Reforma política a bem dos políticos

Pouco mais de um ano se passou desde que o Congresso Nacional concluiu, então sob o comando de Eduardo Cunha, a esperada reforma política. De lá para cá, Cunha teve o mandato cassado e foi preso, Dilma Rousseff foi impedida e as mudanças feitas no sistema eleitoral não reverteram a crise política.

Pelo contrário, o pleito de 2016 mostrou o aprofundamento da distância entre os eleitores e seus representantes. Agora, sob o argumento de que receberam o “recado das urnas”, deputados e senadores começaram a analisar uma nova reforma no sistema partidário e eleitoral.

Destinada, está claro, a lhes garantir sono tranquilo. Parte da classe política busca, enquanto muda as regras do jogo, uma anistia para o caixa 2 e um freio para a Operação Lava Jato.

O acordo de delação premiada da Construtora Odebrecht, como parte do processo de investigação de esquemas de corrupção no País, acendeu o sinal de alerta tanto para políticos governistas quanto de oposição. Isso porque a empresa foi uma das que mais fizeram doações eleitorais para parlamentares, ministros e governantes, independentemente de partido ou corrente ideológica.

Uma das soluções debatidas nos corredores do Congresso é tentar encaixar no projeto de dez medidas anticorrupção, sugerido pelo Ministério Público Federal, uma saída para garantir a imunidade dos envolvidos em doações ilícitas de campanha.

A proposta do MPF baseou o projeto de Lei nº 4.850/16 e ganhou uma comissão especial na Câmara dos Deputados, com relatoria de Onyx Lorenzoni (DEM-RS). Entre as várias medidas debatidas, que visam dificultar a corrupção e inibir processos de corrupção, está a criminalização do caixa 2 – como são chamados os recursos financeiros não contabilizados oficialmente ou declarados aos órgãos de fiscalização.

A manobra costuma ser utilizada nas campanhas eleitorais quando empresas ou candidatos não querem que determinada doação seja legalizada e, portanto, entre na prestação de contas à Justiça.

Como o crime de caixa 2 ainda não foi tipificado no Código Penal, governo e parlamentares enxergaram uma brecha para incluir, no texto, ressalva para que essa prática não possa ser alvo de penalidade se o ato tiver ocorrido antes da promulgação da lei.

Isso significa que todos os políticos que usaram do caixa 2 até 2014, última eleição com financiamento empresarial de campanha, não poderiam ser alvo de inquéritos e condenações porque o crime não existia antes, incluindo quantos podem vir a ser descobertos no futuro por conta das informações passadas pelos executivos da Odebrecht e da OAS. Na prática, funcionaria como um pacto pós-impeachment para proteger a classe política do avanço da Lava Jato.

Oficialmente, a proposta não tem pai nem mãe, mas conta com o entusiasmo de integrantes do governo Michel Temer e até de partidos da oposição. O ministro da Secretaria de Governo, Geddel Vieira Lima, é um dos que discutem a proposta com parlamentares da base.

Essa anistia contribuiria para colocar, entre vários efeitos, um fim na possibilidade de a alta cúpula do governo ser apontada em denúncias feitas por executivos das empreiteiras. Os possíveis beneficiados seriam o ministro das Relações Exteriores, José Serra, o senador Aécio Neves (PSDB-MG) e até o presidente Michel Temer.

Um dos argumentos que endossam a anistia é que a proposta salvaria apenas aqueles que aceitaram doações por meio de caixa 2. Os políticos que usaram de contratos governamentais fraudulentos ou desviaram verbas públicas para recompensar seus financiadores de campanha continuariam sendo passíveis de penalidade.

A proposta mostrou sua força em meados de setembro na Câmara dos Deputados. No fim de uma das sessões, foi colocado em votação um projeto de 2007 que tinha o mesmo objetivo: garantir a anistia aos políticos que já praticaram o caixa 2.

Denominado “golpe da madrugada”, a manobra parlamentar foi barrada a tempo por uma minoria de deputados. Perceberam o verdadeiro objetivo do texto e fizeram barulho suficiente para impedi-lo. Na ocasião, Beto Mansur (PRB-SP), primeiro-secretário da Câmara, no comando da sessão, disse desconhecer o conteúdo da proposta que colocou em votação. Também não revelou quem foi o parlamentar que teria pedido para incluir o projeto na pauta.

Quase um mês depois, o projeto sobrevive. Apesar da pressão, o relator da comissão especial que analisa as medidas anticorrupção, Onyx Lorenzoni, não endossou a proposta. Em seu relatório final, o deputado disse ter evitado o trecho que poderia abrir a possibilidade da anistia. O parecer ainda precisa ser aprovado na comissão para seguir para os plenários da Câmara e do Senado. É nessa etapa que novas investidas podem ser feitas.

Recentemente, o juiz Sergio Moro mandou alguns recados a respeito do assunto em entrevista. O magistrado classificou como “impensável” a possibilidade de anistia. E alertou: “Quanto ao término da operação, é um pouco imprevisível.

Porque, embora haja muitas vezes expectativa de que os trabalhos se aproximem do fim, muitas vezes se encontram novos fatos, novas provas, e as instituições não podem simplesmente fechar os olhos, têm de trabalhar com o que aparece. Então, é imprevisível”.

Há ainda pressão de empresas e setores importantes da economia que podem levar o Congresso a aprovar a lei de leniência, como são chamados os acordos entre empresas responsáveis por atos ilícitos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, mas que se dispõem a auxiliar as investigações em troca de benefícios.

A proposta também está sendo debatida em comissão especial na Câmara. Um dos objetivos é colocar no texto que acordos de delação premiada só possam ser firmados se o réu estiver solto. Enquanto a Câmara procura um espaço para encaixar a anistia, o Senado investe em um projeto sobre abuso de autoridade, cujo objetivo principal é colocar um freio na Justiça.

De autoria do próprio presidente do Senado, Renan Calheiros, a proposta prevê que servidores públicos e membros do Judiciário e do Ministério Público possam ser punidos caso sejam determinadas prisões “fora das hipóteses legais”, tais como ao submeter presos ao uso de algemas sem que apresentem resistência à prisão e fazer escutas sem autorização judicial, atingindo “terceiros não incluídos no processo judicial ou inquérito”. A proposta recebeu críticas por ser considerada um “atentado à magistratura”.

Cândido
Cândido: A tendência é votar financiamento e deixar o resto como está (Foto: Gustavo Lima)

 

É nesse ambiente de disputa por sobrevivência política e revanchismo que o Congresso leva à frente uma nova reforma política. “O que se tenta agora é um tapa-buraco. O sistema político representativo no mundo está em profunda crise. A população percebe que não tem mais autenticidade, esses são os problemas concretos e no Brasil não é diferente. Aí fica a casta política querendo resolver, mas de maneira interessada”, critica o deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ).

Os assuntos foram divididos entre Senado e Câmara. Os deputados vão decidir sobre formato de voto e o financiamento de campanha. Já o Senado é responsável pelos debates sobre fim das coligações partidárias proporcionais e a criação de uma cláusula de barreira, que vai estabelecer um desempenho mínimo para que partidos políticos tenham acesso ao Fundo Partidário e à gratuidade em inserções no rádio e na tevê.

Relator da reforma política na comissão especial da Câmara, o deputado Vicente Cândido (PT-SP) indica que algumas bancadas deram apoio ao sistema de voto em lista. Com isso, a discussão pode ser entre lista fechada ou flexível. No sistema de lista fechada, o eleitor deixa de votar nos candidatos e passa a escolher entre listas fixas de deputados elaboradas pelos partidos.

No caso da lista flexível, o partido estabelece a ordem dos candidatos, mas o eleitor pode votar, caso queira, em determinado nome da lista. Assim, o eleitor votaria duas vezes para cada cargo (vereador, deputado estadual e deputado federal) nas eleições proporcionais.

No primeiro voto, obrigatório, o cidadão escolheria apenas a legenda. Em outro, facultativo, ele poderia votar em um candidato da lista do partido. Esse é, por exemplo, o modelo utilizado na Bélgica. A definição dos eleitos seria feita a partir da combinação entre a lista partidária e os candidatos indicados pelo eleitor.

“Não há consenso (sobre voto em lista). Hoje a tendência é votar financiamento e o resto ficar como está. O PMDB tende a fechar voto em lista, nós do PT e o DEM também. O PSDB pode até vir, mas eles vão querer discutir distrital misto. Pode ser construído um acordo nas grandes bancadas, mas ainda não sei se tem poder pra fechar isso”, explica Cândido.

A Lava Jato também deve influenciar o debate sobre o financiamento de campanha. As investigações sobre doações partidárias mais a dificuldade de arrecadar verba no atual sistema, que proíbe doação de empresas, têm apontado para uma nova discussão sobre o financiamento público.

A grande dificuldade seria a criação de um fundo eleitoral e a definição da quantidade de verba pública que poderia ser utilizada pelos partidos, num momento de crise econômica e contingenciamento de gastos.

Já o Senado aprovou em primeiro turno, nesta semana, o fim das coligações partidárias nas eleições proporcionais e a criação de uma cláusula de barreira ou desempenho. O texto (PEC 36/2016) de autoria dos senadores Aécio Neves e Ricardo Ferraço, ambos do PSDB, estabelece que as legendas precisam receber ao menos 2% dos votos válidos registrados nas eleições para deputados federais para ter acesso ao fundo partidário, ao tempo gratuito de rádio e televisão e à estrutura parlamentar nas casas legislativas. Já as coligações serão substituídas por federações partidárias que não poderão ser desfeitas durante os quatro anos seguintes.

Além disso, o desempenho teria de se repetir com a mesma porcentagem em 14 estados. Se um partido conseguir, por exemplo, os 2% dos votos válidos no plano nacional, somente em nove estados, fica proibido de ter acesso a esses benefícios.

Se o texto for aprovado dessa forma, a cota de 2% já passa a valer nas eleições de 2018. A proposta prevê ainda progressão para 3% dos votos válidos a partir das eleições de 2022. Para auxiliar PSOL e PCdoB, o PT no Senado chegou a apresentar emenda para que a cota fosse menor, mas isso não impediu a aprovação do texto.

O desempenho dos partidos em 2014, último ano das eleições legislativas, mostra que, se a regra for aprovada dessa forma, apenas 13 partidos conseguiriam atingir a cláusula de desempenho. O PSOL e o PCdoB ficariam de fora por pequena diferença.

Essas cotas, no entanto, devem ser flexibilizadas quando o texto chegar à Câmara. Na prática, partidos nanicos como PRTB, PEN, PSDC, Novo e até a Rede, de Marina Silva, devem perder os privilégios na próxima eleição.

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