Artigo de Iara Pietricovsky e Mauri Cruz, membros da direção executiva da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong).
As Organizações da Sociedade Civil (OSCs) e movimentos sociais atuam de forma independente e articulada, tendo como cimento de união o interesse coletivo e a luta em prol da cidadania plena, entendendo esta como um conjunto de direitos definidos pelos vários tratados de direitos humanos no âmbito internacional (Declaração dos Direitos Humanos Universais e Direitos Econômicos, Culturais, Sociais e Ambientais).
Uma das formas prioritárias de atuar se faz pela pressão ao Estado para que esses direitos sejam garantidos no marco legal, assim como efetivo. Para tal, é preciso que os direitos se expressem em objetivos, metas e indicadores e uma linha de base sobre a qual se possa avaliar no tempo que aquele objetivo foi alcançado. Essa efetividade se faz, concretamente, pela transformação desses marcos legais, objetivos e metas em políticas públicas bem desenhadas e orçamentadas para que resultem positivamente na vida das pessoas e no respeito ao meio ambiente.
Mas, para tanto, é preciso que os objetivos dialoguem diretamente com as interpretações que buscam garantia e exigibilidade dos direitos. Se os objetivos acordados, ao serem concretizados, não efetivam direitos ou não os garantem de forma ampla e integral, o diálogo fica inviabilizado para os movimentos sociais. Podemos usar como exemplo a adoção dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) que, na sua própria declaração já rebaixava a agenda das lutas sociais para metas pouco eficazes na concretização de direitos. Neste sentido, o processo de elaboração dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) é um importante avanço. Alguns Objetivos incorporam conceitos que os movimentos sociais e a sociedade civil organizada defendem e que, se concretizados, podem melhorar as condições no caminho da efetivação dos direitos.
No entanto, é preciso reconhecer que nenhum dos Objetivos enfrenta as questões essenciais que promovem as desigualdades porque não mexe, por exemplo, nos mecanismos que possibilitam a acumulação e concentração de capital, não se propõe a reduzir o complexo militar global e suas guerras, assim como não incide sobre o modelo de desenvolvimento econômico que tem sido o principal vetor da degradação ambiental e social. Isto ocorre porque o que orienta a maioria dos ODS é a premissa do direito ao desenvolvimento, sem condicioná-lo aos direitos humanos e aos direitos da natureza. Por isso, questões como o crescimento demográfico e populacional e a exigência cada vez maior da exploração de riquezas naturais, base do atual modelo de desenvolvimento, não entraram na conta dos ODS. Cabe aqui ressaltar o fato de que a discussão sobre o financiamento ao desenvolvimento não avançou. Nenhum dos países mais ricos, que têm a maior responsabilidade histórica sobre o aquecimento global, se mostra disposto a pagar a conta rumo a mudanças. Não há dinheiro novo circulando para dar conta dos desafios que estão apontados pelos Objetivos. As teses vencedoras até o momento são via mercantilização e financeirização da natureza. Mantido o atual modelo, não haverá energia nem alimentos para atender às nove bilhões de pessoas que viverão no Planeta em 2050.
Há, ainda, outra questão necessária para que este diálogo entre sociedade civil organizada e Estado possa ser frutífero. É a intenção real de assumir os compromissos para a efetivação dos Objetivos. Esta premissa não pode ser analisada apenas do ponto de vista dos discursos e declaração, mas da prática efetiva dos sujeitos que se põem em diálogo. Neste sentido, é preciso manter sempre uma análise crítica sobre a conjuntura e seus/suas atores/atrizes. Nos últimos tempos, as estruturas que deveriam sustentar uma governança global menos centralizada nas grandes potências têm se esfacelado ou caído em descrédito. Recentemente, visto pelos pífios resultados da Conferência do Clima (COP22), está evidente que estes processos de diálogos internacionais não têm conseguido produzir acordos mínimos capazes de serem efetivados para conter as mudanças climáticas, por exemplo. E para piorar, sua sustentação financeira está cada dia mais capturada pelo setor privado e seus interesses. As Nações Unidas e seus órgãos não possuem nenhum poder real para impedir ou mesmo conseguem condenar as práticas que ceifam milhares de vidas humanas e produzem a maior crise de refugiados de que se tem notícia desde a II Guerra Mundial, comprometendo a dignidade humana de milhões de pessoas, a maioria delas, mulheres, crianças e idosos/as.
Frente a tudo isso, a decisão de participar de um diálogo sobre a implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável deve estar subordinada à análise deste contexto. Como foi reconhecido acima, sua construção representou uma evolução em relação aos ODM. No entanto, dada a conjuntura internacional, o declarado desinteresse das grandes potências e, principalmente, a incapacidade dos demais países em pressioná-las para assumirem compromissos concretos, a conclusão é que os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável se tornaram um rol de boas intenções que sequer serão levadas a sério por boa parte de seus signatários. Na prática, sua efetivação está longe de ser alcançada.
Mesmo duvidando de sua real eficácia, é preciso estar atento porque todos os governos tentarão utilizar o debate dos ODS para criar a ideia de que estão em busca de soluções para os dilemas ambientais, sociais e econômicos do planeta. A chamada economia verde, acordada na Rio+20, veio para legitimar a saída de mercado para a nova fase de acordos na chamada Agenda 2030. Para enfrentar esta situação e, principalmente, para que as OSCs e os movimentos sociais não sejam absorvidos por rodas de conversas, seminários e eventos nada eficazes, sua atuação em espaços de diálogo sobre o tema deve estar subordinada à apresentação de propostas concretas que possam colocar os agentes econômicos e políticos que defendem o atual modelo de desenvolvimento em contradição. Os ODS, certamente, terão espaços privilegiados na mídia coorporativa e estes espaços também podem ser utilizados para denunciar as contradições dos Objetivos e para a defesa de propostas que realmente possam significar uma saída para a crise civilizatória que vivemos. Esta estratégia só será eficaz se for assumida por um leque amplo de forças políticas, movimentos sociais e da sociedade civil organizada no sentido de realmente inflexionar o debate sobre a insustentabilidade do atual modelo de desenvolvimento e de promover uma aliança global para mudanças estruturais em nosso modo de vida.
Finalmente, para as OSCs e os movimentos sociais, o principal objetivo é superar o paradigma do crescimento e desenvolvimento infinitos. Diante da possibilidade de uma possível catástrofe mais radical, a alternativa passa pelo decrescimento das atividades insustentáveis e do investimento imediato em medidas sustentáveis e duradouras, em especial, as energias limpas, a alimentação agroecológica, a proteção dos territórios, o respeito aos direitos e a valorização das diversidades. A questão central para um outro modelo de vida não é tecnológica ou mercadológica e sim política e cultural. Portanto, só haverá saída com mais democracia capaz de incidir sobre quem vai pagar a conta da mudança dos paradigmas e quem serão as atrizes e os atores deste outro mundo possível. A questão é: será que estamos à altura destes desafios?