A crise pela qual passa o Brasil é de ampla extensão e atinge em cheio as nossas instituições. Instituições vigentes sob a égide da Constituição de 1988, que marcou a restauração da democracia entre nós. No entanto, trataremos de uma estratégia perversa encabeçada por setores que atuam na prestação jurisdicional e tentam macular esse processo. Não é por outro motivo que juristas de todo o país vêm procurando chamar a atenção para o perigo de um retrocesso na nossa democracia, o que merece ser explicado, e ninguém melhor para fazer isso do que os que protagonizam o cenário jurídico, político e institucional do Brasil nesta segunda década de século.
Uma das figuras centrais da chamada Operação Lava Jato é a do juiz Sergio Fernando Moro, como gosta de ser chamado. E é ele mesmo quem mostra, em texto publicado em 2004, qual é a estratégia que vem adotando no combate à corrupção, e em quais premissas se apoia, numa espécie de confissão teórica [1].
Os anos 90 foram marcados por um processo político institucional de judicialização no Brasil, dando ensejo a uma verdadeira revolução na “Justiça Federal”. A reforma do Estado mobilizou o Governo Fernando Henrique Cardoso e os juízes federais viram-se diante da responsabilidade de enquadrar e conferir sentido jurídico às privatizações que eram então realizadas. Mas o protagonismo alcançado pela Justiça Federal nem sempre se fez acompanhar de um maior embasamento teórico por parte de seus integrantes, de forma a melhor enfrentar os desafios que se apresentavam. Entretanto, algumas exceções merecem ser notadas. E uma delas é, justamente, a do juiz Sérgio Fernando Moro, que buscou a carreira acadêmica. Cursou o mestrado e o doutorado na Universidade Federal do Paraná, se especializou em crimes de lavagem de dinheiro e do “colarinho branco”, passando a conciliar a atividade de magistrado com a do magistério na área do processo penal.
Em 1998 Moro publicou um livro intitulado “Legislação suspeita? afastamento da presunção de constitucionalidade da lei” e, no ano de 2004, elaborou um pequeno, mas muito bem resumido texto, sobre a “Operação Mãos Limpas” na Itália. Os dois trabalhos mostram duas formas distintas de se perceber, pelo prisma da institucionalidade, a atuação do Poder Judiciário. O primeiro ressalta a figura firme do juiz frente à atuação do legislador e o segundo destaca o papel da magistratura, sob um viés mais corporativo e com poder de articulação política.
No estudo de 1998, com a apresentação de seu orientador, professor de Direito Constitucional Clèmerson Merlin Cléve, é materializada a teoria constitucional americana sob a perspectiva da separação dos poderes e do Judicial Review. A partir de um histórico do sistema de controle de constitucionalidade no Brasil, defende um juiz que, por cautela, deve mostrar-se deferente ao legislador, mas com flexibilidade suficiente para afastar o princípio da presunção de constitucionalidade. Para compreender melhor esse comportamento institucional, o autor percorre todo um histórico teórico do principio da separação de poderes em defesa da autonomia do Judiciário. Mas postula o fato de que esse princípio pode representar obstáculo significativo para a solução de problemas práticos. Acrescenta considerações sobre a crise da legalidade, abrindo caminho para a superioridade do Poder Judiciário.
É importante, para delimitar o enquadramento político institucional do Juiz Sergio Moro frisar que ele, já em 1998, destaca o fato de que “a legitimação do poder jurisdicional tem outras fontes que não a democrática” [2], salientando que os tribunais não devem se curvar diante da vontade das maiorias. Fundamentado em Dworkin, aponta para a importância dos Direitos Fundamentais na alçada da Suprema Corte. E, seguindo a orientação constitucional americana, enaltece o instituto do devido processo legal para submeter medidas restritivas de direitos a um rigoroso escrutínio judicial.
A orientação do Juiz Moro em 1998 é de que “os Juízes não devem impedir o povo de governar a si mesmo.” [3] . E sintetiza o seu pensamento sustentando a necessidade de uma postura pró ativa por parte do juiz ao interpretar a Constituição, para o bom cumprimento da função que lhe é atribuída. Para tanto tem competência para definir o significado das normas constitucionais, sem a necessidade de uma especial deferência à interpretação adotada pelos outros poderes constituídos. Ao contrário: a interpretação da Carta Maior por parte dos outros poderes deve ser submetida a um severo exame por parte do Judiciário.
Dessa forma, na obra editada pela Editora Juruá percebemos uma preocupação institucional bem pontuada em favor do fortalecimento do Poder Judiciário, ainda que dentro do universo de controle da constitucionalidade das leis. E exatamente seis anos depois, em 2004, o Juiz Sérgio Fernando Moro publica um artigo na revista do Conselho da Justiça Federal – CEJ, sob o título “Considerações sobre a operação mani pulite”, onde enaltece a experiência italiana de combate à corrupção, ressaltando o poder dos juízes na da Itália do início dos anos 90.
O que nos chama a atenção do texto de 2004, como também agora, diante dos fatos correntes, é a explicação que o autor faz sobre o “círculo virtuoso” das prisões, confissões e publicidade. Àquela altura, Sergio Fernando Moro já vinha amadurecendo um projeto que pode ser levado a cabo dez anos depois no Brasil. Servindo-se de um Ministério Público e de uma Polícia Federal independentes, e diante de uma conjuntura política e econômica desgastadas, à semelhança do que ocorreu na Itália, encontrou um ambiente propício para se lançar na batalha contra a corrupção, buscando o apoio direto da população [4].
Reconhece a Operação Mãos Limpas como “um momento extraordinário na história contemporânea do Judiciário”. Uma operação montada sobre a seguinte equação: quanto maior a deslegitimação do sistema político, maior a legitimação da magistratura. E tanto na Itália como no Brasil, a deslegitimação da classe política propiciaram um verdadeiro ímpeto às investigações de corrupção, com resultados que fortaleceram, e fortalecem, o próprio processo de deslegitimação. “O processo de deslegitimação foi essencial para a própria continuidade da operação Mani Pulite”, diz ele. E assim procura, com a colaboração da mídia, angariar uma imagem positiva dos juízes perante a opinião pública, uma vez que acredita que “a opinião pública é essencial para o êxito da ação judicial”.
Identificando-se com uma nova geração de juízes, “giudici ragazzini”, Sergio Fernando Moro se lança a uma empreitada moralizadora, adotando um método de atuação bastante perverso sob o ponto de vista dos direitos e garantias fundamentais, a nosso ver. Uma estratégia que, conforme explica, é adotada desde o início do inquérito: submeter “os suspeitos à pressão de tomar decisão quanto a confessar, espalhando a suspeita de que outros já teriam confessado e levantando a suspeita de permanência na prisão pelo menos pelo período da custódia preventiva no caso de manutenção do silêncio ou, vice-versa, de soltura imediata no caso de confissão”. Uma extorsão indolor, podemos dizer. No caso, conforme aponta, o isolamento na prisão mostra-se necessário antes do julgamento para prevenir que os suspeitos saibam da confissão dos outros. Não apenas isso, mas também a repercussão positiva que as prisões preventivas provocam em sistemas judiciais morosos ou inoperantes: a tal “sensação de impunidade” muitas vezes levantada entre nós para justificar práticas abusivas. Nas palavras de Moro, “a prisão pré-julgamento é uma forma de se destacar a seriedade do crime e evidenciar a eficácia da ação judicial, especialmente em sistemas judiciais morosos”. Uma lógica também adota pelos condutores da Operação Mãos Limpas.
E agora a pérola: “os responsáveis pela Operação mani pulite ainda fizeram largo uso da imprensa. […] A investigação da mani pulite vazava como uma peneira e tão logo alguém era preso, detalhes de sua confissão eram veiculados no L’Expresso, no La Repubica e outros jornais e revistas simpatizantes.” Vazamentos que serviam a um propósito útil, na visão de Moro, na medida em que “o constante fluxo de revelações manteve o interesse do público elevado e os líderes partidários na defensiva”, levando suas agendas a serem definidas por outros.
A publicidade também servia para pressionar os investigados, no sentido de alertá-los sobre o aumento da massa de informações nas mãos dos magistrados, favorecendo novas confissões e colaborações. A publicidade, afirma, tem objetivos legítimos que não podem ser alcançados por outros meios. “A punição judicial é sempre difícil pela carga de provas exigidas para alcançar a condenação em um processo criminal. Nessa perspectiva, a opinião pública pode constituir um salutar substituto, tendo condições melhores de impor alguma espécie de punição a agentes públicos corruptos, condenando-os ao ostracismo” (grifo nosso). O que nos explica em boa medida a triangulação entre Poder Judiciário, Polícia Federal e Mídia. Contudo, Moro não desconsidera o risco de divulgação prematura de informação acerca de investigações criminais, pois “caso as suspeitas não se confirmem, a credibilidade do órgão judicial pode ser abalada”.
Constituiu, assim, a Operação Mãos Limpas “uma das mais exitosas cruzadas judiciárias contra a corrupção política e administrativa”, na visão de Sergio Fernando Moro. Mas isso não se faz sem o apoio da democracia, isto é, da opinião pública, diz ele, seguindo uma noção de democracia bastante próxima da de Carl Schmitt. Uma democracia consubstanciada na identidade e não na representatividade. O princípio da identidade, conforme ensina Ronaldo Porto Macedo Jr, define-se pela presença imediata do povo como governante; “do povo presente consigo mesmo como unidade política quando, em virtude de consciência política própria e vontade nacional, tem aptidão para distinguir entre o amigo e o inimigo.” [5].
Tudo em nome do “interesse público”. Uma justificativa que, aliás, tem sido utilizada não apenas pelo juiz Sergio Moro, como também pela defesa das corporações que com ele colaboram. Basta ver que das notas publicadas em prol do suspensão do sigilo de conversa telefônica que recentemente envolveu a Presidente da República, não consta qualquer referência à legislação existente; apenas referência ao “interesse público”. E leis existem para regular a matéria, a começar pela Constituição Federal artigo 5, XII, que protege o direito à privacidade nas comunicações telefônicas, salvo por ordem judicial e para fins exclusivos de investigação criminal e instrução processual penal. Portanto, não é o “interesse público” que pode justificar a quebra de sigilo de uma conversa telefônica. Como bem acentua Gustavo Binenbojm, ao discorrer sobre a hegemonia dos direitos fundamentais na ordem jurídica atual, “não é possível extrair o princípio da supremacia do interesse público da análise do conjunto normativo constitucional, haja vista a ampla proteção dispensada aos interesses particulares…” [6].
Tomando como referência teorias constitucionais contemporâneas, baseadas nas liberdades, no pluralismo e na inclusão social de minorias pela via dos partidos políticos, não encontramos parâmetros de análise para a estratégia político-institucional apresentada por Sergio Fernando Moro. Do conteúdo dos dois textos examinados, percebemos que esse não é o seu desiderato. Mas Boaventura de Sousa Santos nos dá uma pista importante. Em texto publicado no blog Sul 21, mais precisamente no dia 22 de março de 2016, sob o título “Brasil: a democracia à beira do caos e os perigos da desordem judicial”, o autor é bem afirmativo no sentido de que a denominada Operação Lava a Jato nos levou a um contexto típico de República de Weimar, minada pelo processo seletivo de decisões judiciais [7].
Em Weimar podemos descortinar, já citado anteriormente, a presença da teoria de Carl Schmitt, notadamente no que diz respeito ao institucionalismo. Nesse sentido, perguntamos: qual é o papel institucional do juiz e da magistratura nos textos da lavra de Sergio Fernando Moro? A partir de uma leitura schmittiana, podemos dizer que é a do decisionismo [8]. Quando apela para opinião pública de forma a legitimar o Poder Judiciário, configura-se a aclamação do líder e a democracia homogênea mostradas por Schmitt. E quando flexibiliza as garantias constitucionais, principalmente a da presunção de inocência, o juiz se aproxima da concepção de Estado de Exceção [9], nos moldes de Schmitt que, em sua obra Teologia Política, resume de forma pungente e brilhante que “a exceção é Direito” [10].
E, por derradeiro, vale ressaltar ainda o protagonismo judicial defendido pelo autor examinado, no sentido de um Judiciário como superego da sociedade, tão bem descrito por Ingeborg Maus no texto “Judiciário como superego da sociedade”. A autora explica como a libido da sociedade se deslocou do aparato do Executivo para a cúpula do Poder Judiciário [11].
[1] MORO, Sergio Fernando. Considerações sobre a Operação Mani Pulite. R. CEJ, Brasília, n.26, p. 56-62, jul./set. 2004. O texto pode ser acessado pelo link http://s.conjur.com.br/dl/artigo-moro-mani-pulite.pdf
[2] MORO, Sergio Fernando. Legislação suspeita? afastamento da presunção da constitucionalidade da lei. Curitiba: Juruá, 1998, p. 38.
[3] Idem. Ibidem., p.53
[4] É de se mencionar o fato de no ano de 2004 também ter sido publicado o livro Jurisdição Constitucional como Democracia (editora Revista dos Tribunais) de Sergio Fernando Moro, como resultado de sua tese de doutorado orientada pelo professor Marçal Justen Filho. Nela o autor explora o constitucionalismo americano. No entanto, esta obra não será aqui explorada, pelo fato de o verdadeiro Moro de 2004 ser aquele que consubstancia uma ação política pelo mesmo antecipada. Uma experiência que não consegue ser explicada com as categorias do constitucionalismo americano, de matriz liberal. Autores como Barry Friedman, Robert Post e Cass Sunstein, por exemplo, trabalham a relação do Judiciário com a sociedade sob a vertente dos diálgos institucionais, aproveitando-se do que a opinião pública expressa em polls, sem qualquer recurso a vazamento de informações privilegiadas para a mídia.
[5] MACEDO Jr., Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a Fundamentação do Direito. São Paulo: Saraiva, 2. ed., 2011, item 2.3.1
[6] BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 3. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 98.
[7] http://www.sul21.com.br/jornal/brasil-a-democracia-a-beira-do-caos-e-os-perigos-da-desordem-juridica-por-boaventura-de-sousa-santos/
[8] “Ao analisar o decisionismo jurídico, Schmitt observa que juridicamente, podemos encontrar o último fundamento jurídico de todas e quaisquer validades e valores de direito em um processo volitivo, uma decisão que enquanto tal cria o ‘direito’ e cuja ‘força jurídica’ (Rechtskraft) não pode ser derivada da força jurídica de regras de decisão, pois mesmo uma decisão que não corresponde à regra cria direito. Essa força jurídica de decisões contrárias à norma pertence a todo e qualquer ordenamento jurídico”. MACEDO Jr., Ronaldo. Carl Schmitt e a Fundamentação do Direito. São Paulo: Saraiva, 2. ed., 2011, item 2.1
[9] “What characterizes an exception is principally unlimited authority, which means the suspension of the entire existing order. In such a situation it is dear that the state remains, whereas law recedes. Because the exception is different from anarchy and chaos, order in the juristic sense still prevails even if it is not of the ordinary kind.” SCHMITT, Carl. Political Theology: four charpters on the concept os sovereignty. The University Press of Chicago 1985, p. 12.
[10] Ronaldo Porto Macedo Jr. explica muito bem isso no item 4.1, “soberania e decisão”, do livro citado acima.
[11] MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade. Novos Estudos CEBRAP, n.58, nov. 2000, p. 199.