Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Para proferir palestra em seminário sobre o tema da desigualdade na América do Sul, organizado pela Inter Press Service (IPS) para jornalistas e comunicadores da sociedade civil, tive a oportunidade de estar dois dias em Santiago do Chile. O seminário foi estimulante, com estudos bem fundamentados sobre o tema e um grupo de profissionais de comunicação muito interessado. Confesso que uma motivação a mais para participar foi a possibilidade de sentir de perto como se apresenta o início do segundo governo de Michelle Bachelet.
O dia 21 de maio – um feriado nacional no Chile – é o dia em que presidentes fazem seu discurso anual para o Congresso Pleno da Nação. Mesmo no início de seu mandato, em 11 de março deste ano, Bachelet aproveitou a ocasião para anunciar um conjunto de mudanças, dando um passo adiante nas promessas de campanha. As muitas propostas se agrupam em três grandes conjuntos: reforma tributária, reforma educacional e um nova Constituição da República. De comum, as três procuram enfrentar a questão da crescente desigualdade social no Chile.
Na verdade, as demandas da cidadania por mudanças já se estendem por décadas e estão cada vez mais intensas. O movimento mais expressivo tem sido o de estudantes, secundaristas e universitários, com grande impacto no conjunto da população. No seu discurso, a presidente Michelle Bachelet indicou as grandes prioridades do governo nos campos de saúde, educação, relações de trabalho, qualidade de vida, cultura, transporte e esporte. Para isto, apontou medidas para fortalecer a economia, ampliar a oferta de energia e gerar empregos.
É cedo para saber o que Bachelet vai conseguir em quatro anos. Conta com a vantagem de uma maioria firme no Congresso, uma equipe ministerial mais de sua escolha pessoal e, sobretudo, um ambiente público que, mesmo difuso, espera e parece receptivo a mudanças. Ou seja, os ventos são favoráveis para avanços no momento atual. Porém no Chile também cresce o descrédito na política. Michelle Bachelet ganhou bem no segundo turno, mas menos de 60% foram votar. Fazer as mudanças não será tarefa fácil.
Nunca é demais lembrar a herança deixada pelo ditador Pinochet, não diretamente enfrentada até aqui pelos governos democráticos que se sucederam desde os anos 90. O Chile foi o primeiro e talvez o mais radical experimento do neoliberalismo. E não só na política econômica. O neoliberalimo se tornou base da própria estrutura institucional, em vários campos. Nos pactos de transição da ditadura para a democracia muita coisa ficou intacta. A própria Constituição é o exemplo maior, pois até hoje permanece a que foi herdada da ditadura. Por isto é compreensível o crescente clamor por nova Constituição. Esta finalmente está na mesa de negociações políticas, mas será uma batalha dura pois todas as armadilhas que dificultam mudanças estão lá cravadas na Constituição vigente, com o seu sistema eleitoral que não permite ampla maioria a nenhuma força.
Para criar um clima nacional ainda mais favorável e deixar a oposição na defensiva, Michelle Bachelet convocou seu ministério e está enviando todos os seus ministros para as diferentes partes do país com a tarefa de explicar diretamente à população o sentido das mudanças anunciadas. O fato é que tudo está integrado, pois se trata de desmontar políticas e instituições e, ao mesmo tempo, remontar tudo. Isto com a vida e o governo seguindo, sem parar o país. Como é de se esperar, a reforma tributária é indispensável, mas já existe uma clara oposição a ela por parte do setor empresarial mais conservador, sempre com o discurso sobre riscos para a competitividade e a economia. As mudanças consistentes implicam não só em realocação de recursos, mas demandam dotar o Estado de capacidade financeira para um papel mais ativo na universalização de políticas públicas, como a da educação, saúde, seguridade social.
A questão da educação no Chile é emblemática. Os “Chicago Boys”, que assessoraram a ditadura na sua tarefa de implantar no Chile a primeira e mais liberal economia do continente, atacaram as próprias políticas públicas para submeter os “serviços” às regras do mercado. Foram fixados, ainda em 1981 na própria Constituição do Chile, os princípios favoráveis à competição na educação, tornando-a uma mercadoria.
Vale a pena a gente se deter um pouco neste que é um grande debate no Chile. O Estado foi levado a deixar de ser provedor de educação pública, que passou gradativamente para um sistema privado, altamente competitivo e lucrativo, com subvenções públicas, proporcional ao número de alunos que a escola privada consegue. Ficou ainda a escola pública, sobretudo no ensino fundamental, atribuída inteiramente aos municípios, ela também dependente das subvenções do Estado na proporção de sua capacidade de competir por alunos com a escola privada. Resultado: queda constante das escolas públicas, com redução drástica de seu número e das matrículas, que passaram de 78% do total em 1981 a 46% em 2012. A escola pública municipal acabou virando a escola pobre para pobres. De outro lado, novos “empresários” da educação seguem lucrando com as subvenções do Estado e, já que é permitido, cobrando mensalidades escandalosas dos estudantes. Algo bem seletivo e segregador, como qualquer mercado sabe fazer.
O sistema de educação, transformado em mercado competitivo e com financiamento compartido pelo Estado, inviabiliza a educação pública como direito universal. Defende-se o “direito de escolher” das famílias, mas cria um ilegítimo sistema de escola subvencionadas e lucrativas. Isto vale para escolas primárias e secundárias, gerando um grande debate sobre segregação social e fratura do país. No nível universitário o sistema é um pouco diferente. Existem universidades públicas e privadas, todas pagas pelos alunos. Para isto foi instituído o crédito educativo. Os universitários brigam contra isto, pois iniciam sua vida profissional com dívidas entre 25 e 30 mil dólares.
Como desmontar isto? A mudança da Constituição, claro, não se limita à educação, mas para avançar na educação ela se faz necessária, invertendo a lógica privatizante de serviços públicos nela implantada. Mas o processo em si é difícil, todos sabem. Só que os estudantes já na sexta feira, dia 23, se articulavam para protestar… contra a pouca ousadia de Michelle Bachelet na reforma da educação. Esta é a maravilha da democracia e seus tortuosos caminhos para ampliar cidadania e direitos para todas e todos.
Abaixo, segue um video sobre a crise no sistema de educação no Chile. Uma universitária, Camila Escobar, conta como a vida dela foi afetada com o processo de privatização do sistema
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