por Gustavo Gindre
Ao contrário do que o senso comum indica, o sucesso de uma tecnologia não está ligado apenas a questões meramente técnicas. E mesmo a definição do que são os aspectos técnicos está inserida em um contexto mais amplo, que envolve questões sociais, culturais, políticas e econômicas. Ao fim e ao cabo, é o conjunto dessas interações que triunfa ou fracassa.
Esta breve reflexão é necessária para justificar porque o middleware Ginga (uma espécie de sistema operacional para TVs interativas), desenvolvido no Brasil e com código-fonte aberto, parece ter fracassado de maneira definitiva. Caso tivesse obtido sucesso, o Brasil teria não apenas uma tecnologia capaz de converter a TV em um instrumento de inclusão digital como também uma poderosa alavanca para mover a incipiente produção brasileira de softwares.
Em 2006, o Decreto 5.820, que definiu a adoção de um suposto sistema “nipo-brasileiro” para a digitalização de nossa TV aberta, na prática adotou um pacote tecnológico japonês (conhecido pela sigla ISDB-T) combinado com o uso do middleware (software) brasileiro Ginga, responsável pela interatividade do novo modelo. Mas, enquanto a adoção do ISDB-T ocorreu como previsto, a inclusão do Ginga e dos mecanismos para garantir a interatividade no sistema digital acabou sendo postergada.
Recentemente, como mostrou este blog na época, o grupo criado por representantes do governo e do empresariado para acompanhar o processo de digitalização da TV no Brasil (chamado GIRED – Grupo de Implantação do Processo de Redistribuição e Digitalização de Canais de TV e RTV) decidiu que os conversores que serão distribuídos aos beneficiários do Bolsa Família não virão com modems.
A interatividade, como se sabe, precisa de um canal de retorno do usuário, e o caminho para isso é a internet. Corretamente, o governo tomou a decisão de distribuir 14 milhões de conversores para os beneficiários do Bolsa Família. Trata de um usuário de baixa renda, que provavelmente não tem computador em casa, e que poderia, inclusive, usar a TV como ferramenta de inclusão digital. Porém, sem o modem no conversor, caso este cidadão consiga ter acesso a um provedor de banda larga para conectar sua TV interativa, agora também terá que comprar e instalar um modem em sua TV.
Vale lembrar que, para o cidadão que possui um computador e acesso à Internet, a TV interativa se torna pouco ou nada necessária. A interatividade na TV faz muito mais sentido para o cidadão de baixa renda. Mas, sem uma conexão de banda larga que possa tornar a TV interativa de verdade e sem o modem no conversor, esse usuário fica limitado apenas a receber informações, sem poder interagir de fato.
Agora, em 2016, não satisfeitos com a distribuição de conversores sem modem, os membros do GIRED acabam de aprovar uma nova resolução, motivada pelo atraso no processo de desligamento da TV analógica, determinando que apenas os beneficiários do Bolsa Família que vivem nos 1000 maiores municípios brasileiros receberão conversores com Ginga. Ou seja, a imensa maioria da população mais pobre, aquela que mora nos mais de 4.500 municípios restantes, receberá somente um conversor de sinal da programação digital, sem qualquer software que permita a interatividade – mantendo a televisão exatamente como ela sempre foi, apenas com uma melhoria na qualidade do sinal.
De quem é a culpa
Em parte, a falência do Ginga como tecnologia brasileira para a interatividade na TV digital se deve à falta de competência do Estado brasileiro para implementar uma política industrial que viabilizasse a sua adoção. O assunto sempre ficou nas mãos de pessoas sem a experiência e o poder necessários para articular o conjunto de instâncias dentro da máquina estatal para responder a um desafio dessa magnitude.
Mas, não foi apenas a falta de expertise dos gestores envolvidos que determinou a morte do Ginga. Na verdade, o middleware brasileiro foi apanhado por uma tempestade perfeita, formada por um conjunto de fatores.
Um deles foi a recusa dos radiodifusores em adotar a interatividade na TV aberta. A publicidade de lançamento do Ginga previa sua adoção como ferramenta de interatividade colada à programação de TV. Assim, o espectador poderia clicar num produto anunciado e fazer a compra online ou, por exemplo, ter acesso a estatísticas de uma partida de futebol.
Mas para os radiodifusores, capitaneados pela Globo, a interatividade sempre foi associada ao aumento de custos e, principalmente, à evasão de audiência. Com a interatividade, o espectador poderia ter acesso a outros conteúdos e se afastar da programação normal das emissoras, diminuindo sua audiência e, portanto, o faturamento em publicidade. Assim, com seu enorme poder político junto ao governo, os radiodifusores retardaram ao máximo a adoção do Ginga no sistema digital e a TV interativa perdeu mais um estímulo para a sua adoção.
Os fabricantes de aparelhos de TV também não viam com bons olhos o software brasileiro. Mas, ao contrário dos radiodifusores, o que os fabricantes de TVs querem é implantar a interatividade, só que por meio de aparelhos que ficaram conhecidos como smart TVs. Ou seja, querem vender a interatividade para os consumidores, mas não por meio de aparelhos de TV que tenham um software de código-fonte aberto instalado. Para empresas como Samsung, LG e Sony, a TV interativa só faz sentido se for controlada por elas próprias, através de seus próprios sistemas operacionais, que definam quais aplicativos de interatividade podem ou não ser instalados. Para essas empresas, as TVs interativas são uma nova fonte de recursos, que o Ginga poderia desestabilizar.
Por conta disso, depois de atender a sucessivos pedidos dos fabricantes para adiar a adoção do Ginga nessas TVs, o governo definiu, somente em 2013, que 75% dos aparelhos fabricados no Brasil teriam que vir com o Ginga instalado, dispensando a necessidade do uso de conversores. Até o ano passado, 10% dos aparelhos fabricados seguiram dispensados dessa obrigação.
Outra dificuldade enfrentada pelo Ginga foi a pequena quantidade de aplicativos desenvolvidos para o sistema. Todos sabemos que, para além das características técnicas, é a quantidade e a qualidade de aplicativos que determina o sucesso de um sistema operacional. Porém, passados quase dez anos do Decreto presidencial que introduziu a TV digital aberta no Brasil, o Ginga teve apenas a experiência-piloto do “Brasil 4D”, que se destinava a prover acesso a informações de saúde, educação e outros temas de utilidade pública por meio dos conversores da TV digital. Foi o projeto do Brasil 4D que garantiu a inclusão, no planejamento do governo, da entrega dos conversores aos beneficiários do Bolsa Família, por meio do Ministério do Desenvolvimento Social. Porém, como dito, apenas uma parte deles agora poderá usufruir do sistema.
Por fim, caso quisesse, o governo poderia ter definido uma política de digitalização para a TV a cabo que também incluísse o Ginga. Essa iniciativa teria duas vantagens. Primeiro, a implantação do Ginga começaria pelos consumidores de maior renda, como em geral acontece com as tecnologias bem-sucedidas. São esses usuários que estão dispostos a pagar mais caro pelo acesso às novas tecnologias e que começam a criar a escala necessária para o seu barateamento. Em segundo lugar, operações de TV a cabo já possuem naturalmente o canal de retorno necessário para a interatividade e seria possível iniciar a produção de aplicativos realmente interativos. Porém, a opção do governo foi prever o uso do Ginga apenas na TV aberta.
Outras limitações à TV interativa
Uma limitação da TV interativa, que vai além do Ginga, é seu caráter de tela coletiva, em geral para toda a família, colocada de forma privilegiada nas salas das residências. Ao contrário de PCs, notebooks, tablets e smartphones, que são utilizados por um único usuário, as TVs interativas não permitem uma condição de interatividade com privacidade. Assim, aplicativos como banco eletrônico e redes sociais, que chegaram a ser pensados para as TVs interativas, teriam enormes dificuldades de serem adotados.
Talvez por isso, mesmo nas modernas smart TVs, a interatividade acabou restrita ao consumo de aplicativos de vídeo por demanda, como a Netflix. E, embora haja uma quantidade razoável de outros aplicativos que podem ser instalados nas TVs, sua utilização é desprezível, seja no Brasil ou em outros países.
Por conta desse conjunto de fatores, é possível concluir que a janela de oportunidade para a adoção do Ginga na TV aberta brasileira já está fechada. Os esforços necessários para reabri-la seriam politicamente enormes e há que se questionar se ainda são válidos diante do necessário esforço para garantir a universalização do acesso à Internet.
Infelizmente, parece ser forçoso reconhecer que a TV aberta no Brasil, após digitalizada, seguirá sendo a mesma que foi ao longo das últimas décadas. Os mesmos poucos canais, com a mesma baixíssima qualidade de programação e sem interatividade. Caberá à população se contentar com as mesmas imagens de sempre, só que em alta definição.
* Gustavo Gindre é jornalista e integrante do Intervozes.