Após três dias de discussões, o Encontro Mundial dos Movimentos Populares elaborou seu documento final. Participaram do evento cerca de 1500 pessoas de organizações de 40 países. Os eixos dos debates, que ocorreram entre os dias 7 e 9 de julhos, se deram em torno dos “3Ts”: Terra, Teto e Trabalho, mote que tem sido utilizado pelo papa Francisco como síntese dos direitos básicos pelos quais os movimentos sociais devem lutar.
Francisco participou do encontro na quinta-feira (9). Ao falar aos participantes, pediu perserverança em seu compromisso com a luta por mudanças estruturais e afirmou serem urgentes transformações profundas. Foi a segunda vez que o papa se encontrou com movimentos populares, a primeira tendo sido no Vaticano.
As resoluções finais do Encontro, batizadas de Carta de Santa Cruz, defendemm, na mesma linha de Francisco, a superação de um “modelo social, político, econômico e cultural onde mercado e o dinheiro se converteram nos reguladores das relações humanas em todos os níveis”. Além disso, a Carta também aborda a preocupação com a degradação ambiental.
Confira abaixo a íntegra:
Carta de Santa Cruz
As organizações sociais reunidas no Segundo Encontro Mundial de Movimentos Populares, em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, durante os dias 7, 8 e 9 de julho de 2015, concordamos com o papa Francisco em que as problemáticas social e ambiental emergem como duas faces da mesma moeda. Um sistema incapaz de garantir terra, teto e trabalho para todos, que mina a paz entre as pessoas e ameaça a própria subsistência da Mãe Terra, não pode seguir regendo o destino do planeta.
Devemos superar um modelo social, político, econômico e cultural onde mercado e o dinheiro se converteram nos reguladores das relações humanas em todos os níveis.
Nosso grito, o grito dos mais excluídos e marginalizados, obriga que os poderosos compreendam que não se pode seguir dessa forma. Os pobres do mundo se levantaram contra a exclusão social que sofrem cotidianamente. Não queremos explorar, nem sermos explorados. Não queremos excluir, nem sermos excluídos. Queremos construir um modo de vida no qual a dignidade se alce por cima de todas as coisas.
Por isso, nos comprometemos a:
1. Impulsionar e aprofundar o processo de mudança
Reafirmamos nosso compromisso com os processos de transformação e libertação como resultado da ação dos povos organizados, que a partir de suas memória coletiva tomam a história em suas mãos e decidem transformá-la, para dar vida às esperanças e às utopias que nos convocam a revolucionas as estruturas mais profundas de opressão, dominação, colonização e exploração.
2 Viver bem, em harmonia com a Mãe Terra
Seguiremos lutando para defender e proteger a Mãe Terra, promovendo a “ecologia integral” de que fala o papa Francisco. Somos fiéis a filosofia ancestral do “bem viver”, nova ordem de vida que propõe harmonia e equilíbrio nas relações entre os seres humanos e entre estes e a natureza.
A terra não nos pertence, nós pertencemos à terra. Devemos dela cuidar e trabalhá-la em benefício de todos. Queremos leis ambientais em todos os países em função do cuidado dos bens comuns.
Exigimos a reparação histórica e um marco jurídico que resguarde os direitos dos povos indígenas em nível nacional e internacional, promovendo um diálogo sincero a fim de superar os diversos e múltiplos conflitos que atravessam os povos indígenas, originários, camponeses e afrodescendentes.
3. Defender o trabalho digno
Nos comprometemos a lutar na defesa do trabalho como direito humano. Pela criação de fontes de trabalho digno, pelo desenho e implementação de políticas que restituam todos os direitos trabalhistas eliminados pelo capitalismo neoliberal, tais como os sistemas de seguridade social, a aposentadoria e o direito de sindicalização.
Rechaçamos a precarização, a terceirização e buscamos que se supere a informalidade através da inclusão, nunca com perseguição ou repressão.
Também levantamos a causa dos migrantes, deslocados e refugiados. Instamos aos governos dos países ricos a que derroguem todas normas que promovem tratamento discriminatório contra eles e que estabeleçam formas de regulação que eliminem o trabalho escravo, o tráfico de pessoas e a exploração infantil.
Impulsionaremos formas alternativas de economia, tanto em áreas urbanas como em zonas rurais. Queremos uma economia popular e social comunitária que resguarde a vida das comunidades e que prevaleça a solidariedade acima do lucro. Para isso é necessário que os governos fortaleçam os esforços que emergem das bases sociais.
4. Melhorar nossos bairros e construir moradias dignas
Denunciamos a especulação e a mercantilização dos terrenos e bens urbanos. Rechaçamos os despejos forçados, o êxodo e o crescimento dos bairros marginalizados. Rechaçamos qualquer tipo de perseguição judicial contra aqueles que lutam por uma casa para sua família, porque entendemos a moradia como um direito humano básico, o qual deve ter caráter universal.
Exigimos políticas públicas participativas que garantam o direito à moradia, a integração urbana de bairros marginalizados e o acesso integral ao habitat para edificar casas com segurança e dignidade.
5. Defender a Terra e a soberania alimentar
Promovemos a reforma agrária integral para distribuir a terra de maneira justa e equitativa. Chamamos a atenção dos povos para o surgimento de novas formas de acumulação e especulação da terra e do território como mercadorias, vinculadas ao agronegócio, que promove a monocultura destruindo a biodiversidade, consumindo e contaminando a água, deslocando populações camponesas e utilizando agrotóxicos que contaminam os alimentos.
Reafirmamos nossa luta pela eliminação definitiva da fome, pela defesa da soberania alimentar e pela produção de alimentos saudáveis. Também rechaçamos enfaticamente a propriedade privada de sementes por grandes grupos agroindustriais, assim como a introdução de produtos trangênicos substituindo aos nativos, pois destroem a reprodução da vida e da biodiversidade, criam dependência alimentar e causam efeitos irreversíveis sobre a saúde humano e o meio ambiente. Nesse sentido, reafirmamos a defesa dos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas em relação à agricultura sustentável.
6. Construir a paz e a cultura do encontro
Nos comprometemos, a partir da vocação pacífica de nossos povos a intensificar as ações coletivas que garantam a paz entre todas as pessoas, povos, religiões, etnias e culturas.
Reafirmamos a pluralidade de nossas identidades culturais e tradicionais que devem conviver harmoniosamente sem que umas se sobreponhas a outras. Nos levantamos contra a discriminação de nossa luta, pois estão criminalizando nossos costumes.
Condenamos qualquer tipo de agressão militar e nos mobiliamos pelo cessar imediato de todas as guerras e ações desestabilizadoras ou golpes de Estado, que atentam contra a democracia e a vontade dos povos livres. Rechaçamos o imperialismo e as novas formas de colonialismo, sejam militares, financeiras ou midiáticas. Nos pronunciamos contra a impunidade dos poderosos e a favor da liberdade dos lutadores sociais.
7. Combater a discriminação
Nos comprometemos a lutar contra qualquer forma de discriminação entre os seres humanos, seja por diferenças étnicas, cor de pele, gênero, origem, idade, religião ou orientação sexual. Todas e todos, mulheres e homem, devemos ter os mesmos direitos. Condenamos o machismo, qualquer forma de violência contra a mulher, em particular os feminicídios, e gritamos: Nenhuma a menos!
8. Promover a liberdade de expressão
Promovemos o desenvolvimento de meios de comunicação alternativos, populares e comunitários, frente ao avanço dos monopólios midiáticos que ocultam a verdade. O acesso à informação e a liberdade de expressão são direitos dos povos e fundamento de qualquer sociedade que se pretenda democrática, livre e soberana.
O protesto é também um forma legítima de expressão popular. É um direito e aqueles que o exercem não devem ser perseguidos.
9. Colocar a ciência e a tecnologia a serviço dos povos
Nos comprometemos a lutar para que a ciência e o conhecimento sejam utilizados a serviço do bem-estar dos povos. Ciência e conhecimento são conquistas de toda a humanidade e não podem estar a serviço do lucro, exploração, manipulação ou acumulação de riquezas por parte de alguns grupos. Persuadimos a que as universidades se encham de povo e seus conhecimentos sejam orientados a resolver os problemas estruturais mais que a gerar riquezas para as grandes corporações. Deve-se denunciar e controlar as multinacionais farmacêuticas que, por um lado, lucram com a expropriação de conhecimentos milenares dos povos originários e, por outro, especulam e geram lucros com a saúde de milhões de pessoas, colocando o negócio na frente da vida.
10. Rechaçamos o consumismo e defendemos a solidariedade como projeto de vida
Defendemos a solidariedade como projeto de vida pessoal e coletivo. Nos comprometemos a lutar contra o individualismo, a ambição, a inveja e a ganância que se aninham em nossas sociedade e muitas vezes em nós mesmos. Trabalharemos incansavelmente para erradicar o consumismo e a cultura do desperdício.
Seguiremos trabalhando para construir pontes entre os povos, que nos permitam derrubar os muros da exclusão e da exploração!