O golpe que será dado também à internet no Brasil

Por Marina Pita*

Em diferentes momentos, o Intervozes, por meio deste blog, apontou a falta de pluralidade e diversidade nos meios de comunicação em nosso país. Em tantas outras ocasiões, chamamos a atenção aos riscos iminentes do cerceamento à liberdade de expressão e ao acesso à informação no Brasil.

As consequências dessa brutal concentração estão sendo sentidas agora, mais do que nunca. Com o agravante de que também a internet – o principal meio para o exercício dessa liberdade por setores mais diversos da população – também virou alvo de ataques.

A internet, que nos é tão cara, espaço no qual vozes divergentes dos grandes meios podem resistir, corre sérios riscos de se transformar radicalmente, caso a pressão das operadoras de telecomunicações – que controlam a estrutura física das redes – seja bem sucedida e resulte na alteração do modelo de gestão da internet no país.

Para explicar tal ameaça, vale voltar um pouco no tempo.

A internet chegou no Brasil por meio da comunidade acadêmica, quando a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e o Laboratório Nacional de Computação Científica (unidade de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação) se ligaram a instituições nos Estados Unidos.

Pouco tempo depois, foi criada a Rede Nacional de Pesquisa (RNP), ligada ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com o intuito de disseminar o uso da rede no país para fins educacionais e sociais.

Então, em 1995, quando a internet contava com um número estimado em cinquenta mil usuários, o governo Fernando Henrique Cardoso – não se trata, portanto, de coisa de comunista! – criou o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).

Para tornar efetiva a participação da sociedade nas decisões envolvendo a implantação, administração e uso da internet no país, o Comitê contaria com a representação, além do governo, de representantes de entidades operadoras e gestoras das rede de infraestrutura, dos provedores de acesso ou de informações, dos usuários e da comunidade acadêmica.

Nasceu, assim uma entidade que se tornou referência internacional em gestão da rede mundial de computadores: o CGI.br, um ente multissetorial, do qual vários setores interessados participam, evitando que apenas o governo ou setor privado definam os rumos sobre o uso e desenvolvimento da internet no Brasil. Apesar de não poder tomar decisões vinculantes, o Comitê é responsável pela definição de diretrizes e estratégias, papel reforçado mais recentemente pelo Marco Civil da Internet.

Também é o CGI.br que coordena a atribuição de endereços Internet (IPs), necessários à conexão de todos à rede, e o registro dos nomes de domínio (“endereços” dos sites na internet) que usam o “.br”.

O Comitê ainda promove estudos, faz recomendações acerca de padrões técnicos e de segurança da Internet, além de desenvolver projetos fundamentais para o bom funcionamento da rede, como os Pontos de Troca de Tráfego e o sistema de medição da qualidade do tráfego, que dá origem a mapas com indicadores da banda larga no país, entre outros.

Se está tudo bem, por que mudar?

Porque a pluralidade do CGI desagrada muita gente, principalmente do mercado. Das operadoras de telecomunicações – incomodadas num contexto em que os gigantes da internet (Google, Facebook, Netflix etc) usam sua infraestrutura e obtem lucros astronômicos sem investir proporcionalmente na expansão de redes – à indústria do direito autoral, que briga por uma regulação restritiva dos conteúdos que trafegam online.

Por sua composição, entretanto, o CGI.br não é tão suscetível a interesses econômicos – algo mais frequente, por exemplo, no mundo das agências reguladoras, muitas significativamente cooptadas pelo mercado.

Um exemplo da abordagem diferenciada feita pelo CGI em relação aos demais entes que se relacionam com a internet fica claro quando olhamos para o caso da limitação das franquias de internet fixa no Brasil.

Este ano, as empresas resolveram que era hora de acabar com a venda de planos de banda larga fixa apenas por velocidade e quiseram passar a cobrar também pelo volume de dados trafegado na rede.

Enquanto o presidente da Anatel, João Rezende, declarou à imprensa que “a era da internet ilimitada chegou ao fim”, e diversos dos superintendentes da Agência reguladora e do governo interino expressaram concordância com a medida, os integrantes do CGI.br criticaram a falta de estudos técnicos, jurídicos e econômicos que embasassem a aplicação de limite à franquia de dados na internet fixa.

Casos como este reforçam a ideia de que a regulação da internet deve levar em consideração outros agentes além da Anatel, responsável por regular apenas os serviços de telecomunicações – no caso, a infraestrutura das redes.

Num contexto de separação entre internet e telecomunicações, como estabelece nossa legislação, órgãos como o CGI.br, o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e a Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça) devem operar em conjunto, como afirmado no decreto que regulamentou o Marco Civil da Internet.

Afinal, como lembra a advogada Flávia Lefèvre, da PROTESTE, representante da sociedade civil no CGI, a internet não é apenas uma questão de infraestrutura ou modelo de negócios, é algo essencial para o exercício da cidadania. E é por trazer em sua composição essa diversidade de vozes e lugares de fala que o CGI.br incomoda.

E é por isso que querem transformá-lo, aproveitando do momento de ruptura em que vivemos para acabar com sua pluralidade e eficiência ao tomar decisões equilibradas e que atendem a interesses coletivos. Este é apenas mais um dos ataques que a internet está sofrendo no Brasil, um processo que se acentuou muito depois que o governo interino assumiu o poder. Uma vez mais, é fundamental resistir.

Clique aqui para ler a íntegra da manifestação da Coalizão Direitos na Rede – que reúne dezenas de organizações, entre elas o Intervozes – sobre as ameaças de desmonte do CGI.br.

*Marina Pita é jornalista e integra o Conselho Diretor do Intervozes.

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