Duas das principais virtudes políticas são a prudência e a moderação. A prudência significa uma capacidade de julgamento que remeta à previsão e segurança da ação política. A prudência não é sinônimo de cautela e nem uma relutância em tomar riscos. A prudência é tomar a clareza das consequências para o político agir em segurança. A moderação, por outro lado, é uma virtude que coíbe os excessos. É uma virtude fundamental para se constituir as instituições políticas, porque cria uma base segura para a ação política.
No atual contexto da democracia brasileira, parece-nos que caminhamos para uma quadratura mais difícil, com a elevação do conflito político. A convergência desse conflito é uma mistura estranha e amorfa entre um forte desejo de mudança, no plano da sociedade, com um vazio de lideranças políticas capazes de apontar e vislumbrar um futuro. Quando se misturam desejo de mudança e vazio político, surge um profundo voluntarismo político que a tudo e a todos abarca. Sem um desenho claro do que se quer mudar e porque mudar, passamos a lidar com um projeto estranho e difícil de reforma política.
A vontade política nada mais é do que confiar em uma capacidade de liderança pessoal, em que o político se imbua dessa vontade amorfa e sem objetivos claros. A vontade política é imprudente e nada moderada. A vontade política é problemática em uma democracia. Ela é autoritária e cínica. Autoritária porque se baseia em um processo de condução pessoal do político, valendo a sua vontade e determinação para perseguir um fim. E cínica porque a tal vontade política se baseia num processo de delegação sem que os diversos atores envolvidos estabeleçam um laço de responsabilidade coletiva com este fim. Ou seja, a vontade política congrega um desejo popular mal formulado com um líder que o representa, não importando se este desejo é bom ou ruim. Importa apenas a vontade. A partir do momento em que a liderança política afirma esta vontade, o problema não é mais dos atores envolvidos, mas exclusivamente da personalidade que a expressa.
A vontade política talvez seja o que há de pior na cultura política brasileira. Ela não cria envolvimento da sociedade, ela não abarca instituições, ela veta o diálogo e promove o mais puro cinismo dos cidadãos. Vontade política não é sinônimo de liderança. O nosso contexto de um escasso debate sobre a reforma política nos jogou nesse mais puro voluntarismo. O Brasil não precisa disso. Associamos um desejo de mudança sem ter clareza para onde se quer ir. No contexto de vazio de lideranças e forte desejo de mudança, a imprudência e a ausência de moderação podem promover mudanças institucionais desastrosas.
A presidente Dilma Rousseff afirmou nas últimas eleições que proporia, pessoalmente, a reforma política, por meio de plebiscito. Só esqueceu que quem legisla e convoca plebiscito é o Congresso Nacional. Não combinou com os russos. Não dá para fazer jogada ensaiada apenas por um ato de vontade política. Sem explicar o que se quer com esta tal vontade, a possibilidade de diálogo está vetada. E foi isso que ocorreu. A ausência de diálogo levou à sua derrota no Congresso Nacional e à possibilidade de paralisia. A ação voluntarista, sem diálogo, conduziu a isto.
E eis que, num ato de imoderação, agora temos a proposta do atual presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, na mesa. O risco, de tamanha imoderação e imprudência política é criarmos um Frankenstein. Pela proposta que Eduardo Cunha promete votar em breve na Câmara, será mantido o sistema proporcional nas eleições para os legislativos, mas em distritos menores. Ou seja, misturam-se o sistema proporcional com o sistema distrital. Além disso, serão criadas as federações partidárias, por meio das quais os partidos serão obrigados a permanecer juntos, atuando em bloco parlamentar, até o fim da legislatura para a qual elegeram representantes em coligações. Ponto importante desta proposta é o fim da reeleição para cargos do Poder Executivo e o fim do voto obrigatório. Outros pontos da proposta são o teto de despesas para campanhas eleitorais e a possibilidade de os partidos optarem pelo sistema de financiamento de campanhas: se público, se privado ou se misto. E, por fim, a desastrosa reforma política propõe maior facilidade para a criação de partidos políticos. A proposta reduz o mínimo de assinaturas necessárias para criar um partido político, passando de 0,5% para 0,25% de eleitores. E coloca a possibilidade de um partido ser criado sem apoio popular, bastando apenas a concordância de 5% dos deputados, ou seja, 26 deputados.
Nada poderia ser pior para a sociedade brasileira. Com esta proposta de reforma política, serão reforçados o personalismo, o fisiologismo e a ausência de accountability. Redesenhadas as instituições assim, a reforma política nos conduzirá à exclusão eleitoral, com o fim do voto obrigatório, e à ausência de projetos de longo prazo, com o fim da reeleição. Perderão com isso a democracia e a sociedade brasileira. Propostas de reforma política que vinham sendo discutidas na sociedade, como a encampada pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral e OAB, são simplesmente desprezadas.
A tal vontade política é o que há de mais nocivo a uma cultura política democrática. Ela nos conduz ao reforço do personalismo, comprometendo fortemente a institucionalização da democracia. Sem isso, não faz sentido pensar no interesse público e na publicidade dos interesses. Com a vontade política, a solução dos problemas coletivos está sendo construída no interior dos gabinetes, sem que disso resulte avanço no que diz respeito às futuras gerações. E este personalismo, que cria impedimentos para a institucionalização da democracia, resulta em um comportamento da sociedade que desconfia fortemente em suas instituições. Lamentável, senão triste. Os problemas serão aprofundados com estas mudanças.
*Fernando Filgueiras é diretor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG e professor do Departamento de Ciência Política.