Prisão em segunda instância amplia superlotação nas cadeias

Com foco no combate à corrupção, a decisão do STF de deter condenados no segundo grau incentiva injustiças contra os mais pobres

 

Em 2013, Edson Castanhal Affonso foi detido após furtar cinco peças de salame, no valor de 55 reais. Na delegacia, ele confessou o crime e atribuiu o roubo à situação de desemprego e à fome. Na primeira instância, foi condenado a seis meses de prisão. Recorreu ao segundo grau neste ano, mas não teve sorte. Na distribuição, o processo foi entregue aos cuidados do desembargador Ivan Sartori.

Em setembro, o juiz foi um dos responsáveis pela anulação das condenações de policiais militares no massacre do Carandiru, sob o argumento de os agentes terem agido em legítima defesa ao matarem, há 24 anos, 111 presos no complexo penitenciário.

Em julho, Sartori e seus colegas rejeitaram o pedido da Defensoria Pública de São Paulo pela reversão da pena de Affonso com base no princípio da insignificância penal, entendimento comum na instância superior para furtos de pequeno valor.

Em outros tempos, o réu, mesmo reincidente, dificilmente seria obrigado a cumprir a pena, pois o Superior Tribunal de Justiça costuma acolher a apelação nesse tipo de caso. Mas a decisão do Supremo Tribunal Federal de impor a prisão de condenados a partir da segunda instância deu a juízes como Sartori o poder para colocar, ou manter, cidadãos como Affonso atrás das grades.

Determinado em fevereiro deste ano, o cumprimento da pena a partir do segundo grau foi estabelecido em definitivo pelo STF em outubro, após um apertado julgamento de 6 votos a 5. Inspirada no combate aos crimes de colarinho-branco, a medida tem o objetivo de diminuir o excesso de recursos protelatórios, especialmente para políticos e empresários acusados de corrupção.

Entidades de defesa alertam, porém, que as diferenças de entendimento entre as instâncias superiores e os tribunais de Justiça acabam por favorecer a lógica do encarceramento em um sistema com mais de 600 mil presos, número 61% acima de sua capacidade, segundo relatório deste ano da ONG Human Rights Watch. Um estudo da Fundação Getulio Vargas apontou que a prisão no segundo grau deve levar 3.460 réus atuais para a cadeia.

Affonso agora aguarda o julgamento de seu recurso especial no STJ. Pelas estatísticas, tem boa chance de ser bem-sucedido. Em setembro de 2016, foram julgados na instância superior 217 recursos apresentados pela Defensoria paulista. Houve provimento total ou parcial em 117 casos, ou 54%. Quinze deles significaram a mudança na aplicação da privação de liberdade aos condenados, que passaram do regime fechado para semiaberto ou aberto.

No meio jurídico, o debate naturalmente refletiu posições distintas entre entidades de acusação e de defesa. A Associação Nacional de Procuradores da República classificou a decisão como histórica e afirmou que ela configura “um marco importante para o fim da impunidade”. A Defensoria Pública de São Paulo considerou que a mudança, um “retrocesso para os direitos humanos”, viola a presunção de inocência. A Ordem dos Advogados do Brasil apontou para o encarceramento de cidadãos inocentes.

Talvez influenciadas pela aprovação de parte dos brasileiros à Operação Lava Jato, a despeito de seus excessos, entidades da magistratura também comemoraram a decisão. Em nota, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) avaliou que a nova jurisprudência valoriza as decisões de primeira e segunda instância e lembrou a permissão na França, Alemanha e Estados Unidos para o cumprimento da pena antes do esgotamento dos recursos.

Sartori
Sartori não perdoa roubo de salame, mas anula júris do Carandiru

 

O defensor Rafael Muneratti, coordenador do Núcleo Especializado de Segunda Instância e Tribunais Superiores em Brasília, surpreendeu-se com a posição da magistratura. “Por ter o dever da imparcialidade, ela não deveria assumir o lado da defesa ou da acusação.”

Ele afirma que o sucesso da Defensoria na reversão de penas mostra como nem todos os recursos são protelatórios, principal argumento dos ministros do STF para defender a mudança. “E não queremos entrar em uma guerra estatística. Não importa se revertemos 50% ou 1% das decisões. Se for 1%, haverá presos de forma injusta da mesma forma.”

Para João Ricardo Costa, presidente da AMB, a mudança não viola a presunção de inocência, pois respeita o duplo grau de jurisdição. “O sistema atual possibilita uma infinidade de recursos protelatórios, o que, de fato, motivou o Supremo a tomar essa decisão.” Moro também comemorou. Em nota, afirmou que a nova decisão vai colocar os condenados poderosos em pé de igualdade com os demais cidadãos envolvidos em problemas na Justiça.

“Por causa da Lava Jato, percebemos que há esse anseio pelo cumprimento rápido da decisão, mas não podemos colocar em xeque uma garantia constitucional por causa de alguns réus por corrupção”, alerta Muneratti. “Os acusados de colarinho-branco sempre respondem em liberdade. Nos casos que defendemos, os condenados estão presos desde o início.”

Preocupado com o aumento do número de presos em um sistema superlotado, o defensor vê no habeas corpus a principal solução para impedir uma prisão. “Infelizmente, uma decisão no STJ pode levar entre seis e oito meses.”

Em casos de detenções injustas, o presidente da AMB confia na possibilidade de os tribunais analisarem a situação e não iniciarem o cumprimento da pena antes do esgotamento dos recursos. “A questão do princípio da insignificância pode ser reconhecida no primeiro e segundo graus”, prevê Costa.

No caso de Affonso, Sartori parece ter feito vista grossa para o princípio, assim como negligenciou as crueldades dos policiais contra os presos do Carandiru. Na segunda-feira 31, uma reportagem da Folha de S.Paulo apontou que o juiz foi liberado pela PM de qualquer investigação após atropelar a motocicleta da consultora Joelma Ramos, em um acidente ocorrido em 2012. Enquanto autoridades trocam deferências, ladrões confessos de galinha, ou de salame, nem sempre têm perdão.

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