Rodnei Jericó, do Geledés e Instituto da Mulher Negra
Rodrigo Dantas Valverde, do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos
Em setembro de 2014, o Judiciário paulista determinou a reintegração de posse imediata do Hotel Aquarius com uso de força policial. O imóvel, situado na rua São João, nº 601, conhecido como “espigão” estava abandonado há mais de 15 anos. A ocupação das famílias sem-teto completava quase um ano no local. De forma contrária à norma processual – de que cabe à parte autora arcar com as custas –, a juíza atribuiu à Prefeitura de São Paulo a responsabilidade de fornecer os meios para o cumprimento da ordem, como caminhões e depósito. Em seguida, foi rejeitado o pedido de suspensão da operação e intimação da prefeitura para cadastramento e atendimento das famílias em projeto habitacional futuro ou pagamento de auxílio-moradia de R$350,00 aos mais vulneráveis.
O caso chamou atenção pelo contingente policial desproporcional e a violência dos agentes para proceder à retirada dos ocupantes, sem o devido oferecimento de alguma alternativa. O procedimento desastroso resultou em 80 detidos – entre crianças, adolescentes, pessoas com deficiência e idosos – e a destruição de todos os pertences das famílias. Essa é apenas uma ilustração do tratamento dispensado aos conflitos fundiários pelo Judiciário e revela a postura crescente entre os juízes de se retirar do papel de mediadores na busca por uma solução pacífica.
Um dia antes do confronto na rua São João, foi veiculada a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux reconhecendo o direito de auxílio-moradia de R$4.300,00 aos juízes federais, o que foi ampliado posteriormente aos demais membros do sistema de justiça. A disparidade entre os valores é flagrante, mas para além da desigualdade econômica que se coloca como um abismo entre o intérprete do direito e os sujeitos diretamente atingidos pela sua decisão, cabe refletir sobre o lugar dos juízes no contexto de violação do direito à moradia.
A pergunta que fica é como um magistrado – que recebe apenas de auxílio-moradia um valor acima do rendimento familiar de grande parte da população – pode julgar casos que envolvem graves violações de direitos, sobretudo do direito à cidade e à terra, dada a existência de centenas de casos de conflitos fundiários em que a miopia de certos juízes defere tutela antecipada sem ouvir as famílias moradoras e sem resolver a lide à luz do pressuposto de que solucionar a questão não é despejar à própria sorte pessoas sem acesso à moradia digna.
O privilégio e o agravamento da distância da magistratura da realidade concreta
A construção de um Judiciário democrático perpassa pela necessidade de crítica da posição privilegiada de que goza a Magistratura dentro da sociedade. Quando se confronta a situação e a posição social em que se encontra em relação à população que figura como réu em ações de despejo e reintegração de posse, percebe-se que o juiz parte de uma condição material que inviabiliza o exercício mínimo de alteridade que deveria ter.
Os trabalhadores com carteira assinada só recebem auxílio-moradia esporadicamente, nas hipóteses de mudança temporária de domicílio por interesse da empresa. Os servidores públicos em geral também só o recebem em hipótese de mudança de domicílio, por meio de reembolso e se cumpridos outros requisitos (arts. 60-A a 60-E da Lei 8112/90). Nossos juízes, no entanto, recebem seu “auxílio” sem nenhuma contrapartida. Mesmo que estejam em sua cidade de origem e mesmo que possuam casa própria, receberão os mesmos R$ 4.300,00. Ou seja, há uma declaração de que os juízes, mesmo com um piso salarial médio de R$ 20 mil merecem ganhar um alto valor a mais para custear suas despesas com moradia. Valor acima, inclusive, do salário mínimo necessário aferido pelo DIEESE para abril de 2015, de R$ 3.251,61, bastante para sustentar com dignidade, segundo os parâmetros constitucionais, uma família de dois adultos e duas crianças.
Frise-se, o direito ao auxílio-moradia foi garantido pela própria classe dos magistrados (ministro Luiz Fux, do STF, por meio de liminar em setembro passado). Constroem-se assim juízes que recebem o que não precisam, tornam-se uma casta dentro do funcionalismo público e, incrivelmente, se recusam veementemente a determinar ao poder público que se mova para, ao menos, atenuar os graves problemas que temos na área de habitação.
São conhecidas as inúmeras decisões de nossos juízes que determinam ao poder público que conceda a quem necessita remédios ou tratamentos médicos caros, que, sem a ação judicial, não são ofertados sob a desculpa de não haver dinheiro para isso. O Judiciário, nesses casos, enaltece corretamente o direito à vida, driblando questões orçamentárias do Poder Executivo e determinando o fornecimento do tratamento adequado. Por que não se faz isso no que concerne ao direito à moradia? Por que, na área de moradia, os juízes se abstêm, dizendo que a questão habitacional é competência do Poder Executivo (municípios, estados, União) e nada podem fazer para intervir? Teriam se tornado insensíveis à questão, dada a situação privilegiada na qual se encontram com seu auxílio? Ou, mais grave, estariam deixando de incomodar o Poder Executivo em uma troca política, em defesa de interesses corporativos?
Além das críticas, o momento demanda mobilizações por soluções. Nessa grave situação que atravessamos, de cortes orçamentários nas mais diversas áreas e com políticas habitacionais débeis, é urgente que denunciemos à alta voz o absurdo que é o auxílio-moradia aos juízes, ao mesmo tempo em que reforçamos demandas por medidas que aproximem o juiz da realidade que estão julgando: um exemplo seria o projeto para a criação de Varas Especializadas em Conflitos Fundiários, em vagaroso trâmite no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Cultivemos assim a esperança de que, através de mecanismos como esse, surjam juízes que vejam além do antigo Código Civil, e que incorporem noções do Estatuto da Cidade, da Constituição Federal, e, sobretudo, de humanidade e empatia em suas decisões.
Agregado à situação dos conflitos fundiários, e se há ou não moralidade de decisões inaudita altera pars, calcadas em realidade completamente distinta e totalmente dissociada da realidade da população brasileira, ainda há que demonstrar de forma cristalina a quantidade de recursos extras salário que nossos magistrados percebem. Entre eles estão:auxílio-moradia de R$ 4.377,73 mensais; bolsa-escola no valor de R$ 7.250,00 no Estado do Rio de Janeiro para financiar escola dos filhos desde os 8 até os 24 anos de idade,nos demais Estados se percebe algo menos, mas não menos aviltante; auxílio-creche R$ 1.010,00, auxílio-alimentação, auxílio-saúde, auxílio-transporte, abono permanência, gratificação de natal e outras gratificações extras, como exemplo insalubridade e indenização de férias.
Importante ainda destacar que todas essas benesses em efeito cascata se estendem a membros do Ministério Público e outros servidores públicos do Judiciário brasileiro.
Contabilizando salários, gratificações e benefícios aportados aos rendimentos dos magistrados, chegamos emalguns casos ao escabroso valor de R$ 150.000,00 mensais.
Há uma frase de um juiz sueco, GorenLamberts que diz: “Uma das consequências da perda de respeito do cidadão pelos juízes é que as pessoas também acabam perdendo o respeito pela lei”.