Em julho de 2013, no auge das manifestações que varreram o país, a presidência da República propôs um pacto pela reforma política, que contemplava a convocação de um plebiscito para formação de uma constituinte sobre o tema. Rapidamente, o Congresso engavetou a proposta. Desde então, movimentos sociais, centrais sindicais e entidades da sociedade civil e partidos progressistas engajaram-se na realização de um plebiscito popular, que ocorre durante toda esta semana, até domingo (7), em todo o país. O objetivo é coletar assinatura para fazer a proposição ao Congresso da convocação de uma constituinte exclusiva e soberana para a reforma política.
O blog Padrão Brasil entrevistou o filósofo e historiador José Antonio Moroni, membro do colegiado de gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e da Plataforma Política Social para tratar do tema. Moroni fala sobre a reforma política que o Brasil necessita para ampliar a democracia, a participação popular e iniciar o caminho de resgate da confiança da sociedade na política e no público.
A reforma política é tema recorrente na vida política brasileira. Tanto partidos de direita quantos os de esquerda reconhecem sua necessidade. Por que o Brasil necessita de uma reforma política?
Na verdade, o Brasil nunca teve uma reforma do sistema político. Uma reforma que vá além das questões eleitorais. Uma reforma que possibilitasse o exercício da soberania popular. Temos ainda um sistema político todo centrado no poder da representação e não no poder popular. Temos um sistema político voltado para atender aos interesses do dinheiro e somente depois atender aos interesses da população. Em outras palavras, falar em reforma do sistema político é falar de uma nova forma do exercício do poder, uma nova forma de se pensar e fazer política com novos instrumentos e novos sujeitos.
Qual a grande dificuldade de realizá-la?
Primeiramente, numa questão tão central para a vida da sociedade é normal que o processo para consensuar seja um caminho demorado, tenso e com incertezas. Sabe-se o que não se quer, mas ainda não temos uma maioria significativa dizendo para onde devemos ir. Outra questão é que o lugar onde estes debates deveriam ser canalizados é o parlamento, e o nosso, além de ser uma instituição desacreditada diante da opinião pública, está totalmente voltado para a suas questões e disputas internas. É aquela lógica institucional onde basta a instituição existir para se justificar. E não é assim. Em terceiro, é que quem foi eleito e, portanto, está no parlamento, sabe muito bem como manejar este sistema e, portanto, não quer mudanças significativas que possam colocar em xeque o seu poder. Mas temos um grupo minoritário de parlamentares atentos a tudo isso e querendo e propondo mudanças junto com várias organizações e movimentos da sociedade.
Quais princípios devem sem ser considerados fundamentais nas discussões por uma reforma?
Precisamos pensar os princípios democráticos que devem nortear uma verdadeira reforma política, portando uma nova institucionalidade. Os princípios devem ser da igualdade, da diversidade, da justiça, da liberdade, da participação, da transparência e do controle social. Como estes princípios podem e têm diferentes significados precisamos definir do que estamos falando quando defendemos estes princípios:
Igualdade:equilíbrio de direitos e responsabilidades entre os cidadãos, respeitando as diversidades. Opõe-se às disparidades de renda, de posse de terra, de acesso à saúde, de acesso à educação, de acesso aos espaços de decisão, de representação política, de acesso ao comércio internacional entre os países, de apropriação da riqueza produzida nas relações de trabalho, entre outras.
Diversidade: distinções dadas por aspectos de gênero, geracional, raça/cor, etnia, orientação sexual, pessoa com deficiência, entre outros. Diz respeito também aos diferentes espaços geográficos onde as populações se organizam (áreas urbana e rural, comunidades tradicionais, quilombolas, ribeirinhas, indígenas) e às distintas atividades econômicas praticadas (extrativista, artesanal, agricultura familiar, atividade pesqueira, industrial). O conceito de diversidade não se opõe ao de igualdade, pois a igualdade busca respeitar as diversidades.
Justiça: Defesa dos Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (DHESCAs), buscando restaurar os direitos ameaçados e garantir a implementação dos direitos não reconhecidos ou criação de novos direitos. Tem como orientação posicionar-se contra práticas que beneficiam o interesse privado em detrimento do interesse público (entre essas, o clientelismo, o patrimonialismo, o nepotismo, a corrupção, o preconceito, as discriminações). Observar o sistema democrático, a forma de governo republicana e o Estado de Direito, combatendo todas as formas de desigualdades e injustiças.
Liberdade: princípio que prevê a livre expressão, movimentação, atividade política e de organização dos cidadãos. Orienta o cidadão a expressar-se e a atuar politicamente em defesa de valores democráticos, como a igualdade e os direitos humanos; contestar e atuar politicamente contra situações de desigualdades sociais, políticas, jurídicas e econômicas. O principio da liberdade pressupõe a livre organização partidária e da sociedade, assim como os diferentes grupos terem os mesmos instrumentos de divulgação de suas ideias.
Participação: atuação da sociedade civil do campo democrático (movimentos sociais, organizações) nos espaços públicos de decisão. Deve ocorrer, preferencialmente, por meio da institucionalização de mecanismos de democracia participativa e direta, inclusive, na elaboração, deliberação, implementação, monitoramento e avaliação das políticas públicas. É também um processo de aprendizado na medida em que qualifica a intervenção de cidadãos para a atuação nos espaços públicos de decisão.
Transparência: acesso universal às informações públicas, por meio da disponibilidade inteligível ao conjunto da população. Inclui também a divulgação ampla, permanente e imparcial das decisões públicas, sejam oriundas da burocracia ou dos representantes eleitos/nomeados. É uma postura ética que se espera do poder público. A transparência e o acesso às informações públicas fazem parte da defesa pelo direito humano à comunicação.
Controle social: monitoramento do Estado por parte da sociedade civil que atua no campo democrático, entre os quais, os movimentos sociais, visando ao controle das ações governamentais. A qualidade do controle social pressupõe a transparência e o acesso às informações públicas. O controle social visa à defesa e à implementação de políticas públicas que respeitem o conceito de igualdade, universalidade, diversidade, justiça e liberdade.
Os movimentos sociais e entidades ligadas a direitos sociais, democracia e cidadania se reorganizaram para defender uma reforma política ampla, democrática e participativa. O que isso significa?
Significa primeiramente dizer que não defendemos apenas uma reforma eleitoral, defendemos uma reforma do sistema político que passa pela questão da representação, mas vai muito mais além. Significa repensarmos as formas e instrumentos de exercício de poder e os grupos que são reconhecidos ou não no exercício deste mesmo poder. Significa uma reforma que tenho como norte os princípios colocados acima. Isso revolucionaria o nosso sistema político, pois sairemos de um sistema elitista para poucos para um sistema político alicerçado na soberania popular.
Qual a diferença entre reforma eleitoral e uma reforma política?
A reforma eleitoral toca em alguns aspectos da democracia representativa, principalmente as normas que dizem respeito ao processo eleitoral. É uma reforma que reorganiza o processo eleitoral. Precisamos disso, mas precisamos ir além. Precisamos de uma reforma do nosso sistema político que repense o exercício do poder, sua institucionalidade e principalmente os sujeitos reconhecidos ou não para este exercício. Numa sociedade estruturada na desigualdade como a nossa, esta mesma desigualdade esta refletida nos espaços de poder. Ao mesmo tempo em que ele reflete a desigualdade é também instrumento desta mesma desigualdade. Portanto, pensar numa reforma do sistema político é colocar no centro do debate a desigualdade.
Quem deve fazer uma reforma que de fato devolva o poder ao povo dentro dos preceitos democráticos? Quem tem força de tirar das mãos do poder econômico o comando da política nacional?
Na nossa atual institucionalidade, quem tem o poder pra fazer isso é o parlamento e este já deu provas que não vai fazer por conta própria. Precisa ter muita pressão popular para que o parlamento se mova. Se mesmo com mobilização o parlamento se negue a fazer, o povo deve fazer e o instrumento para isso é a convocação de uma assembleia constituinte exclusiva e soberana, e que não se delegue ao parlamento para fazer a reforma. Temos dois caminhos, ou o parlamento assume sua responsabilidade ou o povo vai fazer. Sobre “libertar a política” do poder econômico, isso é mais que urgente. E aqui vale o registro, não apenas tirar o poder econômico do processo eleitoral, isso é importante e fundamental, mas queremos tirar o poder econômico como nortear das decisões públicas, dos desenhos e dos formatos das políticas públicas, pois só assim, teremos um Estado voltado para os interesses das maiorias e não um Estado privatizado e sequestrado pelos interesses das elites econômicas, políticas, sociais e culturais.
Por que a reforma política é tão importante para o avanço de outras discussões que contribuem com a consolidação da democracia brasileira?
Não tem como enfrentar determinados “nós” da nossa democracia com o atual sistema político. Não vamos enfrentar o machismo, o sexismo, a homofobia, o racismo, o patrimonialismo, etc com o atual sistema político. Ele é o espelho destes “nós” e ao mesmo tempo é fonte perpetuador destes “nós”. Portanto, para avançarmos nos processos democráticos, somente com uma profunda reforma do sistema político. Sem isso, vamos ficar eternamente marcando passo e não saindo do lugar.
O modelo de financiamento público empobrece o país ou causa danos sociais que justifiquem a oposição de parte da mídia, do empresariado e dos políticos?
Uma das discussões que precisamos fazer é sobre o financiamento dos nossos processos democráticos. Hoje temos o pior sistema, pois combina recursos públicos (não transparentes e sem controle social) com recursos privados. Este é um mecanismo poderoso de se manter as coisas como estão, pois quem financia depois apresenta a conta. Esta apresentação da conta vem através de obras superfaturadas, políticas públicas para atender a interesses de grupos econômicos, corrupção etc. A questão do financiamento tem o aspecto de enfrentar o poder econômico e a corrupção, mas tem uma questão de fundo, que é a questão democrática. Os diversos grupos que disputam espaços de poder precisam ter uma igualdade maior nesta disputa. O financiamento privado desequilibra este jogo e favorece quem já tem poder.
Essa reforma seria suficiente para fortalecer a democracia participativa e direta no Brasil?
Nós, da Plataforma dos Movimentos Sociais Pela Reforma do Sistema Político, defendemos que uma verdadeira reforma do sistema político deve começar por cinco grandes eixos. Fortalecimento da democracia direta e participativa, aperfeiçoamento da democracia representativa, democratização da informação e da comunicação e democratização do sistema de justiça. Uma verdadeira democracia combina, de forma equilibrada o poder da representação com instrumentos de democracia direta e participativa. A constituição de 1988 criou três instrumentos de democracia direta, plebiscito, referendo e iniciativa popular. Mas o uso desses instrumentos são limitados em função de amarras que foram impostas. Por exemplo, só o parlamento pode convocar plebiscitos e referendos. A iniciativa popular que é a apresentação de projetos de leis por parte da sociedade precisa ter 1.500.000 assinaturas, sendo que para formar um partido político, 430 mil. É uma distorção completa. Isso precisa ser mudado numa reforma, pois, além de equilibrar o poder da representação, cria mecanismos de expressão da soberania popular além do voto.
Democratizar a informação e a comunicação está na pauta das discussões por uma reforma política?
Com certeza. Isso é fundamental. Temos oito famílias que dominam a comunicação no Brasil. Não temos diversidade alguma de fontes e de opinião na grande imprensa. É a ditadura do pensamento único que vivemos. Os diferentes grupos precisam ter os mesmos instrumentos para poder expressar as suas ideias e assim disputar a sociedade e os significados dos fatos. Sem isso, não existe democracia. É necessário ter um equilíbrio entre o sistema público, estatal e privado dos meios de comunicação. Público, que é da sociedade, estatal, que é do Estado, e privado, que é das empresas. No mínimo, ter um equilíbrio entre os três e não como é hoje, com predominância total do sistema privado.
Historicamente sempre saímos de um período histórico para outro por meio da conciliação. É possível tornar realidade uma reforma como essa de modo que não tenhamos apenas um arremedo de mudança?
Isso vai depender da correlação de forças. Mas uma coisa é certa: muitas das mazelas que vivemos tem relação com a opção da não ruptura e sim pela conciliação. Basta ver como saímos da escravidão e da ditadura militar, para dar exemplos. Saímos da escravidão por um decreto e onde os escravos foram simplesmente jogados a própria sorte, isso ocasiona o racismo que temos hoje, os indicadores sociais em relação à população negra. No caso da ditadura esta opção pela conciliação gerou um sistema político que conserva na sua essência o sistema da ditadura militar. Tem-se a sensação que sempre ficamos no meio do caminho. Precisamos completar o caminho.
Vivemos um profundo descontentamento da sociedade com os políticos e com a política. Uma reforma tem força para resgatar o vigor da vida política e a crença nos partidos?
Depende da reforma que for feita. Se for uma reforma que deixe tudo igual ela somente vai aprofundar este descontentamento. Mas se for uma reforma que atende aos anseios da população e que o povo se veja nela, podemos sim iniciar um longo caminho de resgate do valor da política e do público.
É possível, mesmo com uma reforma, esperar mudanças profundas e necessárias para o país se os mesmos políticos continuarem a exercer o poder?
Não, não é possível. Por isso, colocamos na agenda a questão dos sujeitos. Temos um poder branco, masculino, proprietário, cristão e hetero. O povo não se sente representado por este poder e nunca vai se sentir. Precisamos enfrentar a questão da sub-representação de determinados grupos nos espaços de poder. Não podemos aceitar um parlamento que tenha 9% de mulheres, 8% de representantes negros, sem nenhum indígena, praticamente sem representação da população homoafetiva, da juventude, das pessoas com deficiência, das populações das periferias urbanas, da população camponesa. Se a reforma não for capaz de criar mecanismos de acesso aos espaços de poder desses grupos, vamos mudar para não mudar. Daí não dá.
José Antônio Moroni integra ainda a coordenação do Fórum Brasil do Orçamento (FBO) e do (Fórum Nacional de Participação Popular (FNPP), a plataforma dos movimentos sociais pela reforma do sistema político, e é conselheiro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES)