O decreto 8.243/2014 e a tentativa de “carteirada” de articulistas da grande imprensa

Rudá Ricci*

O decreto 8.243, recém-publicado pelo governo federal, determina a criação da Política Nacional de Participação Social (PNPS) e do Sistema Nacional de Participação Social (SNPS). Trata-se de um marco regulatório que institucionaliza os canais de participação e controle do Estado pelo cidadão. Algo que já está definido como objetivo nacional no artigo primeiro de nossa Constituição Federal, em seu inciso II, quando afirma que o poder emana do povo, também diretamente. Por diretamente significa que o cidadão brasileiro, mesmo quando vota num representante, não abdica de seu direito de governar com o eleito.

É desta orientação que nasceram tantos conselhos, como o de saúde, o do direito da criança e adolescente e assim por diante.

Não se trata de conselho popular (que em russo é soviete) porque não é uma instância da sociedade civil. Também não é conselho de governo, porque ele é híbrido e paritário: há participação direta do governo e de representação da sociedade civil num mesmo conselho. É canal, portanto, institucional de participação (formulação e fiscalização) no Executivo. Grifo: executivo.

No entanto, articulistas sem formação técnica ou mergulhados na má fé tentaram transformar este decreto em jogo de cena. Alguns afirmaram que se trata de decreto de inspiração bolivariana. E, para criar alguma aura de fundamentação, mentiram. Afirmaram que se tratava de diminuição do poder do Parlamento. Mentira. O Parlamento continua com suas funções constitucionais. O conselho é uma estrutura de Estado no interior do Poder Executivo. Repito: Executivo. O que significa dizer que uma conferência nacional organizada por um conselho ou uma deliberação de qualquer conselho, se orientar gasto orçamentário, só se efetivará se o Parlamento aprovar. Mesmo que deliberativo, o conselho orienta o Executivo, nunca o Judiciário ou o Legislativo.

Qual a finalidade deste decreto? “Consolidar a participação social como método de governo”. Método. Portanto, o eleito define se vai decidir com seus delegados (os ministros) ou se ampliará o escopo de participação no processo decisório. Para isto, precisa definir qual é o escopo desta ampliação, ou seja, quem participa deste processo de discussão e decisão do governo (portanto, Executivo Federal). É o mesmo que ocorre no orçamento participativo. O governo pode adotá-lo como método para forjar a peça orçamentária que envia para o Legislativo (este sim, o poder que constitucionalmente define o que será o orçamento público do ano seguinte).

Lembremos que este método já foi utilizado em muitas experiências internacionais e todas distintas do tal “projeto bolivariano”. Este é o caso do Grande Conselho de Londres (em inglês: Greater London Council – GLC), que coordenou o poder local em toda a área londrina e que funcionou entre 1965 e 1986, quando a Dama de Ferro decidiu extingui-lo por orientação legítima e ideológica (não técnica). Dirigia os 33 distritos de Londres. Temos outras experiências, como os comitês de bacia hidrográfica da França que, aliás, orientou a criação dos CBH no Brasil.

A definição de sociedade civil no decreto

Uma das falsas polêmicas que alguns articulistas – que não entendem do riscado e gostariam de dar pitaco nos rumos nacionais sem colocar em discussão pública suas opiniões (ou seja, possuem uma concepção estranha de juízes da nação, sem que, em momento algum, tenham preocupação em aferir se sua opinião é compartilhada porque nunca se expõem ao jogo democrático) – é o conceito de sociedade civil que o decreto define. Porque, como já salientei, é preciso demarcar quem participa da ampliação do processo decisório do governo federal. O decreto define, em seu artigo 2º, I: “cidadãos, coletivos, movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações”. Os articulistas destacaram o conceito de “movimento social”. Um conceito dos mais elaborados pela academia internacional.

Embora seja cabotino, peço licença para destacar alguns excertos do verbete que escrevi para o Dicionário de Políticas Públicas publicado pela Fundação do Desenvolvimento Administrativo (FUNDAP, SP) em 2013. O dicionário foi organizado pelos professores doutores Geraldo Di Giovanni e Marco Aurélio Nogueira. Vamos ao conceito:

O conceito movimento social surge na modernidade. Em 1840, Lorenz Von Stein defende a necessidade de uma ciência da sociedade que se dedicasse ao estudo dos movimentos sociais, em especial, ao estudo do movimento operário francês e do socialismo (SCHERE-WARREN, 1984). O tema surge no bojo de um processo de estranhamento das instituições públicas e de alguns segmentos urbanos frente ao acelerado processo de industrialização da Europa. (…) São, também desse período, as primeiras séries históricas estatísticas sobre comportamento social, patrocinada pelo sistema judiciário francês. A Rússia, logo em seguida, inicia a montagem de um amplo processo de investigação do comportamento social moderno, que terá seus primeiros resultados no início do século XX. As instituições públicas e a intelectualidade europeia estranhavam profundamente o novo mundo industrializado e, em especial, a pauperização de grandes massas da população. O conceito de movimento social, portanto, é fruto do incômodo e da necessidade de controle social. (…) No século passado, emerge a estrutura burocrática pública, o Estado Social-Burocrático. Inicialmente, a estrutura de atendimento social passa por um dilema sobre a natureza dos serviços a serem prestados, se de assistência (assumindo um conjunto de miseráveis privados de recursos) ou de seguro (atendendo todos aqueles que, em caso de acidente, doença ou velhice, não conseguiriam suprir suas necessidades). Da resolução deste debate surge um tipo de propriedade social (ou tutelar, da qual o Estado é avalista), ou seja, uma política de benefícios que assegura aos não-proprietários a seguridade social. Da mesma forma, emerge um conjunto de serviços públicos que passam a constituir uma propriedade coletiva, impessoal. O Estado Moderno forjou-se, assim, enquanto locus da gestão pública. (…) A intervenção do Estado, contudo, teria gerado uma relação individual com as agências do Estado, desmobilizando a organização de demandas coletivas ou fragmentando-a em ações de grupos de interesse específico, à imagem e semelhança da estrutura burocrática estatal, fragmentada, por seu turno, em agências especializadas. Em outras palavras, sugerimos que a estrutura burocrática estatal seja compreendida como elemento da constituição dos movimentos sociais do século XX. A natureza da organização burocrática fragmentou as demandas sociais e as formas de expressão e encaminhamento de demandas, em virtude da forte simbiose que se estabelece entre populações demandantes e agências estatais de atendimento social.

Em suma, o Estado moderno organizou as demandas da sociedade a partir da estrutura burocrática (em ministérios e/ou secretarias), que passaram a atender as solicitações e desejos do cidadão. Este é o motivo para a existência de movimento de saúde, porque ele se dirige ao órgão público responsável por esta política setorial, e assim por diante. Nada mais justo, portanto, que o Estado crie um canal institucional de diálogo com movimentos sociais, que se formaram a partir da estrutura estatal e que se dirigem a esta estrutura. Por que é fundamental a criação deste canal institucional? Porque tal estrutura antecipa qualquer confronto de rua, já que torna-se uma escuta permanente, institucional. Sem canais institucionais de diálogo e participação dos movimentos sociais no interior do Estado, nos deparamos com protestos diários, múltiplos, difusos, com inúmeras pautas que deixam o restante da sociedade não mobilizada estarrecida e desorientada.

Não por outro motivo que tais canais são considerados internacionalmente como um instrumento de good governance.

O que seriam os mecanismos de participação social, afinal?

O artigo 5º deste decreto define o mecanismo: “Os órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta deverão, respeitadas as especificidades de cada caso, [devem] considerar as instâncias e os mecanismos de participação social, previstos neste Decreto, para a formulação, a execução, o monitoramento e a avaliação de seus programas e políticas públicas”. Portanto, mecanismos inseridos no âmbito do Executivo. Ora, são os mesmos mecanismos dos conselhos de gestão pública (setoriais ou de direitos) já existentes no Brasil desde os anos 1990, portanto, muito antes das gestões lulistas. Os articulistas de má fé da grande imprensa desconsideram que é um consenso público tal mecanismo de participação institucional (portanto, nenhuma semelhança com os sovietes da ex-URSS que se transformaram em estruturas duais de poder, competindo com o Estado e a institucionalidade vigente).

Vejam que o decreto praticamente copia as instâncias e mecanismos já utilizados e empregados há duas décadas no Brasil pelos conselhos já existentes: os mecanismos de participação social são apresentados no artigo 2º e no artigo 6º, e são conselhos e comissões de políticas públicas, conferências nacionais, ouvidorias federais, mesas de diálogo, fóruns interconselhos, audiências e consultas públicas e ambientes virtuais de participação social. Algum golpe branco? Não, apenas a síntese de práticas já existentes no Brasil, como já ocorre na Lei Orgânica da Saúde, ECA, Lei Orgânica da Assistência Social. Instituídos por diversas leis federais desde os anos 1990. Melhorados, inclusive. O artigo 10, em seu inciso I determina que os representantes de tais conselhos devem ser eleitos ou indicados pela sociedade civil. Ora, é o que ocorre na escolha dos conselheiros de direitos da criança e adolescente ou conselheiros do orçamento participativo ou qualquer outro conselho instituído no Brasil. Onde estaria a novidade e o bolivarianismo? E abre uma discussão importante: não seria o caso de eleição direta de todos conselheiros?

O art. 19 cria um órgão administrativo novo: Mesa de Monitoramento das Demandas Sociais. Do que se trata? Canal institucional de apresentação e discussão de demandas sociais. Em país com forte desigualdade social, esta é uma instância democrática e moderna, de antecipação de conflitos e confrontos.

Afinal, queremos continuar sendo chacoalhados diariamente por protestos de rua ou queremos que o Estado brasileiro se antecipe? Como fazemos para valorizar o campo institucional nacional num país em que há fortes sinais de deslegitimação das instituições de representação social vigentes (como sindicatos e partidos políticos)? Temos a obrigação de criar mecanismos que ao menos possam compor um mapa das demandas e frustrações sociais, ao menos as mais agudas, intensas e organizadas. Aquelas que, por se manifestarem organizadamente ou em público, são visíveis. Sem isto, esgarçamos o fio que nos une como civilização. Voltamos para a lógica da força, do confronto diário, do niilismo cultural e político. É hora de sermos mais responsáveis. E a grande imprensa, nos últimos dias, vem dando mostras que perdeu seu superego em alguma esquina. Forjar matérias que para inocular o pânico nos brasileiros ou forjar polêmicas que questionam as convicções de governos que nunca se pautaram pela intenção de golpe político ou pelo autoritarismo é irresponsável e desleal. Ao cabo, parece pedir para que se instale no país o controle externo à prática jornalística

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