HBS Brasil entrevista José Antônio Moroni sobre o Projeto de Lei de Iniciativa Popular da Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas
R$ 522 milhões foram doados por 19 empresas para financiamento das campanhas eleitorais de 2014, o que significa metade dos gastos das campanhas, de acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral, analisados pelo jornal Estado de São Paulo, em setembro. Sem dúvida esses atores influenciam diretamente nos processos decisórios da política brasileira, e com os escândalos da Lava Jato as mudanças no financiamento das campanhas estão novamente na ordem do dia das discussões do Congresso Nacional. Ao mesmo tempo, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Conferência Nacional dos Bispos dos Bispos do Brasil (CNBB) e outras 102 organizações estão em campanha para coletar assinaturas e encaminhar ao Congresso um Projeto de Lei de Iniciativa Popular que busca, além de afastar das eleições o financiamento de empresas, melhorar o sistema eleitoral, fortalecer a inclusão política das mulheres, dos grupos sub-representados e aperfeiçoar a democracia direta.
Utilizando a mesma estratégia que foi usada para aprovação da Lei da Ficha Limpa, as adesões já chegam à casa de 600.000 assinaturas e até domingo (29) acontece a Semana Nacional de Mobilização pela Reforma Política, já que a meta é entregar o projeto ao Congresso até meados de abril. Para entender a campanha e a proposta, a Fundação Heinrich Böll Brasil conversou com José Antônio Moroni, diretor da executiva nacional da ABONG (Associação Brasileira de ONGs) e membro do colegiado de gestão do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), uma das organizações da Coalização Reforma Política Democrática – Eleições Limpas.
HBS Brasil: Por que o Brasil precisa de uma Reforma Política?
Moroni: A agenda de reforma do sistema político está sendo construída por vários movimentos desde 2013. Parte de uma avaliação do nosso sistema político, não só do aspecto eleitoral, mas de todo o sistema decisório. Temos uma democracia que segundo o professor Fábio Comparato é uma democracia sem povo. Ou seja, ela não está alicerçada na soberania popular. Temos poucos mecanismos de expressão da soberania popular. Basicamente só o processo eleitoral. Os outros instrumentos da expressão da soberania popular como plebiscito, referendo, iniciativa popular, são pouco usados por conta da própria regulamentação que foi feita na Constituição. Precisamos de uma reforma no sistema político porque precisamos colocar povo na nossa democracia. Se a nossa democracia não está alicerçada na soberania popular, então onde ela está alicerçada? No poder econômico. Temos que rever toda a questão do financiamento privado por empresas nas campanhas, nos partidos. Isso é um problema sério, porque além de desvirtuar a vontade popular expressada nas urnas coloca uma questão de ser um instrumento de corrupção, como nós estamos vendo. Cada vez mais as campanhas estão caríssimas e quem tem mais condições de captar recursos com as empresas tem uma vantagem enorme no processo eleitoral, de ganhar as eleições. Então tem uma questão democrática. Precisamos tirar o peso do poder econômico do processo eleitoral e das decisões públicas. E a outra questão para nós é da sub-representação dos vários segmentos da sociedade nos espaços de poder. Pegando o exemplo da Câmara dos Deputados, não chegamos a 10 por cento de mulheres. Mais ou menos o mesmo número para a população negra. Nenhum representante dos povos indígenas. Então são esses três fatores: pouca expressão da soberania popular; o peso que o poder econômico tem nas decisões políticas; e os vários grupos que estão sub-representados nos espaços de poder.
Ação da Semana Nacional de Mobilização pela Reforma Política. Photo: Marcelo Camargo. Esta imagem está sobre licença de Creative Commons License.HBS Brasil: Entre os pontos da campanha desta iniciativa popular estão as eleições proporcionais em dois turnos. Você pode comentar isso?
Moroni: A questão da eleição em dois turnos é primeiro uma defesa nossa do voto proporcional, portanto não ao voto distrital [cada estado é dividido em vários distritos e cada distrito elege somente um representante] ou distritão [cada estado, em vez de ser dividido em distritos, seria um grande distrito. Seriam eleitos os candidatos mais votados]. Porque só através do voto proporcional aqueles grupos sub-representados nos espaços de poder podem estar melhor representados. No voto distrital, que só elege uma pessoa no distrito, possivelmente seria muito difícil, quase impossível, eleger uma mulher, negra, pobre e lésbica. Por isso fazemos a defesa do voto proporcional. E dentro do voto proporcional, a proposta dos dois turnos.Ao mesmo tempo queremos fortalecer os partidos e que sejam realmente partidos, portanto tenham um programa e disputem as eleições em cima de um programa partidário. Nós reconhecemos que a nossa cultura política é ainda muito alicerçada no individualismo. As pessoas querem votar na pessoa. Então estamos propondo: no primeiro turno você vota no partido, e o partido apresenta uma lista das suas candidaturas e esse primeiro turno define quantas cadeiras esse partido vai ter no parlamento. Por exemplo, o partido branco vai ter cinco cadeiras. No segundo turno vão os dez primeiros [nomes] dessa lista. No segundo turno há de se escolher entre esses dez. Nessa lista tem que ter a paridade de sexos. Se ela começar com homem, o segundo tem que ser mulher, ou vice-versa.
HBS Brasil: Como esta proposta de reforma política poderia aumentar o controle social e a transparência nos processos políticos?
Moroni: Criamos vários instrumentos dentro do projeto que favorece essa questão do controle social, não só do processo eleitoral – dos gastos, financiamento – mas também do próprio exercício do mandato. No que trata da questão do controle social, cria-se no âmbito da justiça eleitoral um conselho que deve ser formado pela Justiça Eleitoral, pelos partidos e por representantes da sociedade civil em mesmo pé de igualdade para fiscalizar tanto a elaboração das normas, do regimento do processo eleitoral, quanto os gastos das campanhas. Porque hoje são publicados os gastos na internet, mas não é em tempo real. Por exemplo, você só vai saber quem financiou realmente uma determinada candidatura depois que já passou a eleição. E essa informação é fundamental no atual sistema para definir seu voto. Então esse Conselho teria a função de fiscalizar todo o processo eleitoral, assim como as prestações de contas, tudo isso. E outra questão é que no nosso projeto, como é uma iniciativa popular, não podemos propor mudanças constitucionais. Por exemplo, nós defendemos a possibilidade da revogação de mandatos, mas isso precisaria de uma mudança constitucional. O que fizemos, então? Nós estamos propondo no projeto que o cidadão-eleitor é parte interessada para pedir a cassação de um parlamentar por decoro parlamentar, ou por perda do mandato etc. Um exemplo: hoje tem uma lei que define que o mandato é do partido. Se um parlamentar sair do partido sem uma justificativa (depois de uma mudança ideológica do partido, ou criação de um novo partido) ele perde o mandato, mas para ele perder o mandato é preciso de um processo judicial. E esse processo judicial só pode ser iniciado se o partido de onde ele saiu solicitar. Então o que os partidos fazem? Eles negociam entre eles e ninguém pede a cassação de ninguém. A base do mandato é o mandato popular. Então [hoje] o eleitor que votou naquele parlamentar não tem nenhum poder de solicitar ao Ministério Público, por exemplo, a perda de mandato daquele parlamentar. Então [a proposta da Iniciativa Popular] possibilita que o eleitor, dentro da ideia de soberania popular, sendo parte interessada pode pedir também a cassação de mandato, por exemplo, por mudança de partido.
HBS Brasil: Falando agora do quadro político atual, temos nas discussões sobre Reforma Política, o projeto de lei de Iniciativa Popular, uma proposta do PMDB, outra do PT e muitas outras PECS que estão pedindo mudanças no sistema político. Foi publicado há pouco tempo pela imprensa que o presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB) afirmou que irá colocar em votação uma proposta de Reforma Política em maio com ou sem o relatório da comissão especial que discute o tema. Qual é a proposta que o Cunha se refere? Quais são as diferenças entre essas propostas?
Moroni: Essa Comissão que o Eduardo Cunha formou no início do mandato tem como presidente o Rodrigo Maia [(DEM)] e como relator o deputado Marcelo [Castro], do PMDB do Piauí. A origem dela é um relatório de uma outra Comissão do ano passado cujo relator foi o deputado do PT [Cândido] Vaccarezza, de São Paulo. É o que chamamos da antirreforma política, porque, na nossa avaliação, acentua ou radicaliza todas as mazelas do nosso atual sistema. Por exemplo, constitucionaliza o financiamento por empresas; cria o voto distrital misto – quer dizer, os grupos sub-representados dificilmente estariam em condições de disputar o processo eleitoral. Facilita também a troca de partidos. É nesse relatório que a Comissão está trabalhando. O que o Cunha fala que irá colocar em votação até o final de maio é o relatório dessa Comissão. E o que ele diz: caso a Comissão não vote um relatório ele vai avocar do plenário a votação do relatório. Daí ele nomeia um relator em plenário e esse relator apresenta uma proposta de Reforma Política. Essa proposta que está no relatório do Vaccarezza tem muito a ver com o que o PMDB está defendendo, que é o financiamento privado, o “distritão” etc. Então é isso o que o PMBD e o Cunha estão desenhando.
HBS Brasil: Isso é diferente da proposta do PT que quer acabar com o financiamento privado das campanhas?
Moroni: O PT tem uma iniciativa popular que coloca o seguinte: financiamento público exclusivo, listas fechadas, com participação das mulheres – não é claro se é paridade ou não. Essa é a iniciativa popular do PT, mais a questão da Constituinte. O que tem de diferente entre a proposta do PT e da Iniciativa Popular? Nós falamos da questão do financiamento democrático que tem como base o financiamento público, mas possibilita a contribuição de pessoas físicas em até R$ 700,00 o teto. Não é público exclusivo. E também tem um teto para o financiamento público, que pelos cálculos que a gente fez, ficaria em torno de quatro reais por eleitor/eleitora. Defendemos também a eleição proporcional, não de lista fechada, mas essa de dois turnos, como eu expliquei antes.
HSB Brasil: E quais serão os próximos passos se forem coletadas as 1,5 milhão de assinaturas? Com um Congresso no qual boa parte dos parlamentares é contra as propostas deste projeto de lei, como você imagina que será o processo de aprovação desta lei?
Moroni: Houve uma mudança na conjuntura do parlamento bastante significativa em relação ao tema da Reforma Política. Se até agora a estratégia do parlamento era não votar uma Reforma Política, agora é por votar. Agora eles querem votar de qualquer jeito. Mas no interior do parlamento não há uma maioria significativa para aprovar uma determinada Reforma Política. Então quem defende o financiamento privado não tem uma maioria significativa e quem defende o financiamento público também não tem. Além disso, o sujeito político que devia estar dizendo que tipo de sistema político quer é o povo. Afinal de contas, todo o poder emana do povo, então o povo tem que dizer que quer esta institucionalidade e não aquela, que quer estas regras eleitorais e não aquelas. Associado a tudo isso, tanto a questão conjuntural do parlamento quanto uma concepção de quem tem o poder realmente, dizemos que qualquer coisa só será aprovada se houver muita mobilização e pressão popular. Sem essa pressão, sem mobilização, não se vai aprovar nada.
Vigília cívica em favor da Reforma Política. Photo: Valter Campanato. Esta imagem está sobre licença de Creative Commons License.HBS Brasil: As manifestações do dia 15 enfraquecem ou fortalecem as discussões da Reforma Política?
Moroni: Eu acho que a manifestação do dia 15 não colocou em questão, em sua agenda, a Reforma Política porque se esta manifestação tivesse colocado na agenda a Reforma Política ela desbancaria as duas outras bandeiras principais: combate à corrupção e o próprio impeachment da presidenta Dilma. Porque se eu coloco na agenda a Reforma Política, eu estaria dizendo: olha isso que está acontecendo é fruto de um sistema político, portanto nós temos que enfrentar isso que não é uma questão de um presidente ou de outro e não é uma questão apenas da corrupção. Corrupção é fruto de um sistema que está aí. Então por isso que eu avalio que os grupos que estavam organizando a manifestação do dia 15 não iriam colocar a Reforma Política porque perderia as outras duas bandeiras deles que era a questão do combate à corrupção, de uma maneira muito genérica, como se fosse uma coisa que o próprio sistema não levasse a isso, e a questão do impeachment da presidenta. Então eu acho que as manifestações do dia 15 não colocaram em pauta por causa disso, ao contrário do dia 13 que tinha um eixo da democracia e da Reforma Política.