duas denominações evangélicas têm um projeto político claro e podemos dizer que os seus deputados as representam.
CC: Se tratando de um Estado que tem como princípio a laicidade, o que implica a maior participação evangélica na política?
MNC: O Estado laico é uma busca não plenamente alcançada, desde que o Estado se desvinculou da Igreja Católica com a República. Esta questão está mais acesa agora à medida que temos uma bancada identificada como religiosa no Congresso com poder de decisão baseado nos seus preceitos de fé. No entanto, não podemos colocar apenas nos evangélicos o peso do comprometimento da laicidade do Estado. Há muitos anos, a fé católica romana interfere na dinâmica social, política e cultural do país. O que os evangélicos fazem agora no parlamento é ampliar este espaço que já é dado pelos poderes da República ao catolicismo. Tudo isso é grave à medida em que constitucionalmente somos um país laico que garante liberdade de crença. Isso significa direitos a todos que incluem os que não creem.
Questionar a postura da bancada evangélica é imperativo, mas este questionamento deve ser acompanhado das posturas em relação ao catolicismo também. Um Estado laico e democrático deve trabalhar pelo lugar para todos no espaço público. Grupos religiosos estão entre este “todos” e não devem ser vistos como ameaça ainda que entre eles existam os que tenham discursos e propostas conservadoras e reacionárias. O pluralismo no Estado laico e democrático representa espaço para posições políticas e ideológicas diferentes. É no confronto e no debate respeitoso entre as diferenças que se abre espaço a mudanças.
CC: Para alguns segmentos da esquerda, o aumento no número de evangélicos e sua ascensão política gera medo ou preconceito. Você você avalia essa resposta?
MNC: Há muito preconceito e atitudes intolerantes da parte de grupos de esquerda para com evangélicos pois “caem na armadilha” proporcionada pelas grandes mídias que dão espaço e voz tão-só aos grupos conservadores e fundamentalistas, que são, de fato, os que historicamente predominam nos espaços religiosos evangélicos. Nesse sentido, quem se opõe ao conservadorismo de evangélicos que fazem política institucional e não-institucional, acaba reforçando a ideia de que temos um grupo homogêneo, com porta-vozes e fechado a toda e qualquer pauta que passe pelo campo dos direitos humanos, econômicos, sociais, culturais, ambientais e sexuais.
Evangélicos não são sinônimo de conservadorismo. Não se trata de um bloco monolítico. Há muita diversidade entre os evangélicos, com grupos que atuam em frentes de defesa da vida, dos movimentos populares, de causas que envolvem a paz com justiça. Há evangélicos feministas, que defendem as transformações do conceito de família e a justiça de gênero. O que se torna urgente é a possibilidade do debate e de expressão das diferentes vozes. Isto é o que precisa ser garantido neste contexto democrático, e é aqui que o lugar das mídias se reveste de importância.
CC: De que forma você avalia a bancada evangélica no Congresso? Eles realmente tem a representatividade dos evangélicos brasileiros para receber esse nome?
MNC: Não podemos falar que os deputados e senadores no Congresso representam os evangélicos. Primeiro porque “evangélicos” é um segmento social de uma diversidade que neste pequeno espaço não se pode explicar. Temos no Congresso Nacional parlamentares ligados a 26 igrejas representadas, entre elas 18 são pentecostais. A Igreja Universal do Reino de Deus e a Assembleia de Deus são as duas grandes forças desse grupo, como mencionei, com 42% dos deputados. A outra fatia de 60% está distribuída por 22 diferentes denominações, a grande maioria delas com apenas um parlamentar eleito. Grande parte de quem está lá não está representando seu grupo, mas um projeto pessoal. Tamanha diversidade dos evangélicos no Brasil, e diversidade que está no interior dos próprios grupos na sua singularidade, torna impossível que falemos de representação. Esta tese é uma armadilha de algumas lideranças em busca de poder político e religioso na qual as mídias noticiosas são capturadas e a reproduzem sem reflexão e pesquisa.
CC: Os evangélicos, principalmente os pentecostais e neopentecostais, tem concordância suficiente para definir os rumos das eleições de 2018? Seu posicionamento político poderá refletir nos resultados?
MNC: Os evangélicos sempre sonharam em eleger um presidente da República. Este sonho apareceu em discursos desde o início do século XX, e mais recentemente, se concretizou com as candidaturas de Anthony Garotinho (2002), Marina Silva (2010 e 2014) e Pastor Everaldo (2014). A força da bancada evangélica e o sucesso eleitoral de Crivella no Rio só potencializam este projeto para alguns grupos.
Quem disse que a participação evangélica na política se restringiria ao legislativo nunca leu este processo com a complexidade que ele exige. Este é um fenômeno que marca o momento atual da política brasileira, em que os evangélicos se colocam na arena como um bloco organicamente articulado. Os evangélicos não são mais “os crentes” ou os grupos fechados de outrora.
A separação social, “do mundo”, deixa de ser um valor evangélico da tradição fundamentalista-puritana: são hoje um grupo que desenvolve a cultura “da vida normal” combinada com a religião com presença nas mídias, moda própria, artistas e celebridades, inserção no mundo do mercado e do entretenimento. Além disso, este segmento religioso se vê fortalecido como parcela social que tem suas próprias reivindicações e pode eleger seus próprios representantes para os espaços de poder público.
CC: No seu livro Do Púlpito Às Mídias Sociais você fala sobre o ativismo evangélico digital. A inserção do grupo nas mídias socias, no entretenimento e na política é um fator determinante para o aumento no número de evangélicos?
MNC: Eu não diria que é fator determinante para o aumento do número de evangélicos mas para ampliar a visibilidade deste grupo e potencializar sua presença no espaço público, sim. A popularização das mídias digitais faz parte do processo de ampliação de espaço e visibilidade pública dos evangélicos. A dimensão da participação e da transformação dos receptores em emissores, por meio de processos de interação possibilitados pelas novas mídias, especialmente, pela internet, mudou radicalmente o quadro da relação igrejas-mídias.
Outro elemento que se destaca neste processo de “ocupação evangélica das mídias digitais” é o espaço conquistado pelos desvinculados do ponto de vista eclesiástico – os chamados sem-igreja ou desigrejados. Pessoas que professam a fé evangélica e que por alguma razão decidiram pela desvinculação institucional, mas desejam continuar partilhando da fé em comunidade e expressando publicamente reflexões, ideias, experiências, opiniões. Se isso já acontecia no nível presencial com as comunidades alternativas que sempre existiram, com as mídias digitais foi ampliada a possibilidade de encontro e interação dessas pessoas, com a formação de comunidades virtuais.
CC: Sabemos o poder que existe dentro das redes sociais. A inserção de personalidades e igrejas nestes espaços de formação de opinião, também influenciou a maior participação política dos evangélicos nesse período de crise econômica e institucional?
A relação entre religião e política é um fenômeno que marca o momento atual da política brasileira, em que os evangélicos se colocam com destaque na arena como um bloco organicamente articulado: não são mais “os crentes” ou os grupos fechados, como eram vistos antes. A separação social, “do mundo”, deixa de ser um valor: eles são hoje um grupo que desenvolve a cultura “da vida normal” combinada com a religião com presença nas mídias, artistas e celebridades, moda própria, inserção no mundo do mercado e do entretenimento.
Vemos grupos conservadores que sempre ocuparam as mídias tradicionais bastante ativos e são os que têm mais repercussão. Mas vemos também grupos progressistas e isto é algo que merece atenção. As mídias digitais têm sido usadas abundantemente por evangélicos que tem uma abertura para causas e pautas sociais libertárias que nunca ou raramente encontram espaço em mídias tradicionais, evangélicas ou não.