Ao acompanhar as notícias deste thriller policial que se tornou o segundo processo de impeachment da história do Brasil, não faltam holofotes para o Judiciário, seja para o Supremo Tribunal Federal (STF) ou para a operação Lava Jato. E, quando falamos de STF, há sempre a expectativa de baliza em relação a uma corte que decide sobre as regras do jogo. O último episódio acorreu nesta quinta-feira, dia 14 de abril, quando o STF julgou a ação da Advocacia-Geral da União (AGU) sobre o adiamento da votação do impeachment e a constitucionalidade do sistema de contagem de votos que o plenário da Câmara dos Deputados vai utilizar no domingo, dia 17. Essas e outras questões acentuaram a discussão sobre o papel do Judiciário na crise política e mesmo sobre sua posição no sistema de freios e contrapesos que equilibra os Três Poderes.
O debate está aberto. Por diversos motivos, não se pode imaginar que a política não perpasse a Justiça. No entanto, quando se vê o atual cenário, os questionamentos quase sempre se voltam para dois pontos: a interferência, indevida ou não, do Judiciário no que seria atribuição do Legislativo e do Executivo – como pode alegar quem contestou a apreciação do rito do impeachment pelo Supremo. E, em outro turno, tem-se os argumentos sobre a exacerbação do Judiciário dentro de suas próprias competências. O caso da liberação das gravações feitas na Lava Jato é o exemplo mais contundente desse ponto.
Mas, silenciosamente, e com certeza em um movimento mais lento, o Judiciário se coloca na berlinda pelo accountability que demonstra suas próprias fragilidades. Talvez seja difícil perceber isso de pronto, mas temos um exemplo bem aqui, debaixo dos nossos olhos. No dia 11 de abril, quando o pedido de impeachment da presidenta Dilma Rousseff foi aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, não faltaram matérias repercutindo as informações que apontam as pendências judiciais dos parlamentares.
Vale lembrar que o processo de impeachment requer a condenação da presidenta pelas chamadas “pedaladas fiscais”, que, de forma inédita, passaram a ser entendidas como crime de responsabilidade. O irônico do caso é que, dos 65 parlamentares que votaram na Comissão Especial do Impeachment, 37 têm “ocorrências na Justiça e/ou nos Tribunais de Contas”. Ao todo, eles acumulam 129 registros. Os dados foram levantados pela agência de checagem Lupa, que cruzou a lista dos 65 parlamentares com os perfis públicos mantidos sobre eles no site Excelências (criado pela Transparência Brasil) e também com informações do próprio STF.
Os números falam por si: dos 38 parlamentares que votaram pela admissão do pedido de impeachment, 21 apresentam “ocorrências na Justiça e/ou nos Tribunais de Contas”. Mesmo os que foram contrários ao pedido – no total, 27 deputados – 16 têm as tais “ocorrências na Justiça e/ou nos Tribunais de Contas”. Fora as menções, há ainda os condenados: quatro dos 65 têm condenação por improbidade administrativa e recorrem da sentença. Eis os nomes: Paulinho da Força (SD-SP), Marcelo Squassoni (PRB-SP), Marcos Montes (PSD-MG) e Paulo Maluf (PP-SP).
O site de checagem Aos Fatos também trabalhou com essa perspectiva, embora com uma pequena discrepância por conta da metodologia utilizada. Na contagem deles, o número de deputados na Comissão Especial do Impeachment com problemas com a Justiça é 36. Porém, grosso modo, pode-se dizer que os “julgadores” têm mais pendências do que quem está sendo “julgado”.
Diante disso, é possível fazer muitas análises que passam da questão ética ao presidencialismo de coalizão, mas há uma coisa esquecida aí: a presença do Judiciário como fonte e “alvo” dos dados de checagem. Ao expor quem tem pendências com a Justiça, não apenas se mostram as incoerências do processo de impedimento, como também se traz à tona a própria leniência do Judiciário em relação àqueles que, digamos, são seus devedores. É claro que não se pode tirar conclusões precipitadas apenas por se encontrar o nome de alguém em um processo. Existem atecnias, questões estritamente contábeis etc. Aprofundar a apuração é necessário. Mas o ponto-chave é que a abertura de dados sobre o funcionamento da Justiça atinge seus implicados e ela própria, possibilitando uma maior cobrança da atuação judicial.
O trabalho jornalístico focado na checagem, como o realizado pela Lupa e pela Aos Fatos, costuma começar apurando declarações públicas mais ligadas ao Executivo e ao Legislativo. O site argentino Chequeado foi o precursor dessa proposta na América Latina. A polarização dos hermanos era um convite a esse tipo de proposta mais centrada na informação do que na opinião. No Brasil, durante as eleições, o jornal O Globo criou a seção Preto no Branco exatamente para confrontar as diversas falas dos candidatos que, recheadas de números, dão a sensação de verdade científica ao que é dito. Agora, talvez mesmo sem ter a consciência disso, é o Judiciário que começa a ser, ao mesmo tempo, fonte e pauta da apuração.
Em muitos aspectos, esse trabalho de levantamento de dados – os quais podem ser obtidos via sistema, site e assessoria de comunicação – se liga ao potencial aberto pela Lei de Acesso à Informação (LAI). Em 2014, a ONG Artigo 19 analisou os níveis de transparência de 51 órgãos públicos da esfera federal e, dentre eles, 11 eram do Sistema de Justiça (Judiciário e Ministério Público). Quando comparado ao nível de resposta do Executivo e do Legislativo, a Justiça foi a pior do ranking. Eis outro ponto para se entender como cada vez mais a Justiça será demandada. Seu retorno terá impacto não apenas na cobertura jornalística, como também na produção acadêmica, que, comumente, utiliza-se desses dados. Em ambos os casos, se avaliam não só as respostas em si, mas seu nível de transparência.
Ainda que de maneira branda, algumas matérias mais especializadas começam a avaliar critérios técnicos de decisões e também a expor questões quantitativas e qualitativas que mostram pontos não matizados pela mera opinião. Nesse sentido, a checagem de dados pode representar um salto na cobertura do Sistema de Justiça.
Mesmo distante da imprensa tradicional, esse olhar farejador para processos e registros pode trazer surpresas interessantes. Há um exemplo que pode ilustrar o caso. Em 2013, diante da polêmica presidência do deputado pastor Marco Feliciano (PSC-SP) na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, o grupo de ativistas Anonymous fez uma varredura dos dados sobre o deputado que estavam expostos na rede. Descobriu uma empresa que não constava na declaração dele junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), cruzou informações dos gastos de suas verbas parlamentares com doadores de campanha e advogados que lhe representavam em ações na Justiça. Era um verdadeiro dossiê que não só mostrava irregularidades na conduta do deputado, como apontava para falhas na própria fiscalização do poder público.
Assim, seja por um caminho mais tradicional de cobertura ou pelo trabalho de coletivos e ativistas, a janela aberta pela coleta e pelo cruzamento de dados públicos traz um novo olhar para as questões judiciais e seus envolvidos. Em uma época em que o resultado da votação sobre o impedimento da presidenta da República aparece mensurado em um “bolão”, a apuração da notícia com uma abordagem investigativa pode nos ajudar a sair do transe. Neste movimento, é indiscutível que o Judiciário, assim como o Executivo e o Legislativo, não vai poder escapar à checagem.
Grazielle Albuquerque
Grazielle Albuquerque é jornalista, pesquisadora do Sistema de Justiça e doutoranda em Ciência Política na Unicamp. Twitter: @grazalbuquerque.