Privatização de satélite põe Kassab, Telebras e Anatel sob suspeita

 

No início da noite da quinta-feira 4, com atraso de 45 dias, pois também houve greve geral por lá, um foguete decolou da Guiana Francesa para pôr fim a uma lambança brasileira de quase duas décadas. Michel Temer fez questão de acompanhar o histórico acontecimento pela tevê em uma sala no Comando de Operações Aeroespaciais em Brasília, tentativa marota de apropriar-se de uma obra de Dilma Rousseff, a companheira traída da qual ele tenta se desvencilhar em um julgamento na Justiça Eleitoral.

Desde a privatização da Embratel, em 1998, as comunicações das Forças Armadas dependiam do aluguel de satélite alheio, um risco para a segurança nacional. A situação ficou ainda mais patética quando o governo decidiu, em 2008, construir um submarino nuclear para defender a costa, o mais poderoso artefato militar de dissuasão da história do País, de conclusão prevista para 2027. Agora as Forças já têm um satélite para chamar de seu, posto em órbita pelo foguete que Temer viu decolar. Planejado desde 2012, o equipamento consegue cobrir o território nacional, a América do Sul e a Amazônia Azul, aquela faixa do Oceano Atlântico a abrigar o valioso pré-sal. Um reforço na nossa soberania.

No meio dessa história, esconde-se outra, um cambalacho sideral merecedor de uma ação popular e de um pedido de investigação levado à Procuradoria-Geral da República. Um enredo com indícios de improbidade por parte da direção da, estatal rediviva após a privatização das teles nos anos 1990. E de omissão cúmplice por parte da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e ComTelebrasunicações, comandado por Gilberto Kassab, um dos oito ministros investigados por corrupção na Operação Lava Jato. Mais: há quem diga que agentes públicos se arriscam com o objetivo de favorecer a Oi, dona de 65 bilhões de reais em dívidas, internada na UTI judicial e prestes a receber do governo uma bondosa salvação.

O satélite posto em órbita desde o Centro Aeroespacial de Kourou, na Guiana Francesa, não é de uso exclusivo das Forças Armadas, mas também da Telebras. Sua construção é um projeto levado adiante pela estatal durante o governo Dilma. A empresa usaria o equipamento para massificar de internet de alta velocidade pelo Brasil, uma missão que lhe foi conferida pelo Plano Nacional de Banda Larga, de 2010, fim do governo Lula. Com o satélite, a Telebras teria condições de atender o País inteiro, mesmo naquelas regiões remotas aonde as teles privadas não querem ir, por lucrar pouco.

Para pôr o satélite no espaço, era preciso uma autorização da Anatel, e foi a Telebras quem a pediu. A agência costuma vender a concessão de licenças satelitais em leilões de maior preço, pois os “endereços” siderais aptos a acomodar um equipamento como o que acaba de ser lançado, de um tipo que fica parado em um ponto específico (geoestacionário, em linguagem técnica), são escassos, como diz uma convenção internacional de 1991. Não houve licitação pois a estatal pediu dispensa do procedimento em 2012, o ministério das Comunicações endossou a solicitação em 2013 e a Anatel topou em 2014.

Ao pedir a dispensa, a Telebras argumentou justamente que o satélite serviria à disseminação da web rápida e teria aplicação militar estratégica, duas missões que lhe cabia executar por força de um decreto presidencial de 2010 e outro de 2012, respectivamente. A argumentação foi respaldada pelo Ofício nº 77, de agosto de 2013, enviado à Anatel pelo Ministério das Comunicações. No Parecer nº 991, de 2013, a Procuradoria Federal atuante na agência, uma espécie de advogado público, defendeu que a Anatel poderia abrir mão da licitação, pois a política pública ancorada no satélite (comunicação militar e expansão da banda larga) “só poderá ser implementada pela Telebras”. Em suma, não tinha sentido fazer um leilão do qual só a estatal poderia participar.

Em janeiro de 2014, com o Ato nº 76, a Anatel concedeu uma licença satelital de 15 anos à Telebras, sem licitação, pelo valor de 3,954 milhões de reais, conforme proposto em um relatório do então conselheiro Rodrigo Zerbone, cujo mandato de cinco anos terminou em novembro. No início de 2017 veio a surpresa. A estatal botou na praça um esboço de edital com um plano de privatizar seu naco no satélite, 70% (os demais 30% são dos militares). O plano, concebido pelo diretor técnico-operacional Jarbas Valente, joga por terra as premissas que, três anos antes, haviam permitido à estatal obter da Anatel uma licença a preço módico e sem concorrência.“Isso fere o ato da Anatel de outorga da licença”, diz alguém que acompanhou todo o processo de perto em 2013 e 2014.

O Parecer nº 991 da Procuradoria atuante na agência era bem claro: “A referida outorga à Telebras deve-se ater ao cumprimento” simultâneo dos objetivos do Plano Nacional de Banda Larga e de soberania militar. Apesar de ter mudado a rota no meio do caminho, a Telebras não revisou seus planos originais perante as autoridades que respaldaram a dispensa de licitação, caso do Ministério das Comunicações, e que abriram mão do leilão, caso da Anatel.

Não se trata de discussão burocrática apenas. Há grana envolvida. A Anatel cobrou 3,9 milhões da Telebras pela licença em 2014. Desde sua criação, em 1997, já realizou seis leilões de licenças do gênero. O último foi em 2015 e, na época, cada uma das quatro tinha preço mínimo de 27 milhões de reais, sete vezes mais do que o pago pela Telebras. Como cobrou pouco da estatal e agora vê a empresa prestes a privatizar o satélite, a Anatel, órgão público, perdeu dinheiro que acabará embolsado pela Telebras, companhia que tem também acionistas privados.

Não para por aí. O satélite custou 2,7 bilhões de reais. A depender do preço pago na privatização, a Telebras poderá ter prejuízo. Ao colocar seus planos na rua no início do ano, a estatal não informou nenhuma estimativa de preço mínimo. Dentro da empresa, comenta-se que o leilão poderá arrecadar algo entre 1,5 bilhão e 2 bilhões de reais. Como 30% da capacidade do satélite é dos militares e está fora da privatização, e como um dos quatro lotes privatizáveis será usado pelo comprador conforme instruções da Telebras, a estatal teria de arrecadar no mínimo 1,5 bilhão, para não tomar prejuízo.

Tem mais. Ao deixar de usar o satélite ela mesma na massificação da banda larga e optar pela privatização, a Telebras deixará caminho livre para os vencedores do leilão cobrarem o que quiserem dos usuários brasileiros. E sem ao menos estipular meta de cobertura para regiões longínquas, uma das ideias originais por trás do satélite. Não há nenhuma meta prevista no plano privatizador conhecido até agora. Um prejuízo para os pequenos provedores de internet espalhados pelo País, os quais não terão a Telebras como opção de fornecedora de infraestrutura para fugir dos altos preços das grandes teles, aquelas que provavelmente triunfarão na privatização. “Em síntese, é uma transferência pura de patrimônio público para o setor privado”, diz um documento entregue no fim de abril à Procuradoria-Geral.

A papelada, hoje nas mãos do procurador Frederick Lustosa de Melo, pede investigação das potenciais irregularidades do plano privatizador divulgado pela Telebras. É assinada por nove parlamentares de oposição, como os deputados Carlos Zarattini, líder do PT, Margarida Salomão, uma das vice-líderes petista, e André Figueiredo, do PDT, ex-ministro das Comunicações, além de oito entidades da sociedade civil, como a Associação Brasileira de Defesa do Consumidor. Zarattini e Margarida também são autores de uma ação popular ajuizada na Justiça Federal de Brasília, com pedido de liminar, para brecar a privatização e investigar Kassab e o presidente da Telebras, Anrtonio Loss . O juiz do caso, Marco José Brito Ribeiro, da 13a Vara Federal, decidiu ouvir previamente alguns envolvidos antes de resolver sobre a liminar.

Por que agentes públicos do Ministério da Ciência e Tecnologia e da direção da Anatel e da Telebras estariam a se arriscar em uma história com indícios de improbidade? “O projeto do satélite foi desvirtuado para beneficiar as empresas privadas”, diz Rogério Santanna, ex-presidente da Telebras. “Cheira a favorecimento da Oi, a operadora mais carente em infraestrutura para banda larga em lugares remotos.”

Não é um palpite ao acaso. A empresa já demonstrou interesse em entrar como sócia de satélite. Foi em 2008, quando Telemar e Brasil Telecom preparavam a fusão que daria na Oi. Para conseguir aval da Anatel à fusão, a dupla apresentou documentos com uma série de compromissos. Um destes apontava “o interesse da Telemar em participar” da construção do satélite e sua intenção de propor às autoridades um acordo sobre sua responsabilidade operacional e financeira no projeto.

Naquele momento, a ideia de construir um satélite circulava no governo, acalentada na gestão Lula desde a descoberta, ainda em 2004, de que certas autoridades tinham sido espionadas pela Kroll, através de captura de e-mails privados, caso de Luiz Gushiken, ministro da Comunicação Social. Detalhe: quem havia contratado a Kroll, por encomenda do banqueiro Daniel Dantas, tinha sido a Brasil Telecom, que se fundiu com a Telemar e hoje é a Oi.

Curiosamente, foi uma outra espionagem o catalisador do projeto do satélite. No caso, uma sofrida pela então presidenta Dilma Rousseff e a Petrobras por obra da NSA, a agência de bisbilhotagem do Tio Sam. As denúncias do ex-agente da NSA Edward Snowden vieram a público em julho de 2013, Dilma mandou acelerar o satélite, e em novembro a Telebras assinava o contrato de compra do equipamento por 1,3 bilhão de reais, metade do valor gasto efetivamente. O satélite, de 18 anos de vida útil, foi fabricado pela francesa Thales Alenia Space, com o compromisso de transferência de tecnologia ao Brasil por meio da Embraer, com quem a Telebras selou uma joint venture na empreitada, a Visiona.

Será que a Oi quer um equipamento próprio agora? A companhia já aluga satélite de terceiros e quer primeiro conhecer o edital definitivo de privatização, antes de decidir se entra no páreo. Há quem diga que sua frágil condição financeira desencoraja participação no leilão. A companhia está desde junho de 2016 em recuperação judicial, aquela situação em que um juiz supervisiona os passos de uma empresa e examina com cuidado ações imputadas contra ela, a fim reduzir danos a todos. O caso comandado pelo juiz Fernando Viana, da 7a Vara Empresarial do Tribunal de Justiça do Rio, ficou bem divertido.

Viana nomeou dois administradores para ajudá-lo, a banca de advocacia do presidente da comissão de mediação da OAB, Arnoldo Wald, e a auditoria PricewaterhouseCoopers. Para mediar negociações com a Anatel de multas devidas pela Oi à agência, Wald indicou o advogado Marcus Vinicius Furtado Coelho, defensor do presidente Michel Temer na Justiça Eleitoral, mas ele não aceitou.

A Price tentou cobrar 214 milhões de reais pelo trabalho, mas Viana fixou a remuneração em um terço disso, 77 milhões. Ao preparar um inventário dos credores da Oi, a Price incluiu 2 bilhões de reais a mais do que a endividada empresa achava certo, o juiz concordou com a telefônica e afastou a auditoria do caso, pois “a relação de confiança se rompeu”, segundo escreveu em um despacho.

O juiz também foi duro com o empresário Nelson Tanure, um especialista em rolos que hoje é sócio da Oi por meio da Société Mondiale. Em agosto passado, a Société convocou uma assembleia geral de acionistas para o mês seguinte, para destituir na marra certos conselheiros que lhe desagradavam. Seis dias antes, o juiz mandou cancelar a assembleia e os acionistas sentarem para conversar. A TIM quis reter na fonte dinheiro devido à Oi, porque esta desonrara um acordo existente entre elas, e Viana não deixou. Os Correios, dirigidos por um apadrinhado do ministro Kassab, o deputado Guilherme Campos, também quisera desfazer um acordo com a Oi, e esbarraram no juiz.

Juiz Fernando Viana
Quando o juiz Fernando Viana entra em cena, o caso ganha diversão (Foto: Bruno Dantas/TJRJ)

 

Diante disso tudo, não surpreende ter surgido no fim de abril uma notícia delicada para Fernando Viana, a de que ele é investigado juntamente com o irmão por envolvimento em fraude tributária. Uma notícia, escreveu o juiz numa carta em resposta ao jornal O Globo, “certamente para me intimidar”. “Como se sabe, trata-se de um processo que envolve interesses bilionários dos mais variados tipos de pessoas físicas e jurídicas.”

Para dar uma forcinha à Oi e não ter de fazer o que devia, ou seja, uma intervenção na empresa, o governo prepara um pacote de salvação com soluções para as dívidas fiscais da companhia. As ideias deixaram arrepiados até governistas. Parcelamento das dívidas em dez anos (o limite atual é de sete) é uma delas. Trocas de bilionárias multas da Anatel por promessas de investimento é outra.

Esse tipo de permuta, aliás, faz parte de uma lei que o governo tentou votar a toque de caixa no fim de 2016, beneficiar todas as teles, e uma liminar do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, embargou. Em vez de multas, a Anatel abriria mão de 100 bilhões de reais em bens reversíveis, aqueles que deveriam voltar ao controle do poder público após os contratos de privatização dos anos 1990 e sem os quais a telefonia ficará muda no Brasil. “A Anatel não tem um histórico bom de cobrança de metas e investimentos”, costuma dizer o procurador Paulo José Rocha Junior, do MPF em Brasil.

Privatização do satélite, troca de multas da Anatel por investimentos, presente de 100 bilhões de reais… Os donos e executivos das teles provavelmente fazem parte daquele seleto grupo de 4% de brasileiros que aprovam o governo Temer.

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