Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Independentemente do desfecho do processo de impeachment, a esquerda brasileira que aposta na democracia e seus princípios e valores éticos está diante de um grande desafio: a sua reinvenção como conjunto de sujeitos coletivos articulados num bloco histórico capaz de disputar hegemonia e de definir um projeto possível, como condição para um processo virtuoso de transformação e constituição de uma sociedade do bem viver, com justiça social e sustentabilidade.
A grande onda de redemocratização, surgida da anistia política e das diretas já, mostra sinais de esgotamento. A emergência de importantes movimentos sociais e de novas forças políticas foi fundamental na definição da Constituição e de uma institucionalidade democrática que, ao menos no plano legal, reconhecem os iguais direitos de cidadania como referência básica. Gostemos ou não, o fato é que a sociedade brasileira mudou para melhor, ao menos se gestaram possibilidades de começar a enfrentar a escandalosa desigualdade social, as discriminações raciais e de gênero e a apontar para a possibilidade de emancipação social de amplos grupos populares pobres, negros e indígenas. Porém, problemas fundamentais, que exigem reformas estruturais na economia e no poder, não foram enfrentados. Mais grave ainda, a velha conciliação de interesses e forças políticas, ao invés da radical e possível disputa democrática, se tornou a regra da governabilidade, mesmo sob a liderança do PT. Neste quadro, caminhamos para uma democracia de baixa intensidade, com perda de projeto de outro país. Só dá para comemorar o fato que, ao menos, as questões da desigualdade, do racismo e do machismo entraram na agenda e incomodam.
Com isto chegamos num impasse político e institucional. A democracia parece não dar conta dos novos desafios. O processo de impeachment contra o governo Dilma é a maior expressão disto: quem ganhou nas eleições não consegue definir e nem tem condições políticas para implementar uma agenda de mudanças substantivas; e quem perdeu não se conforma – o que é de seu direito como oposição – não permitindo que o país enfrente seus problemas de fundo, pois tais mudanças contrariam frontalmente seus interesses. O mais grave é que o impasse revela um profundo mal-estar no seio da própria sociedade civil. O esgotamento da institucionalidade democrática, sua total perda de legitimidade, mesmo sendo legal, contamina o próprio cotidiano e o convívio social. A maior expressão deste estado de coisas é a crítica perda de legitimidade da representação política. Convenhamos, não dá para encontrar algum resquício de legitimidade democrática representativa naquela plêiade de partidos de ocasião que dominam o Congresso Nacional, sob lideranças de acusados de corrupção nos tribunais. Estamos diante de um perigoso esgarçamento do tecido social, onde cresce a intolerância com o diferente no modo de ser e pensar, com riscos de violência. O desencontro fundamental é entre a cidadania e a política. O Judiciário, com suas práticas a la Moro, não ajuda em nada a enfrentar este nó górdio da democracia. É fundamental afirmar aqui que sem a política como bem comum, como arena de disputa democrática, nem existe a democracia como tal.
Penso que todo mundo, ao menos os e as que comungam a opção estratégica pela democracia, deveria avaliar como nossas ideias e práticas geraram esta situação, com seus limites e suas possibilidades. Mais urgente ainda é pensar o amanhã e o depois. Estamos diante de retrocessos que podem ser comprometedores para alternativas de futuro em termos democráticos. O provável projeto liberal, que pode adquirir força política na derrota de Dilma e do PT, pode ser mais do que ocasional e circunstancial, limitando nosso horizonte a uma inserção no mundo subordinada e dependente do grande negócio, coisa que a mídia dominante martela todo dia. O neoliberalismo não foi derrotado ainda, basta olhar o que se passa no mundo. Apesar da grande crise, são as grandes corporações econômicas e financeiras que estão dando as cartas e controlando o cassino em que se transformou o mundo globalizado, de acumulação sem limites, de desigualdade e de destruição ambiental, como a questão da mudança climática mostra. A agenda neoliberal fascina nossas elites empresariais e financeiras em seu histórico servilismo dependente, de sócias menores de um capitalismo hoje condenado.
Uma sociedade brasileira de bem consigo mesma e que seja responsável por um planeta solidário e responsável, compartido entre todos os povos, é algo antinegócio, antiacumulação. Forças políticas e blocos históricos não se reinventam magicamente, de forma inevitável. Vontades e movimentos de grande envergadura cultural e política, irresistíveis, precisam surgir do seio de nós, a cidadania deste país. Se perdemos nossas principais bases até aqui, precisamos começar a nos reinventar imediatamente. Para isto o que está passando neste despertar da cidadania no período recente é promissor. Voltamos a discutir política como nosso pão de cidadania no dia a dia. Isto pode nos inspirar sobre o que e como fazer. A rua e nosso cotidiano são espaços de reinvenção democrática da política de baixo para cima.
Como ativista social e analista, tenho pensado muito no que é mais estratégico. Termino ousando apontar uma questão: precisamos coletivamente reinventar um imaginário mobilizador da cidadania. Não se trata de projeto ainda, por mais consistente que ele possa ser. Precisamos de algo que dê sentido, que aponte entre utopia e projeto possível, mas que mova mentes e corações da cidadania, daqueles que sonham com um país mais igual na diversidade do que somos, mais justo e mais sustentável para nós, hoje, e para nossos filhos e netos. A minha dica é voltar a sonhar grande, com ousadia, para que voltemos a fazer coisas grandes e capazes de transformar as iníquas estruturas de poder e da economia que criam desigualdades e destruição. Pensemos no bem viver para todos e todas no aqui e agora, nas nossas fortalezas e possibilidades como cidadania consciente de seus direitos e responsabilidades. Afinal, nunca é demais lembrar que instituintes e constituintes de outra “ordem” só podemos ser nós mesmos. Esperar da economia/mercado, do Estado/poder, daquela federação de interesses privados que domina o Congresso Nacional será um erro estratégico. Daí é que nada virá a não ser mais crise.