Noam Chomsky, linguista, filósofo e ativista político estadunidense.
Ao longo da sua ilustre carreira, umas das principais preocupações de Noam Chomsky foi questionar — e incutir-nos a necessidade de questionar — as assumpções e normas que governam a nossa sociedade. Após uma conferência, a semana passada, sobre poder, ideologia e a política externa dos Estados Unidos, o jornalista freelancer italiano, Tommaso Segantini, sentou-se com este senhor de oitenta e seis anos para discutir alguns de esses mesmos temas, incluindo a sua relação com o processo de mudança social.
Para os radicais, o progresso requer furar a bolha da inevitabilidade: austeridade, por exemplo, “é uma política tomada pelos maquinadores para os seus próprios propósitos.” Não é implementada, afirma Chomsky, “por qualquer lei económica.”
O capitalismo norte-americano também beneficia do obscurecimento ideológico: apesar da sua associação com os mercados livres, o capitalismo está cheio de subsídios para os mais poderosos actores privados. Esta bolha também necessita rebentar.
Além da conversa sobre uma mudança radical, Chomsky comenta sobre a crise da zona euro, se o Syriza poderia ter evitado a submissão aos credores gregos e a importância de Jeremy Corbyn e Bernie Sanders. E mantém-se sobriamente optimista. “Ao longo do tempo há uma espécie de trajectória geral em direcção a uma sociedade mais justa, com retrocessos e reviravoltas claro.”
Tommaso Segantini: Em uma entrevista, há um par de anos, disse que o movimento Occupy Wall Street tinha criado um raro sentimento de solidariedade nos Estados Unidos. No dia 17 de Setembro foi o quarto aniversário do movimento OWS. Qual é a sua avaliação de movimentos sociais como o OWS nos últimos vinte anos. Têm sido efectivas no que toca a trazer mudanças? Como podem melhorar?
Noam Chomsky: tiveram um impacto; não se juntaram em um movimento persistente e contínuo. É uma sociedade muito atomizada. Há muito poucas organizações persistentes que tenham memória institucional, que saibam como dar o próximo passo e por aí adiante. Isto é parcialmente devido à destruição do movimento operário, que oferecia uma espécie de base fixa para muitas actividades; agora, praticamente as únicas instituições persistentes são as igrejas. Tantas coisas que têm por base as igrejas. É difícil um movimento consolidar-se. Há movimentos de jovens que tendem a ser transitórios; por outro lado é um efeito cumulativo e nunca sabes quando algo vai dar início a um movimento maior. Aconteceu uma e outra vez: o movimento dos direitos civis, o movimento feminino. Portanto continuem a tentar até que algo despolete.
A crise de 2008 demonstrou claramente as debilidades da doutrina económica neoliberal. Sem embargo o neoliberalismo parece continuar a persistir e os seus princípios continuam a ser aplicados em muitos países. Por que, mesmo com os efeitos trágicos da crise de 2008, a doutrina neoliberal parece ser tão resiliente? Por que não há ainda uma resposta forte como aquela após a Grande Depressão?
Em primeiro lugar, as respostas europeias foram muito piores que as respostas dos Estados Unidos, o que é bastante surpreendente. Nos Estados Unidos houve esforços moderados para estimular, flexibilizar e por aí adiante, que permitiu à economia recuperar lentamente. Na realidade, por variadas razões, a recuperação da Grande Depressão foi, de facto, mais rápida em muitos países do que tem sido agora. No caso da Europa, uma das principais razões foi o estabelecimento de uma moeda única que levaria ao desastre, como muitas pessoas apontaram. Mecanismos para responder à crise não estão disponíveis na UE: A Grécia, por exemplo, não pode desvalorizar a sua moeda.
A integração europeia teve em algumas matérias desenvolvimentos muito positivos mas provocou danos em outras, especialmente quando está sob o controlo de poderes económicos extremamente reaccionários, impondo políticas economicamente destrutivas e que são basicamente uma forma de guerra de classes, Por que não há reacção? Bom, os países débeis não estão a ter o apoio de outros. Se a Grécia tivesse tido o apoio do Estado espanhol, Portugal, Itália e outros países talvez tivessem conseguido resistir às forças eurocratas. Estes são casos especiais que têm que ver com desenvolvimentos contemporâneos. Nos anos 30, lembre-se que as respostas não foram particularmente atractivas: uma delas foi o Nazismo.
Há vários meses atrás, Alexis Tsipras, líder do Syriza, foi eleito como primeiro-ministro grego. No entanto, no fim, teve que fazer muitos compromissos devido à pressão imposta sobre ele pelos poderes financeiros e foi forçado a implementar medidas de austeridade duras. Pensa que, em geral, uma mudança genuína pode chegar quando um líder radical de esquerda como Tsipras chega ao poder, ou os estados perderam demasiada soberania e estão também estes dependentes de instituições financeiras que os podem disciplinar se não seguem as regras dos mercados livres?
Tal como eu disse, no caso de Grécia, se tivesse havido apoio popular de outras partes da Europa, o país talvez tivesse podido resistir ao assalto da aliança bancária eurocrata. Mas a Grécia estava só — não teve muitas opções. Há economistas muito bons, como Joseph Stiglitz, que pensam que os gregos deveriam ter saído da zona euro. É um passo muito arriscado. Grécia é uma economia muito pequena, não é nada de especial no que toca a exportações e seria demasiado débil para suportar pressões externas. Há pessoas que criticam as tácticas do Syriza e a posição que tomaram, mas eu penso que é difícil ver que opções é que tinham com a falta de apoio externo.
Imaginemos, por exemplo, que Bernie Sanders ganha as eleições presidenciais de 2016. O que pensa que aconteceria? Pode [Sanders] trazer mudanças radicais às estruturas de poder do sistema capitalista?
Supondo que Sanders ganha, o que é bastante improvável em um sistema de eleições comprado. Ele estaria isolado: não tem representantes no congresso, não tem governadores, não tem o apoio da burocracia, não tem legisladores estatais; e estando isolado no sistema, não poderá fazer grande coisa. Uma verdadeira alternativa política teria que ser em todos os domínios, não apenas uma figura na Casa Branca.
Teria que ser um movimento político amplo. De facto, penso que a campanha de Sanders é útil — está a fazer surgir questões, está, talvez, a pressionar um pouquito os Democratas mais populares em uma direcção progressista, está a mobilizar bastantes forças populares e o mais positivo disto tudo seria se se mantivessem após as eleições. É um enorme erro estar apenas especialmente orientado para a extravagancia eleitoral quadrienal e depois ir para casa. Não é desta maneira que as mudanças acontecem. A mobilização pode levar a uma organização popular contínua que poderá talvez obter algum resultado a longo prazo.
Qual é a sua opinião sobre o aparecimento de figuras como Jeremy Corbyn no Reino Unido, Pablo Iglesias em Espanha ou Bernie Sanders nos Estados Unidos. Está um novo movimento de esquerda a surgir ou são apenas respostas esporádicas à crise económica?
Depende da reacção popular. No caso de Corbyn em Inglaterra: está sob um ataque feroz, e não apenas da elite Conservadora, mas mesmo da elite Trabalhista. Esperemos que Corbyn consiga resistir a esse tipo de ataques: isso depende do apoio popular. Se as pessoas estiverem disponíveis para o apoiar frente à difamação e às tácticas destrutivas, então poderá ter um impacto. O mesmo em relação ao Podemos em Espanha.
Como se pode mobilizar um vasto número de pessoas em questões tão complexas?
Não é assim tão complexo. A tarefa de organizadores e activistas é ajudar as pessoas a entender e a fazê-las perceber que estas têm poder, que não são impotentes. As pessoas sentem-se impotentes, mas isso tem que ser ultrapassado. É isso o que é o activismo. Às vezes resulta, outras vezes falha, mas não há quaisquer segredos. É um processo a longo prazo — foi sempre assim. E teve sucessos. Ao longo do tempo há uma espécie de trajectória geral em direcção a uma sociedade mais justa, com retrocessos e reviravoltas claro.
Então diria que, durante o seu período de vida, a humanidade progrediu ligeiramente na construção de uma sociedade mais justa?
Tem havido mudanças enormes. Olha simplesmente para aqui no MIT [Instituto de Tecnologia de Massachusetts]. Dá uma volta pelo corredor e observa a natureza do corpo discente: é mais ou menos metade feminino, um terço são minorias, vestidos de forma informal, relações casuais entre as pessoas e por aí adiante. Quando eu cheguei aqui em 1955, se passasses pelo mesmo corredor seriam todos homens brancos, casacos e gravatas, muito educados, obedientes, sem colocar demasiadas questões. É uma mudança enorme.
E não é apenas aqui — é em todo lado. Tu e eu não nos pareceríamos assim, e de facto tu provavelmente nem estarias aqui. Essas são algumas das mudanças culturais e sociais que aconteceram graças ao dedicado e comprometido activismo. Outras coisas não, como o movimento operário, que tem estado sob um ataque severo durante toda a história norte-americana e particularmente desde o princípio dos anos 50. Tem sido severamente debilitado: no sector privado é marginal e agora tem sido atacado o sector público. Isso é um retrocesso.
As políticas neoliberais são certamente um retrocesso. Para a maioria da população dos Estados Unidos, tem havido muita estagnação e declínio na última geração. E não por leis económicas. Isto são políticas. Tal como a austeridade na Europa não é uma necessidade económica — na realidade, é um absurdo económico. Mas é uma decisão política tomada pelos maquinadores para os seus próprios propósitos. Penso que basicamente é um tipo de guerra de classes e que pode ser resistida mas não é fácil. A História não segue em linha recta.
Como pensa que o sistema capitalista vai sobreviver, tendo em conta a sua dependência dos combustíveis fósseis e o seu impacto no ambiente?
O que é chamado de sistema capitalista é muito diferente de qualquer modelo de capitalismo ou mercado. Por exemplo, as indústrias de energias fósseis: houve um estudo recente do FMI que tentou estimar os subsídios que as empresas de energia obtêm dos governos. O total é colossal. Penso que andava à volta de 5$ triliões anualmente. Isso não tem nada que ver com mercados ou capitalismo.
E é igualmente verdade para outros componentes do alegado sistema capitalista. Agora, nos EUA e em outros países ocidentais, tem havido, durante o período neoliberal, um forte aumento no financiamento da economia. As instituições financeiras nos EUA tiveram cerca de 40 porcento de lucros corporativos na véspera do colapso de 2008, no qual tiveram uma grande parte de responsabilidade.
Há um outro estudo do FMI que investigou os lucros dos bancos norte-americanos, e descobriu que eram quase todos dependentes de implícitos subsídios públicos. Há uma espécie de garantia — não está escrito, más é uma garantia implícita — que se se meterem em problemas serão resgatados. É o chamado grande demais para falir.
E as agências de notação de risco obviamente sabem disso, tomam isso em consideração, e com a alta classificação as instituições financeiras obtêm acesso privilegiado a crédito mais barato, conseguem subsídios se as coisas correm mal e muitos outros incentivos, que efectivamente talvez sejam o total dos seus lucros. A impressa económica tentou fazer uma estimativa deste número e previram uns $80 biliões por ano. Isso não tem nada que ver com capitalismo.
É o mesmo em muitos outros sectores da economia. Portanto a questão essencial é, vai este sistema de capitalismo estatal, que é o que é, sobreviver ao uso contínuo de energia fóssil? E a resposta a isso é claro que não. Neste momento há um forte consenso entre cientistas que dizem que a grande maioria das restantes energias fósseis, talvez 80 porcento, têm que ser deixadas no solo se esperamos evitar um aumento de temperatura que seria bastante letal. E não está a acontecer. Os humanos podem estar a destruir as suas oportunidades de uma sobrevivência decente. Não irá matar toda a gente, mas iria mudar o mundo de uma forma drástica.