No final de setembro de 2014, quase 200 famílias foram despejadas do prédio que ocupavam na Rua São João, em São Paulo. O imóvel, um antigo hotel, estava abandonado há mais de 15 anos. A violência policial marcou a reintegração de posse do local. Mas qual o papel do Poder Judiciário frente a essas violações de direitos?
Esse questionamento marcou o debate ‘A Reforma Urbana e o Poder Judiciário’, na última quinta-feira (24). A atividade, realizada na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, foi promovida pelo Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU), que está em Curitiba para reunião.
Reforma Urbana Poder Judiciário“Para onde vão as famílias que são despejadas? Será que na hora de conceder a liminar de reintegração de posse o juiz reflete que nem todas as pessoas têm um lugar para ir?”, provou Luana Xavier Coelho, advogada popular da Terra de Direitos e integrante da coordenação do FNRU. “É preciso pensar que os conflitos coletivos, que impactam tanta gente, acabam ficando na mão de apenas uma pessoa”, aponta.
Esse fato é ainda mais grave haja vista que o perfil dos juízes não representa a população brasileira, como aponta Luciana Pivato, advogada popular da Terra de Direitos e integrante da Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDh). De acordo com dados do Censo do Judiciário de 2014, organizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), os juízes brasileiros são predominantemente brancos e homens. Dos 17 mil juízes em atividade, apenas 36% são mulheres. Enquanto pretos e pardos representam 50% da população brasileira segundo dados da Pesquisa Nacional de Amostras de Domicílio, apenas 1,4% dos juízes são pretos e 14% pardos.
Aqueles que tomam as decisões que impactam na vida das pessoas nem sempre representam o grupo para qual estão julgando. “O Sistema de Justiça, como um todo, precisa ser democratizado. O Judiciário é dentre todos os Poderes o mais fechado.”, avalia Pivato. “Não existem instrumentos de participação social”.
Interesses diversos
O Presidente da Associação Juízes para a Democracia, André Bezerra acredita que o Poder Judiciário deve ser também responsabilizado pelas violações de direitos que acontecem nos conflitos urbanos. A reforma urbana passa também por uma mudança nesse poder. O juiz explica que os déficits do Judiciário se dão em razão de sua estrutura, composição e organização, baseadas no modelo norte-americano e pensado, em alguns aspectos, durante momento político brasileiro muito diferente do atual. A Lei Orgânica da Magistratura (Loman), lei que rege o funcionamento do Poder Judiciário do Brasil, por exemplo, foi criada durante época da Ditadura Militar. Por isso, torna a carreira do magistrado verticalizada.
“Como pressionar um agente público que detém grande poder político?”, problematiza. Para o presidente da AJD, é preciso refletir também sobre o ensino jurídico no Brasil, baseado no “mais distorcido positivismo filosófico”, que acaba por reforçar o poder hegemônico. O atendimento dos casos dá-se para atender números, mas não para resolver conflitos coletivos de caráter estrutural.
Reforma Urbana Poder Judiciário
Para Nelson Saule Junior, advogado do Instituto Polis e membro da coordenação do FNRU, o Poder Judiciário é uma instituição que, em sua estrutura atual, atende dois interesses básicos: 1) enquanto instrumento do Estado, lida com conflitos e tensões sociais como aparelho repressor; 2) serve como proteção de patrimônio (bens), fornecendo segurança jurídica para contratos voltados aos direitos econômicos.
E são esses interesses que estão no caminho para uma efetiva reforma urbana. “Para o Poder Judiciário, direito à moradia é direito a propriedade”, explica o advogado.
Participação social no Judiciário
Mas nesse cenário, é possível garantir que o Poder Judiciário atenda os interesses da população? Para os advogados, é preciso pensar em formas de garantir a participação social dentro desse Poder.
Segundo Luciana Pivato, a luta é para que haja implementação de mecanismos de diálogo, controle e participação social no Poder Judiciário, como através da criação de ouvidorias externas.
Ela também aponta a necessidade de haver transparência e participação popular no processo de indicação de ministros do Supremo Tribunal Federal. A JusDh tem apontado a formulação de critérios como cor e gênero a serem observados nessa indicação.
Além disso, a ampliação desse debate para fora das esferas do Judiciário se mostra fundamental. O fortalecimento dos movimentos populares e a articulação com a sociedade civil organizada são mais do que nunca necessárias na luta pela democratização desse poder. “É preciso que os movimentos sociais deixem de ser invisíveis para o judiciário”, aponta o presidente da AJD.