Argemiro Martins
A recente e acidental morte do ministro Teori Zavascki abriu a discussão sobre o seu sucessor, ainda quando o seu corpo estava por ser resgatado das águas de Paraty. Como o atual Presidente da República e significativa parte dos senadores constam nas recentes delações dos empreiteiros da Odebrecht, isso justifica os temores de uma oportuna indicação de alguém afinado com os interesses dos réus em potencial. Tal situação, embora formalmente constitucional, é substancialmente ilegítima, pois aqui teremos os réus escolhendo um de seus julgadores na Suprema Corte. Mais do que as notórias e justificadas suspeitas sobre a interferência sobre os rumos das investigações da chamada “operação lava-jato”, outra coisa importante tem passado despercebida aos olhos da opinião pública: o modo como se indicam os próprios ministros do STF.
Em uma entrevista jornalística de 2012, o atual Ministro Luiz Fux relatou a sua “campanha” para se tornar um integrante de nossa Corte Suprema. O que salta aos olhos foi a sua peregrinação por gabinetes de políticos e de personalidades públicas que pudessem influenciar na decisão da então Presidenta Dilma Rousseff. Isso não parece ter sido problema para o então aspirante a Ministro, dada a desenvoltura com que narra as suas peripécias: “É uma campanha. Tem um ritual. Você tem que fazer essa caminhada política necessariamente. Como eu me apresentava? Mostrando que sou uma pessoa que gosta de bater papo, carioca, despojado. E, ao mesmo tempo, currículo. Mas só meritocracia não vai ” (Folha de São Paulo, pág. A11, 2.12.2012).
Isso revela que as indicações não são um assunto público, tanto é assim que os cidadãos só podem especular sobre os nomes mais cotados para o cargo, como em uma bolsa de apostas. O grande problema com as indicações ao STF diz respeito à sua forma: uma indicação feita pelo Presidente, ratificada pelo Senado e marcada sobretudo pelo segredo, pelo tráfico de influência e pelas intrigas palacianas.
Em face disso, não é de estranhar o fato de os Ministros do STF se comportarem mais como uma espécie de monarquia togada do que propriamente como intérpretes da Constituição. Este é um tema importante e recorrente na literatura jurídica: como se interpretam as constituições. Neste assunto é tentador aceitar a ideia de que a decisão depende mais de quem decide do que propriamente das vagas e ambíguas palavras escritas na Constituição. Porém, caso aceitássemos tal ideia, deveríamos, em nome da coerência, deixar de considerar o princípio da supremacia da Constituição e torcer (talvez rezar) para que os governantes façam boas escolhas para corte suprema.
Se o princípio da supremacia da Constituição é válido em nossa titubeante democracia, a escolha dos ministros deveria ser pautada por outros critérios. Não se trata de propor mudanças formais em nossa atual Constituição, já marcada por emendas que lhe desfiguraram a essência. Trata-se mais de uma mudança substantiva e materialmente constitucional: os candidatos ao STF devem prestar contas de suas visões de mundo, de seus pressupostos teóricos e ideológicos para além dos gabinetes, alcançando a opinião pública, hoje mera espectadora de um espetáculo já montado nos bastidores políticos. A indicação ao STF deveria ser precedida de um amplo e contínuo debate público, no qual os candidatos fossem visíveis e passíveis de serem questionados pelo público sobre os temas constitucionais candentes.
A nossa Constituição de 1988 fala, como de resto todas as outras, de igualdade, de liberdade, de justiça, de moralidade deixando aberto ao intérprete o que se pode entender por tais coisas. Não é por outra razão que o enorme implemento do controle de constitucionalidade após a Constituição de 1988 realçou a impressão de que os juízes também governam ou, ao menos dão a última palavra acerca daquilo que podem fazer os governantes e até mesmo os cidadãos. Nesse contexto, o papel político do STF tem crescido ao ponto de obliterar a imagem do próprio tribunal. Desse modo, não cabe mais essa forma de indicação dos seus ministros, marcada pelo personalismo e pela alcoviteirice. Enquanto essa forma torpe perdurar, os requisitos constitucionais do “notável saber jurídico” e da “reputação ilibada” (Art. 101, caput, da Constituição de 1988) não serão mais do que palavras ao vento. A verdadeira democracia constitucional exige mais do que isso: a indicação dos magistrados de uma corte suprema deve ser uma questão pública, no sentido pleno e forte do termo.