Irá o Estado punir as empreiteiras?

*Ruben Bauer Naveira

O Brasil vive um embate inédito e definidor entre cidadania e patrimonialismo, lutando uma para desabrochar o outro para permanecer. Em tese, o Estado tem duas alternativas: ou declara as empreiteiras inidôneas ou as livra e as obriga a agir doravante de acordo com a idoneidade ratificada.

Diga-se, em primeiro lugar, que o Estado brasileiro é fruto histórico de um matrimônio indissolúvel entre o poder político-administrativo e o poder econômico, e sua razão de existir é atender antes de tudo a tais interesses particulares, não aos interesses maiores da sociedade.

Tal condição não é exclusiva do Brasil, afinal não existe no mundo nenhum Estado que não esteja sob crítica da sua respectiva sociedade. Mas o Estado brasileiro é sui generis, um tipo singular, segundo a tese que Raymundo Faoro nos legou em seu clássico Os Donos do Poder.

Vale uma digressão para apresentar o argumento de Faoro: no feudalismo, a classe dominante é tipicamente composta pelo rei, pelos senhores feudais e pelo clero, com tensões entre si na partilha do poder. Com o mercantilismo adveio também a burguesia, acumuladora de riqueza, contudo ainda excluída desse condomínio.

O Estado moderno surge então, especialmente após a Revolução Francesa, como uma reordenação dessas forças, sob predomínio da burguesia e declínio das demais. Portugal, porém, ao contrário dos demais países europeus, não teve feudalismo (porque já no século XIV o rei esmagara militarmente os senhores feudais e domesticara o clero).

Para dar conta de administrar o reino sem os senhores feudais, o rei contratou um aparato burocrático de funcionários convidados por afinidade, que logo adquiriu vida própria e se pôs a controlar (e parasitar) toda a atividade econômica do reino, com base em um sem número de normas escritas (códigos, proclames do rei etc.) numa hiper-regulação.

A partir das grandes navegações, com os descobrimentos e a colonização, esse aparato burocrático expandiu-se e, quanto maior, mais benfeitor de si próprio, mais apropriador da vida econômica e mais opressor da vida em geral.

A burguesia nascente, para conseguir prosperar, aprendeu a com ele se consorciar pela via da troca de favores e privilégios e da corrupção, compondo uma sociedade em que quem tinha posses era gente, quem não tinha era ralé e abaixo desses os escravos. Faoro denominou esse sistema “patrimonialismo” (o público como patrimônio de particulares), sistema que, por ser entrópico (necessita sempre sugar mais e mais recursos para se manter), somente pôde perdurar graças aos sucessivos booms econômicos de que Portugal se locupletou (as especiarias da Ásia, o açúcar do Nordeste, o ouro das Gerais).

À época da independência do Brasil, consolidava-se o Estado moderno em países como França, Inglaterra e Estados Unidos e assim se quis de algum modo copiá-los. Contudo, o tipo de Estado que aqui se formou não foi, como naqueles países, uma afirmação da burguesia mercantil (e já também industrial) em superação ao absolutismo do rei e à aristocracia, mas antes uma reafirmação do velho consórcio entre os agentes político-administrativos e os agentes econômicos, para continuidade da espoliação das riquezas do País (adveio em seguida o ciclo do café).

Da tese de Faoro se apreende o porquê de o Brasil, apesar de imensamente rico, não ter até hoje conseguido deslanchar.

O que não quer dizer que o Estado brasileiro não venha, aos poucos, se voltando em direção à sociedade. A partir de 1930 houve progressos alternados com retrocessos até que, como fruto das lutas pelo fim da ditadura e pela redemocratização do País, a Constituição de 88 veio instituir um modelo híbrido: se por um lado conserva o caráter do Estado como instrumento dos poderosos, por outro vem abrir brechas de cidadania.

Como exemplo do conservadorismo, a CF88 tem como cláusula pétrea (ou seja, algo que jamais poderá ser revogado, nem mesmo pelo mecanismo de emenda constitucional de três quintos da Câmara e do Senado, duas vezes cada um) os chamados direitos adquiridos, e assim eterniza inumeráveis privilégios.

Como apenas um exemplo, a Previdência Social são na verdade dois planos de benefícios completamente distintos (que em comum têm apenas a fonte dos recursos, o tesouro) conforme o quilate do aposentado: o regime próprio para os servidores públicos e o regime geral para o restante da população (denominações que são sintomáticas).

Como exemplo dos avanços, a obrigatoriedade do ingresso no serviço público por meio de concurso (ainda que no judiciário de vários estados os concursos sejam aproveitados para lavagem do nepotismo). Ainda mais significativo, as tão combatidas políticas de redução das desigualdades dos governos do PT nada mais são que o cumprimento de obrigações impostas pela Constituição:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; (…)

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

Mas foi graças à criação de um ministério público com liberdade para atuar em defesa da sociedade que as maiores empreiteiras do País estão hoje a caminho do banco dos réus. Trava-se nesse exato momento um embate inédito e definidor entre cidadania e patrimonialismo, lutando uma para desabrochar o outro para permanecer. De um lado, personagens como Sergio Moro, Rodrigo Janot e Teori Zavascki têm sobre seus ombros infinitamente mais do que suas atribuições institucionais: cerram fileiras, do outro, cinco séculos de anticidadania.

A sociedade brasileira bem sabe que a montanha de dinheiro desviada da Petrobras (foi até aqui contabilizada a propina, não o sobrepreço) é apenas a ponta de um novelo que, quanto mais for desenrolado, mais irá mostrar.

E se trata apenas da corrupção em curso, não da pregressa. Em entrevista à Folha de São Paulo, em 01/12/2014 (“Empreiteira que soube usar a corrupção cresceu mais, diz historiador”), Pedro Henrique Pedreira Campos, autor do livro Estranhas Catedrais sobre a corrupção durante a ditadura militar, relata que naquele período as empreiteiras tiveram acesso ao Estado sem intermediários, dado que o Congresso era meramente figurativo.

Tampouco havia instâncias de fiscalização como as atuais, pelo que os casos de corrupção simplesmente não vinham à tona. A roubalheira era então muito maior do que hoje.

Um exemplo? O embaixador José Jobim, sem nenhuma ligação com organizações de esquerda, foi sequestrado, torturado e morto em 1979 porque havia levantado provas de que o superfaturamento na construção de Itaipu levou a um custo final dez vezes superior ao orçado. Atualizada a valores de hoje, a roubalheira de Itaipu supera muito provavelmente esta de agora.

Estaria o Estado brasileiro, em tese, frente a duas alternativas: ou declara as empreiteiras inidôneas e procura mitigar os efeitos adversos sobre a economia do País, ou livra as empreiteiras e procura obrigá-las a doravante agir de acordo com a idoneidade ratificada.

“Estaria em tese”, porque o DNA do Estado, sua índole natural o levará a poupar as empreiteiras. Pode ficar complicado, porém, convencer a sociedade de que ainda mais investimento no vício da hiper-regulação (agora na forma de governança e compliance) herdado de nossos antepassados lusos fará idôneas empreiteiras acostumadas há décadas a não apenas subornar senadores, governadores e juízes, mas a fazê-los.

Se a sociedade fosse ouvida, que vontade manifestaria? Seria de fato ela pela punição das empreiteiras, ainda que ao custo de uma retração da economia?

O Estado não irá ouvir a sociedade, não é da natureza dele. Será a sociedade que terá que se fazer ouvir. Para tanto, falta o debate. O artigo a seguir é uma contribuição a esse necessário e urgente debate.

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