Vacância presidencial em tempos de ruptura institucional

José Ribas Vieira

Diogo Bacha e Silva

Fernanda Alves Lage Dantas


No dia 12 de maio de 2016, o Senado Federal por 55 (cinquenta e cinco) votos favoráveis contra 22 (vinte e dois) votos contrários autorizou a abertura do processo de impeachment contra a presidente eleita em 2014 Dilma Rousseff. Como consequência da votação, a presidente fora afastada do exercício da Presidência (art. 86, §1º, inc. II da CF/88) e, por fim, na sessão plenária de 31 de Agosto de 2016, o Senado Federal por 61 (sessenta) votos favoráveis e 20 (vinte) votos contrários decretou o impedimento da presidente Dilma Rousseff, acusada de cometimento de crime de responsabilidade como atentado à Lei Orçamentária. O mesmo Senado Federal, no entanto, deixou de decretar a suspensão dos direitos políticos.

Duas questões merecem ser ressaltadas do inusitado impeachment da presidente Dilma Rousseff. A primeira questão é que a tipificação do crime imputado à presidente Dilma Rousseff das conhecidas “pedaladas fiscais” não resistiria a um perfunctório exame jurídico-analítico. A propósito, o Tribunal de Contas da União (TCU) sempre considerou tal prática legal e considerou que tais práticas orçamentárias se assemelhariam a operações de crédito, sem nunca afirmar a referida prática ilícita.  Assim, houve, em verdade, um verdadeiro golpe parlamentar, na medida em que utilizamos o processo de impeachment como moção de desconfiança típica de um regime parlamentarista.

A segunda questão extremamente relevante é que, regra geral, a argumentação utilizada pelos parlamentares, tanto deputados quanto senadores, para o impedimento da Presidente eleita era sua baixa popularidade e uma grave crise econômico-financeira que assolava o país. Em qualquer caso, a argumentação é do tipo falacioso non sequitur, já que somente um regime parlamentarista autorizaria a queda de um governante pela baixa popularidade, jamais um regime presidencialista como o nosso.

O golpe parlamentar que culminou com o impedimento da Dilma Rousseff em 2016 marcou uma ruptura jurídico-institucional com a Constituição de 1988 e o regime presidencialista de governo. Mesmo que alguns cientistas políticos denotem o fenômeno como o esgotamento do presidencialismo de coalização[1], a questão nuclear do golpe parlamentar é que este marcou a ruptura com o projeto constitucional de 1988 e o regime presidencialista de governo que, queiramos ou não, mantinha certa estabilidade política.

A ruptura jurídico-institucional marca a travessia do rubicão. Após a ruptura, as instituições públicas – aí incluídos Poder Judiciário, Ministério Público, Poder Legislativo e Polícia Federal – sentiram-se à vontade para mergulhar nossa sociedade em um regime de exceção, sempre sob o argumento incontestável da luta contra a corrupção sistêmica e os argumentos econômicos de uma política da austeridade[2].

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Dentro de tal contexto político é que devemos interpretar os recentes acontecimentos da conjuntura política nacional e, portanto, também inseridos nessa dinâmica devemos propor uma saída constitucionalmente adequada para os dilemas enfrentados.

No dia 17 e 18 de Maio de 2017, pouco tempo depois de completado 1 (um) ano da abertura do impedimento da presidente Dilma Rousseff, tornou-se públicas as delações premiadas realizadas pelo empresário Joesley Batista e outros empresários do grupo empresarial JBS implicando o presidente Michel Temer, o senador Aécio Neves e o deputado Rodrigo Santos da Rocha Loures em crimes de corrupção passiva, bem como organização criminosa tipificada na Lei 12. 850/2013 e obstrução de justiça nos termos do art. 2º, §1º da Lei 12.850/2013. Tais fatos foram praticados durante o mês de Março de 2017, portanto, concomitantes ao exercício do mandato presidencial por parte de Michel Temer.

A imunidade especial do Presidente da República prevista no art. 86, §4º obsta apenas a responsabilização criminal por atos anteriores ao mandato e que não estejam ligados ao exercício da função presidencial. Assim, portanto, o julgamento de crimes comum do Presidente da República está previsto em duas fases: o juízo de admissibilidade da Câmara dos Deputados (art. 51, inc. I da CF/88) e o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (art. 102, I, b da CF/88). Desta feita, acertadamente o min. Edson Fachin no Inquérito 4438 autorizou a abertura de investigação contra o Presidente da República no dia 02 de Maio de 2017 por pedido da Procuradoria Geral da República, já que haviam indícios da autoria de crimes por parte do Presidente Michel Temer no exercício de seu mandato.

Sem adentrar aos meandros processuais levantados acerca da gravação, o que nos interessa é o clima de instabilidade político-institucional e as possíveis respostas oferecidas pela Constituição em caso de sucessão presidencial.

Tão logo os fatos se tornaram públicos com ampla divulgação da mídia, vozes se levantaram para pedir ao Presidente da República que renunciasse ao seu mandato. Certamente, se a renúncia tivesse ocorrido e, ainda, se vier a ocorrer estaremos diante de uma hipótese inusitada sob os auspícios da Constituição democrática de 1988.  Pela primeira vez durante o projeto constitucional democrático de 1988, teremos uma Presidente vítima de um impedimento e seu vice-Presidente que deixará vago o cargo de Presidente da República. Poderemos também assistir, diante de vários pedidos já protocolados na Câmara dos Deputados, a primeira vez que, durante o mesmo mandato, dois Presidentes sofrerão impeachment.

Em qualquer caso, está em disputa a interpretação em torno do regime constitucional da sucessão presidencial. Faltando pouco mais de 1 (um) ano para o término do mandato da chapa Dilma-Temer e, diante de todos os acontecimentos durante o mandato 2014-2018, qual seria a interpretação constitucionalmente adequada da vacância presidencial definitiva na Constituição de 1988 em tempos de ruptura institucional.

Em caso de vacância do cargo de Presidente e vice-Presidente da República, serão chamados ao exercício interino da presidência, o Presidente da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal (art. 80). Obviamente, a vacância pressupõe a impossibilidade do titular para o exercício das funções presidenciais, seja por impedimento, pela renúncia ou morte.

Neste caso, a questão está disciplina no art. 81 da Constituição Federal de 1988 que dispõe “Vagando os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, far-se-á eleição noventa dias depois de aberta a última vaga”. Assim, os substitutos que assumirem interinamente o exercício da Presidência da República tem por dever constitucional convocar eleições a serem realizadas no prazo de 90 (noventa) dias após a data que deu ensejo à vacância. Excepcionalmente, prevê a Constituição Federal no art. 81, §1º que se a vacância se der nos dois últimos anos do mandato, a eleição deve ser realizada no prazo de 30 (trinta) dias por meio do Congresso Nacional, nos termos regulamentados por lei.

Explicitamente, em nossa história constitucional, o art. 52, §3º da Constituição de 1934 foi a primeira Constituição a prever a hipótese de eleição indireta no caso de vacância do cargo de Presidente da República. Tal dispositivo foi sendo repetido nas Constituições posteriores, art. 82 da Constituição de 1937; art. 79, §2º da Constituição de 1946; com a exceção da Constituição de 1967 em plena ditadura civil-militar que, sem seu art. 76, previa a regra das eleições indiretas para Presidente da República pelo Colégio eleitoral.

Com Hannah Arendt, aprendemos que em momentos de instabilidade é de grande importância o ofício do historiador – e aqui poderíamos abranger os historiadores do direito – para narrar o que nós não vimos mas convidar os outros à reflexão sobre o que ocorreu, trazendo à tona o conhecimento ao mundo público para compartilhar com a sociedade[3]. Para tanto, devemos compreender que, em nossa história constitucional, temos pouco apreço às saídas republicanas em caso de vacância do mais alto cargo do Poder Executivo.

Bastamos lembrar da sucessão presidencial do vice-Presidente Café Filho que acabou se transformando em um golpe de Estado. Café Filho foi vice-Presidente de Getúlio Vargas que acabou retirando sua própria vida em 24 de Agosto de 1954. Por problemas de saúde, Café Filho se afastou do exercício da Presidência, tendo tomado posse o então Presidente da Câmara dos Deputados Carlos Luz que terminou obrigado a se afastar de suas funções por ordens militares. Assumiu, então, o Presidente do Senado Federal Nereu Ramos, decretando formalmente estado de sítio sob o argumento de defesa da Constituição e legalidade.

Com a melhora do estado de saúde de Café Filho, este pretendendo voltar ao exercício da Presidência, teve obstada o retorno ao cargo pelos generais e decretado seu impedimento pelo Congresso Nacional. Café Filho impetra Mandado de Segurança perante o Supremo Tribunal Federal com a finalidade de retornar ao cargo de Presidente da República. O Mandado de Segurança de número 3557 que teve como relator o Ministro Hahnemann Guimarães foi julgado em 14 de Dezembro e o STF decidiu não conhecer do pedido em razão da lei de decretação do Estado de sítio, ao argumento de que a concessão do writ não é compatível com o Estado de Sítio[4].

O que temos que lembrar é que, na história republicana, as experiências constitucionais democráticas demonstram que o presidencialismo é realizado por eleições diretas de forma a legitimar e assegurar o exercício democrático do poder público. Nossas experiências com eleições indiretas sempre significaram um regime de exceção. Não é à toa que quase 30 (trinta) após a promulgação da Constituição de 1988, inexiste uma regulamentação legislativa específica dentro do Estado Democrático de Direito construído pela Constituição de eleições indiretas conforme o comando constitucional do art. 81, §1º da CF/88.  Há, ainda, não formalmente revogada a Lei 4.321/1964 que dispõe sobre as eleições indiretas para os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República.

Tal ato normativo fora promulgado para formalizar a tomada da presidência por Castelo Branco no início da ditadura civil-militar. Com efeito, como já ressaltamos, sob a vigência da Constituição de 1964 a eleição para Presidente era realizada, desde o princípio, de forma indireta. Sequer o referido ato normativo foi recepcionado pelo texto constitucional de 1988. E, mesmo que fosse possível salvar algo do referido texto, seria necessário um exercício de filtragem hermenêutico-constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, tal qual o julgamento da ADPF 378 acerca do procedimento do impeachment. Estaríamos, de uma forma ou de outra, delegando o exercício da cidadania para o Supremo Tribunal Federal, órgão que não dispõe de uma representatividade política para o pleno exercício da participação popular no poder público.

Há quem argumente que, em tais momentos, seria preciso cumprir estritamente o texto constitucional. Que a proteção da Constituição significaria o cumprimento estrito de sua literalidade, sob pena de criar-se mais instabilidade política. Argumentam, inclusive, que a única forma de resolver a instabilidade política é realizando as eleições indiretas já previstas no texto constitucional.

Para contrapor a tais argumentos, devemos ressaltar duas questões que norteiam a resposta constitucionalmente adequada:

1) Qual Constituição pretendem os defensores das eleições indiretas protegerem com a aplicação literal do art. 81, §1º da CF/88? Em nosso sentir, a Constituição de 1988, não por acaso popularmente denominada de Constituição cidadã, tem como princípio fundamental, logo no art. 1º, e seu parágrafo único, a construção de um Estado Democrático de Direito com amplo destaque para a participação popular na tomada de decisões fundamentais de nossa República. A democracia está sempre em um porvir[5], está sempre em um permanente processo de construção em que se implicam o exercício da autonomia pública dos indivíduos que fazem parte de nossa comunidade política[6].

Eliminar a participação popular no processo de escolha de um Presidente parece-nos ir contra os próprios princípios fundamentais de nossa Constituição, sendo até mesmo uma contradição performativa daqueles que anunciam a defesa da Constituição com aplicação literal do texto do art. 81, §1º da Constituição.

2) Como advogar que as eleições indiretas seriam o meio necessário para alcançar a estabilidade em momentos de instabilidade política se, pois, a instabilidade não é questão que surge no momento das implicações do Presidente Michel Temer, mas sim com a ruptura jurídico-institucional dolosamente provocada por parlamentares com o processo de impeachment da Presidente Dilma Rousseff. Dentro de tal contexto é que se deve entender a instabilidade política. A ruptura jurídico-institucional já foi causada e o momento é de resgate democrático.

Nessa senda, o resgate da democracia perdida deve ser a aprovação da PEC 227/2016 de autoria do Deputado Miro Teixeira que busca modificar a redação do art. 81, §1º da Constituição para prever as eleições indiretas em caso de vacância somente nos últimos 6 (seis) meses anteriores ao término do mandato que, já obteve voto favorável na Comissão de Constituição e Justiça, bastando ser levada a plenário para aprovação[7]. Em sua justificativa, a Proposta de Emenda à Constituição busca resolver o conflito contra possível declaração de inconstitucionalidade do art. 234, §§3º e 4º do Código Eleitoral com texto modificado pela Lei 13.165/2015[8]. A propósito, o relator na Comissão de Constituição e Justiça, Dep. Espiridião Amin, apresentou voto pela admissibilidade da Proposta de Emenda à Constituição aduzindo que, tanto sob o aspecto formal e material, não há qualquer vício a contaminar a tramitação da PEC, uma vez que a proposta tende a ampliar o espectro do sufrágio direto.

É que, na iminência do julgamento pelo TSE da chapa Dilma-Temer, eventual consequência da cassação do mandato, segundo a previsão do art. 224 do Código Eleitoral com a redação modificada pela Lei 13.165/2015, §§3º e 4º, seriam a realização de eleições diretas, exceto no caso de a cassação ocorrer há menos de 6 (seis) meses do término do mandato.

O dispositivo tem razão de ser. É que a consequência da cassação do mandato por abuso do poder econômico invalidaria as próprias eleições, ou seja, não pressuporia eleições válidas e, portanto, a investidura no mandato seria nula.

O STF foi provocado a se manifestar acerca da constitucionalidade do referido dispositivo pela ADI 5525 ajuizada pela Procuradoria Geral da República que, segundo se alega, contraria frontalmente o texto do art. 81, §1º da CF/88. Também, o Partido Social Democrata (PSD) ajuizou a ADI 5619 questionando o mesmo, pedindo a declaração de inconstitucionalidade em relação aos cargos eletivos pelo sistema majoritário simples, caso de Senadores e Prefeitos de Municípios com menos de 200 (duzentos) mil eleitores.

Acreditamos que não precisamos mais de instituições que nos digam o que fazer para a construção de uma democracia. Nós mesmos, cidadãos, devemos tomar as rédeas do barco democrático e dirigirmos a vela constitucional para o caminho da democracia. Somente a aprovação da proposta de Emenda à Constituição 227/2016 devolveria a Constituição ao povo. A própria Constituição confere primazia no art. 14 à participação popular prevendo as formas de exercício da soberania popular com o plebiscito, referendo e iniciativa popular como formas de devolução da Constituição ao povo. Acrescentaríamos, pois, não deve a eleição direta também estar inserida neste contexto hermenêutico de fortalecimento democrático com a devolução do exercício da soberania popular ao povo? Certo estamos que a aprovação da PEC 227/2016 do Deputado Miro Teixeira é a forma constitucionalmente adequada para a resolução do dilema constitucional da vacância do cargo de Presidente da República.

Para finalizarmos, nada melhor do que a literatura que, em tais momentos, podem como nenhuma ciência indicarmos o melhor caminho. Para tanto, uma citação de Grande Sertão Veredas de Guimarães Rosa poderia bem elucidar tal momento político: “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.

 

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[1] A clássica definição de ABRANCHES, Sergio. Presidencialismo de coalização: o problema institucional brasileiro. Dados Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro. vol. 31, n. 1, 1988, pp. 5 a 34. Importante cientista político Leonardo Avritzer caracteriza tais momentos como impasses da democracia, incluindo um esgotamento do presidencialismo de coalização e o peemedebismo (AVRITZER, Leonardo. Impasses da Democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016,p.9). O conceito de peemedebismo foi cunhado por Marcos Nobre e significa a necessidade de participar de todo governo, seja ele qual for: NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento; da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

[2] Para uma crítica da ideia de austeridade ver BLYTH, Mark. Austeridad: historia de idea peligrosa. Madri: Critica, 2014.

[3] ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972.

[4] RODRIGUES, Leda Boechat. Historia do Supemo Tribunal Federal. tomo IV, vol. I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 168 e ss.

[5] DERRIDA, Jacques. Rogues. Stanford, California: Stanford University Press, 2005

[6] HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. São Paulo: Loyola, 2002.

[7] Andamento no link: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2086221, acesso em 24 de Maio de 2017.
[8] O texto e a justificativa podem ser consultados em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=B65E4C13360AE7A88CA4B0911837F193.proposicoesWebExterno1?codteor=1462781&filename=PEC+227/2016, acesso em 24 de Maio de 2017.

José Ribas Vieira – Professor Titular de Direito Constitucional da FND/UFRJ

Diogo Bacha e Silva – Doutorando em Direito pela FND/UFRJ

Fernanda Alves Lage Dantas – Doutoranda em Direito pela FND/UFRJ, sob o auspício do Grupo de Pesquisa OJB-FND/UFRJ

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